Regime diferenciado gera mais violência nas cadeias de SP

Por Bia Barbosa, para a Agência Carta Maior
Aclamado como solução para o controle do crime organizado dentro das prisões, o isolamento absoluto das lideranças acaba provocando consequências contrárias ao desejo das autoridades. Estudos mostram que a se

Uma decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo reacendeu o debate sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) no sistema prisional, justamente em tempos de crise na segurança pública, quando os setores mais conservadores apontam como solução para o aumento da criminalidade o endurecimento das penas. Na última terça-feira (15), por decisão unânime, o TJ concedeu habeas corpus que retira Marcos Willians Herbas Camacho, o “Marcola”, do RDD por considerar este tipo de internação inconstitucional. No entendimento da 1ª Câmara, o RDD é uma aberração jurídica, que ofende “mortalmente” a Constituição Federal, e que demonstra que, para tentar equacionar o problema do crime organizado, o legislador deixou de contemplar os mais simples princípios constitucionais em vigor.



Marcola, no entanto continuará em regime diferenciado, pois sua internação foi determinada em duas oportunidades: uma em janeiro e outra a partir de maio, e o habeas corpus diz respeito à primeira internação. Independente disso, a decisão dos desembargadores da Câmara Criminal abre um precedente importante para o questionamento do regime.



Criado em São Paulo em maio de 2001 por uma resolução da Secretaria de Administração Penitenciária do governo estadual, o RDD se tornou oficial em todo o país dois anos depois, em 2003, com alterações promovidas na lei 10.792, a Lei de Execuções Penais. A partir de então, o artigo 52 da LEP passou a determinar que:
“A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:



I – duração máxima de trezentos e sessenta dias
II – recolhimento em cela individual;
III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;
IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.”



A mudança também previu o RDD para os presos provisórios ou condenados sob os quais recaíssem fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas. Em São Paulo, as penitenciárias de Presidente Bernardes e Avaré e o Anexo da Casa de Custódia de Taubaté recebem presos sob RDD.



Estudioso do sistema penitenciário no Brasil, o sociólogo Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, pondera que a idéia de isolar presos não é novidade alguma. “Faz parte da história do sistema prisional. É só lembrar dos presídios em Ilha Grande e na Ilha Anchieta, aqui em São Paulo”, conta. “Anchieta funcionou da década de 30 até os anos 50, e só explodiu quando se colocaram juntos, ali, vários presos problemáticos. Muito tempo depois, o mesmo aconteceu no Anexo de Taubaté, chamado de Piranhão, quando o isolamento dos presos perigosos numa mesma unidade acabou os levando a uma maior organização, ou seja, houve um efeito ao revés das iniciativas das autoridades”, avalia Salla.
No final do ano 2000, uma rebelião na Casa de Custódia de Taubaté destruiu a penitenciária e deixou nove presos mortos, sendo quatro decapitados. Meses depois, a maior rebelião do país à época envolveu 28 presídios, e acabou fortalecendo a idéia do endurecimento das penas e a criação do RDD em São Paulo – o que, para Salla, só dificulta a solução do problema dos presídios.



A procuradora do Estado e membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Ana Sofia Schmidt de Oliveira, concorda. Para ela, o endurecimento das penas só gera mais violência, dentro e fora das unidades prisionais.



“É um ciclo vicioso. Uma maior violência institucional gera maior insegurança, que aumenta a violência, aumenta o número de prisões, faz crescer a massa carcerária, o que aumenta a insegurança dentro dos presídios e gera uma maior legitimidade para a violência insitucional. E por aí vamos. Vamos prender mais, com penas mais duras e isso não vai diminuir a violência na sociedade. O discurso que vem à tona é o do combate do terror pelo terror, mas não é possível que acreditemos nisso”, critica Ana Sofia.



“O pior é este quadro vai moldando nossa percepção e sensibilidade. Em momentos de crise, vamos introgetando essas situações e nunca chegamos ao limite da nossa indignação, vamos nos amoldando às situações. Daqui a pouco as pessoas não ficam mais impressionadas com o que está acontecendo em Araraquara. E o efeito dramático que o RDD gera num prisioneiro é altíssimo, assim como acontece com aqueles que estão submetidos a situações como a de Araraquara”, acredita a procuradora.



Outra crítica feita ao regime diferenciado é que ele acaba se constituindo num elemento de poder daqueles a que ele se submetem diante do restante da massa carcerária. Ou seja, “o RDD é temido pelos presos, mas o preso que passa pelo RDD agrega valor à sua carreira carcerária, ganha novas insignias de prestígio e poder”, diz o sociólo Salla.



Nem nos Estados Unidos



Em junho deste ano, a Comissão Americana sobre Segurança e Maus Tratos nas Prisões divulgou o relatório “Confrontando o Confinamento”, que mostra o resultado de um trabalho de avaliação em âmbito nacional das condições nas prisões e cadeias dos Estados Unidos – a primeira realizada em quase três décadas. Ao longo de um ano, a Comissão visitou unidades prisionais, consultou uma ampla gama de especialistas e fez uma análise abrangente e profunda das pesquisas e dados disponíveis sobre violência e maus tratos nos estabelecimentos nos Estados Unidos. E uma das conclusões a que chegou é que o uso crescente do isolamento sob esquemas de alta segurança é contraproducente, causa violência dentro dos presídios e contribui para a reincidência após a soltura.



“A separação entre indivíduos perigosos ou vulneráveis e a população prisional geral é parte do trabalho de operar um estabelecimento seguro. No entanto, a busca da segurança, combinada com a demanda pública por punições mais severas, tem tido efeitos perversos em alguns sistemas existentes no país”, diz o relatório.



No país, prisioneiros que deveriam ser abrigados a distâncias seguras de determinados indivíduos ou grupos acabam trancados em celas 23 horas por dia, diariamente, com pouca oportunidade de serem produtivos e prepararem-se para a liberdade. Nas chamadas prisões “supermax”, o ambiente é tão restritivo que, em alguns casos, as pessoas terminam completamente isoladas, confinadas em espaços constantemente iluminados ou constantemente na penumbra, sem nenhum contato humano significativo – condições torturantes que, comprovadamente, causam deterioração mental.



“Com freqüência, os presos são retirados de solitárias e de outras unidades de alta segurança e postos diretamente nas ruas, a despeito dos claros perigos desse tipo de estratégia”, afirma a Comissão. “Existe uma perturbadora evidência de que o desgaste de viver e trabalhar nesse ambiente causa, de fato, violência entre funcionários e presos. E as conseqüências são ainda maiores: manter um preso isolado pode custar duas vezes o que custam outras formas de confinamento, e o mau uso do isolamento trabalha contra o processo de reabilitação das pessoas, ameaçando, assim, a segurança pública”, diz o relatório.



Entre 1995 e 2000, a taxa de crescimento do número de pessoas mantidas isoladas nos Estados Unidos foi quase o dobro da taxa de crescimento da população prisional como um todo. O advogado, estudioso e monitor penitenciário Fred Cohen disse à Comissão que o isolamento é agora “um aspecto normal do ritmo da vida na prisão” no país.



Por isso, a Comissão Americana sobre Segurança e Maus Tratos nas Prisões recomendou o fim das condições de isolamento e a garantia dos presos isolados realizarem contatos humanos regulares e signficativos, livres de condições físicas extremas que causem danos duradouros. O órgão recomendou ainda que o isolamento seja usado somente como último recurso e que sejam adotados critérios estritos para se isolar alguém e se fazer uma transição segura para fora do isolamento o mais cedo possível. Recomendou também que, na medida permitida pela segurança, que seja dada aos presos isolados a oportunidade de se engajar plenamente em tratamento, trabalho, estudo e outras atividades produtivas, e de se sentirem parte de uma comunidade.



O caminho errado



“Está claro. Os estudos indicam o quão prejudicial este modelo é para o lado psicológico das pessoas. E é este o caminho que estamos seguindo aqui no Brasil”, critica Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Julita foi ouvidora da polícia e dirigiu o sistema penitenciário no Rio de Janeiro de 1991 a 1994. “Que resultado estamos produzindo nos homens que hoje estão no RDD e vão para as ruas depois? Temos que discutir isso sem hipocrisia e sem nos envolvermos com o clamor popular que acha que o RDD é a saída para os nossos problemas”, afirma.



O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, é um dos que defende a ampliação do regime diferenciado. A pedido dele, o senador Romeu Tuma (PFL) apresentou um projeto de lei para que os presos possam ir para o RDD por tempo indeterminado – hoje o prazo máximo é de 360 dias. Esta semana, Pinho declarou que vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal da decisão do TJ de São Paulo sobre a inconstitucionalidade do RDD.



“Vivemos um momento de crise no país, a escalada da violência aumenta. Não temos certeza de quais serão os próximos passos, mas este é o início de um combate a uma organização criminosa que começa a plantar raízes na sociedade. Precisamos garantir que este combate seja feito na absoluta legalidade, mas também com a preocupação da manutenção da ordem pública. A democracia não precinde do princípio da autoridade, do rigor quando necessário. Temos que nos inspirar em outros países que venceram organizações criminosas dentro desses princípios, como a Itália, a Espanha e os Estados Unidos, que têm vocação democrática”, acredita Rodrigo Pinho.



“Dentro de um Estado de liberdade democrática, é preciso que tomemos medidas mais duras. Há uma necessidade do isolamento dessas lideranças. Outros países desmantelaram organizações com o isolamento. Temos que pensar em regimes mais rigorosos de pena e precisamos de leis mais rigorosas para dar respaldo a uma atuação mais rigorosa”, afirma o Procurador-Geral de Justiça de São Paulo.



Apesar de não considerar o RDD inconstitucional, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos enxerga o regime diferenciado como um “instrumento terrível, que precisa ser usado com muito cuidado”. “Essa escalada de violência traz junto uma escalada de um pensamento conservador e punitivo e a população sente vontade de um endurecimento indiscriminado das leis, gerando uma deturpação do sistema penitenciário, como aconteceu com a lei de crimes hediondos”, explica Bastos, que lembra que a penitenciária federal de Catanduvas, no Paraná, tem somente 14 celas de RDD entre as 200 disponíveis com segurança máxima.



“A subordinação da lei aos direitos humanos é fundamental. Cada caso contrário mina a confiança da população nas instituições. Por isso, é preciso resgatar a natureza democrática de propostas para a segurança pública que aparecem nos momentos de crise, quando é mais difícil pensar no conteúdo democrático ou não dessas propostas emergenciais e urgentes. Como são tomadas, parece, simplesmente porque o governo foi democraticamente eleito, que qualquer política adotada é democrática. Sabemos que isso não é verdade e que o saldo na balança é negativo; que resultado nesses momentos é perverso”, conclui Paulo Mesquita, também do Núcleo de Estudos da Violência da USP.