Futuro da democracia do México é imprevisível, dizem analistas

Os desdobramentos da crise política do México são imprevisíveis e o impasse eleitoral que paralisa o país há mais de um mês pode se transformar numa convulsão social sem precedentes na história mexicana. Essa foi a opinião unânime dos intelectuais mexican

Sob o sugestivo título “Uma democracia em perigo”, os expositores mostraram durante o painel que o clima na esquerda e nos movimentos sociais mexicanos é de tensão crescente desde as eleições presidenciais de 2 de julho, que ainda não têm vencedor confirmado pelo Instituto Federal Eleitoral (IFE). Inicialmente apontado como vitorioso por uma margem pouco maior que meio ponto percentual – equivalente a 236 mil votos – num pleito que teve dois milhões e meio de votos anulados pelo IFE, o candidato da situação Felipe Calderón (Partido Ação Nacional, PAN), teve sua vitória contestada pelo segundo colocado, Andrés Manuel López Obrador (Partido da Revolução Democrática, PRD). As mobilizações de rua iniciadas desde então pelos que acusam o IFE de fraude e o impasse acerca da recontagem dos votos transformaram, segundo os debatedores, o México numa autêntica panela de pressão social.



“A percepção de que houve fraude eleitoral com a participação de órgãos federais agravou profundamente a insatisfação das pessoas que querem um México com instituições eleitorais novas e fortes e onde exista uma cidadania com direitos”, afirmou Lucio Oliver, que é coordenador da pós-graduação em Estudos Latino-Americanos da Universidade Autônoma do México (Unam). Ele acredita que a tensão social tende a se exacerbar: “Se não houver uma solução para o impasse eleitoral, poderemos estar iniciando uma crise que vai durar muitos anos. Será uma luta, e seus resultados são imprevisíveis. Já existem rumores de que a ultradireita começa a se armar”, disse.



Também professora da Unam, Maria Elvira Bórques contou que informações obtidas pelos movimentos sociais e pelo PRD dão conta de que, se computadas as urnas impugnadas, López Obrador venceria Calderón por cerca de 250 mil votos, invertendo a vantagem hoje creditada ao candidato da situação: “Não sabemos como o IFE vai se comportar, mas, se for mantida a vitória de Calderón, o México deve começar a viver um período de grandes mobilizações populares, com a realização de um conjunto de ações de resistência civil”, disse. Os rumos desse movimento, segundo Maria Elvira, serão decididos na Convenção Nacional Democrática, evento organizado pelos movimentos sociais e pelos partidos de esquerda que acontecerá em 16 de setembro, dez dias após o prazo final estipulado pelo IFE para anunciar definitivamente o novo presidente mexicano.



Ajuda federal



O principal motivo da revolta da parte mais esclarecida da população mexicana, segundo os debatedores, é o papel desempenhado pelo IFE e a clara associação do supremo órgão eleitoral às elites políticas e econômicas que detiveram o poder no México por 72 anos com o PRI (Partido Revolucionário Institucional) e continuaram mandando no país depois da eleição do atual presidente, Vicente Fox (PAN), em 2000: “Um instituto do Estado, o principal órgão eleitoral do México, teve uma atuação absolutamente parcial e interveio no sentido de apoiar o candidato da direita. Esse episódio mostrou a falta de compromisso da direita mexicana com a democracia. Democracia, para a direita mexicana e os órgãos que ela controla, só quando o quadro político lhes é favorável”, afirmou Lucio Oliver.



O economista Gregorio Vidal lembrou que o IFE alimentou desde a vitória de Fox em 2000 a impressão de que teria se tornado mais moderno e eficaz, imagem que ruiu na última eleição: “Foi a primeira vez que o IFE coordenou eleições sem que o presidente em exercício fosse do PRI, mas a impressão de eficácia foi embora assim que a população percebeu a repetição das velhas práticas de fraude e favorecimento ao candidato oficial”, disse. Vidal foi além, e garantiu que a Suprema Corte de Justiça também “tem apresentado um comportamento bastante peculiar” desde antes das eleições: “Um dos juízes questionou o artigo 97 da Constituição Mexicana, justamente o que faculta à Suprema Corte o direito de intervir em caso de irregularidade no processo eleitoral. O artigo foi considerado pelo colegiado como anacrônico e inaplicável logo antes das eleições”, contou.



Regime em xeque



A crise atual, segundo os debatedores, foi a gota d’água que fez transbordar o cálice da insatisfação popular mexicana com a direita tradicional e o regime político vigente no país há quase um século: “Mesmo com a derrota do PRI em 2000, o que ocorreu com a chegada de Fox e do PAN ao poder foi apenas uma troca de estafeta e a manutenção do mesmo projeto político neoliberal. Desde então, constituiu-se no país uma oposição muito forte a esse modelo. Esse sentimento se agravou com a campanha suja que os partidos de direita e a mídia conservadora fizeram contra López Obrador e ganhou as ruas depois que foi organizada esta fraude sofisticada e meticulosa com a ajuda do órgão que deveria impedi-la. Agora, a sociedade quer não somente que não se permita a fraude, mas também que não continue esse modelo”, disse Maria Elvira Bórques.



Fundadora do PRD, Ifigenia Martinez lembrou que Fox assumiu o poder com a missão de fazer a transição democrática, mas nada realizou nesse sentido nos seis anos de seu mandato: “Esperávamos o câmbio democrático, mas Fox não cumpriu o que prometera. O México continua dependente de outros países e dominado por um pequeno grupo concentrado no Banco do México e no Ministério da Fazenda. Agora, o povo quer mudanças, e as forças democráticas têm maioria”, avaliou.



Gregorio Vidal disse acreditar que, devido a esse esgotamento do regime que governa o país há oito décadas, a sociedade mexicana não vai aceitar que o IFE declare a vitória de Felipe Calderón nos moldes atuais. Para ele, na pior das hipóteses, as eleições deveriam ser anuladas: “Qualquer decisão que não limpe esse processo eleitoral será um sério problema para a democracia mexicana. A democracia, no México, ainda é uma tarefa pendente”, resumiu.