Justiça ordena que Bush aplique Convenções em Guatánamo

Todos os presos políticos da base norte-americana de Guantánamo (Cuba) e sob custódia militar dos Estados Unidos no mundo terão direito de ficarem protegidos pela convenção de Genebra.

Isto está definido em um memorando de duas páginas publicado pelo Departamento de Defesa e elaborado pelo subsecretário do departamento, Gordon England. O memorando é uma mera informação para os comandantes militares sobre a decisão adotada no final do último mês pela Corte Suprema americana. "Peço que sejam revisadas imediatamente todas as diretivas, regulamentos, políticas, práticas e procedimentos sob seu âmbito – o de cada comando – para que garantam que sejam cumpridas as normas do artigo três comum – às convenções de Genebra -", diz o memorando.

No dia 29 de junho, a Corte Suprema impôs a maior derrota judicial ao governo dos Estados Unidos desde o início da guerra contra o “terrorismo” ao declarar ilegais os tribunais militares especiais criados para julgar os presos políticos na base de Guantánamo. Em sua decisão, o Supremo afirmou que estes tribunais violam o direito militar norte-americano e as quatro convenções de Genebra que regulam o tratamento aos prisioneiros de guerra. O porta-voz da Casa Branca, Tony Snow, disse após conhecer o documento que isto não representa uma mudança de política, pois sempre dispensou aos prisioneiros um tratamento “humano”.

O porta-voz da Casa Branca também afirmou que o Governo trabalhará com o Congresso norte-americano para estabelecer uma legislação sobre o assunto. Por outro lado, Snow afirmou que os esforços para esclarecer os direitos dos prisioneiros não mudam a determinação do presidente americano, George W. Bush, de trabalhar com o Congresso para permitir que o governo siga em frente com os tribunais ou comissões militares para julgá-los. A divulgação do memorando do Departamento de Defesa coincide com o início das audiências no Comitê Judicial do Senado sobre as formas de julgamento dos prisioneiros.

O senador republicano e presidente do Comitê, Arlen Specter, disse que não vai ser dado "um cheque em branco" ao Departamento de Defesa. Já o senador democrata Patrick Leahy afirmou que as comissões militares "não devem ser uma paródia" e que deveriam ser "consistentes com os altos padrões da Justiça norte-americana, que vale a pena proteger". A base de Guantánamo foi construída para manter presos cerca de 500 combatentes afegãos. Na unidade militar dos Estados Unidos situada no território de Cuba foram erguidas celas ao ar livre de quatro metros quadrados com paredes de arame e teto de metal, conhecidas como Acampamento Raios-X.

Decisão judicial

Uma instalação permanente com capacidade para 600 pessoas conhecida como Campo Delta também foi construída, para onde os presos políticos foram transferidos em abril de 2002. Os vinte primeiros prisioneiros chegaram em 11 de janeiro de 2002. A forma como foram transferidos, trancados, encapuzados e sedados mostrou como o tratamento dispensado pelo regime norte-americano era “humano”. No início, o governo dos Estados Unidos os qualificou como "combatentes ilegais" para não oferecer o tratamento de prisioneiros de guerra, que têm direitos estabelecidos pelas Convenções Internacionais.

Mesmo tendo admitido, pouco tempo depois, que os detidos estariam amparados por estas Convenções, o país decidiu que os “terroristas” ficariam excluídos desta condição. Até 2006, haviam passado pelas instalações cerca de 800 prisioneiros políticos de 42 países, reduzindo-se paulatinamente o número a partir de 2003 até os aproximadamente 500 que ainda permanecem na prisão. Nenhum deles foi acusado nem pode ser representado por um advogado. A primeira decisão judicial sobre a situação foi tomada em 31 de julho de 2002 pela juíza federal de Columbia Colleen Kollar-Kotelly, que determinou que o sistema legal norte-americano precisava de jurisdição sobre as pessoas detidas em Guantánamo.

Advogado

O governo recorreu da sentença e, em 11 de março de 2003, o juiz federal Raymond Randolph confirmou a decisão judicial anterior ao considerar que, como a soberania da base alugada pelos Estados Unidos está nas mãos de Cuba, os tribunais norte-americanos não têm jurisdição. O vazio legal no qual os presos políticos estavam motivou, em 10 de novembro de 2003, a aceitação da Suprema Corte de estudar a legalidade de mantê-los presos e sem acesso aos tribunais norte-americanos. Em 18 de dezembro um tribunal federal de apelações de San Francisco deu opinião favorável ao direito de defesa dos detidos.

Pouco antes, em 4 de dezembro, o Departamento de Defesa tinha concedido pela primeira vez um advogado militar ao australiano David Hicks e nos meses seguintes foi determinada a defesa para dois iemenitas, entre eles Salim Ahmed Hamdan, e um sudanês, que seriam julgados por um tribunal militar. Em 28 de junho de 2004, o Supremo decidiu que os detidos podiam apelar perante os tribunais contra sua prisão por tempo indeterminado. No entanto, dava razão ao governo ao determinar que, por segurança nacional, podia deter de forma indefinida "combatentes inimigos". Em 30 de julho, as juntas militares começaram a funcionar, encarregadas de determinar se um detido podia ser considerado "combatente inimigo". Em 24 de agosto começaram as vistas preliminares do primeiro dos quatro julgamentos militares.

Apelações

No final de 2004, um relatório da Cruz Vermelha Internacional e o vazamento de memorandos do FBI, a Polícia Federal norte-americana, reconheciam o uso de táticas de coerção psicológica e física equivalentes a torturas na base. O governo norte-americano recebeu um novo golpe em 31 de janeiro de 2005, quando uma juíza federal declarou que as juntas militares eram inconstitucionais. Mas, durante o primeiro semestre de 2005, o governo agilizou os trabalhos das juntas militares, cujas normas permitiriam libertar ou transferir a outros países alguns dos prisioneiros.

Para agilizar e centralizar trâmites, o presidente Bush promulgou uma lei em dezembro de 2005 que dizia que as apelações seriam vistas em tribunais federais em Washington e descartava as cortes de menor categoria. Em 3 de março de 2006, o governo norte-americano acatou uma decisão judicial e divulgou os nomes de 317 detidos que estão ou estiveram em Guantánamo. Em 29 de junho, a Suprema Corte decidiu que os tribunais militares dispostos pelo presidente Bush para os detidos não eram legais porque com isso excedia suas atribuições em tempos de guerra, mas não chegou a considerar a legalidade do encarceramento por tempo indeterminado.
_________
A Convenção de Genebra referente ao tratamento dado aos prisioneiros de guerra foi aprovada em 12 de agosto de 1949, no marco de convenções destinadas a proteger as vítimas dos conflitos armados. Veja detalhes do documento:

QUANDO A CONVENÇÃO É APLICADA?
De acordo com o artigo segundo do texto, a Convenção será aplicada "em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que surja entre duas ou várias das Altas Partes Contratantes, mesmo que uma delas não tenha reconhecido o estado de guerra".

Além disso, terá vigência "em todos os casos de ocupação total ou parcial do território de uma Alta Parte Contratante, ainda que a ocupação não encontre resistência militar".

A QUEM BENEFICIA?
Segundo o artigo quarto, são prisioneiros de guerra, entre outros, os militares das partes em conflito, os membros das milícias e corpos de voluntários que integrem essas forças armadas e os integrantes de outras milícias e corpos de voluntários, sempre que estejam sob comando de um superior, levem um distintivo reconhecível a distância, armas à vista e dirijam suas operações em conformidade com as leis e costumes da guerra.
Em caso de dúvida, o artigo quinto estabelece que pessoas que cometerem ato de guerra ou que caírem em poder do inimigo serão beneficiadas pela proteção da Convenção, à espera de que um tribunal competente determine sua condição.

QUAIS AS GARANTIAS DOS DETIDOS?
Artigo terceiro: São proibidos "os atentados contra a vida e a integridade corporal", "os atentados contra a dignidade pessoal, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes", assim como "as penas ditadas e as execuções sem julgamento prévio perante um tribunal legitimamente constituído".

Artigo 13: Os prisioneiros de guerra deverão estar protegidos especialmente contra todo ato de violência ou intimidação, insultos e curiosidade pública.

Artigo 17: O prisioneiro só terá obrigação de declarar, quando interrogado, seu nome e sobrenome, sua graduação, a data de nascimento e seu número de identificação ou equivalente.

Artigo 18: Todos os documentos e objetos de uso pessoal – exceto armas, cavalos, equipamento militar e documentos militares – ficarão em poder dos prisioneiros de guerra.

Artigo 21: Os prisioneiros de guerra somente poderão ser confinados em estabelecimentos em terra firme e com todas as garantias de higiene e salubridade. Exceto em casos justificados pelo interesse dos prisioneiros, estes não serão internados em penitenciárias.
Os prisioneiros confinados em regiões maléficas à saúde ou cujo clima seja prejudicial serão transferidos, o mais rápido possível, a outro lugar.

Artigo 25: As condições do alojamento de prisioneiros de guerra serão tão favoráveis como as das instalações das tropas da potência que os detém na mesma região.

Artigo 26: Os prisioneiros gozarão de uma porção diária de alimentação básica para se manter em bom estado de saúde e que leve em conta seu regime alimentício habitual. Receberão água potável suficiente e está autorizado o consumo de tabaco.

Artigo 52: Nenhum prisioneiro terá que desempenhar um trabalho considerado humilhante para um militar da potência que o detém.

Artigo 78: Os prisioneiros poderão apresentar às autoridades militares solicitações sobre o regime de cativeiro.

Artigo 79: Os prisioneiros podem escolher livremente e por votação secreta, a cada semestre, seus representantes perante as autoridades militares, as potências protetoras, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e qualquer outro organismo.

Artigo 99: Nenhum prisioneiro poderá ser julgado ou condenado por um ato que não seja proibido pela legislação da potência que detém ou no direito internacional vigente quando cometer tal ato.

Artigo 118: Os prisioneiros de guerra serão libertados e repatriados, sem demora, após concluir as hostilidades.

Artigo 121: Toda morte ou ferimento grave de um prisioneiro de guerra, causada, ou suspeita de ter sido causada, por uma sentinela, outro prisioneiro ou qualquer outra pessoa, e todo falecimento cuja causa seja ignorada serão investigados pela potência que detém.
Com agências