Opinião da UNEGRO Sobre as Políticas de Reparação

No debate eleitoral e, posteriormente, no debate que o movimento negro brasileiro fará por ocasião do "Congresso Nacional das Organizações do Movimento Negro", reparação será um dos temas principais, visto que

Em resposta ao questionamento do pensamento da UNEGRO sobre reparações gostaria de tecer alguns comentários com o objetivo de contribuir com a elaboração de nossa opinião. Tenho certeza de que essas palavras não esgotarão as inquietações que esse tema suscita em nossa militância, aliás, como fora dito, não é esse o objetivo. Para isso temos que aprofundar nossa leitura. Acredito que estabelecendo um fórum de debates conseguiremos encontrar várias respostas e nivelarmos nossas compreensões acerca do racismo no Brasil e as possibilidades de sua superação.

Não há uma opinião coletiva da UNEGRO sobre o conceito de reparação, nossos militantes e membros da coordenação, ao longo dos 18 anos de existência da entidade, não produziram textos refletindo sobre esse tema, nossas abordagens se concentram na esfera das ações afirmativas, nas políticas públicas e na crítica ao Estado. No entanto, conhecendo e militando na UNEGRO nos últimos quinze anos, é possível compreender o pensamento médio da entidade sobre reparação. Seguem, abaixo, considerações para formulação do conceito em quatro pontos básicos que correspondem ao nosso pensamento, estratégia e tática política:

1 – Nenhuma soma pecuniária repara os 350 anos de tráfico transatlântico, assassinato, tortura, mutilação, estupro, humilhação, despersonalização, exclusão da população negra do projeto nacional iniciado em finais do século XIX, genocídio físico promovido pelo Estado e violência policial, além de várias práticas da elite e do Estado para excluir e desumanizar a população negra. O Brasil necessitaria de, no mínimo, 506 anos de plena cidadania para toda população. Assim poderia reparar os erros do passado e desconstruir as estruturas e superestruturas racistas que suportam as desigualdades sociais relacionadas às escolhas equivocadas do passado e que perduram no presente.

2 – Partindo desse princípio, reparação significaria o Estado brasileiro e a elite nacional interceptarem a orientação racista do projeto político nacional. Nesse caso estariam "mudando a rota", revendo suas práticas e corrigindo as distorções provocadas por elas. Podemos considerar distorção a imensa clivagem sócio-econômica entre negros e brancos, retro-alimentadas pela classe dominante, cuja finalidade é manter a hierarquização social entre ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres e outras diferenças. Assim, inviabiliza a unidade dos oprimidos e continuam reinando.

3 – O desdobramento dessa mudança de rota seria o oferecimento de políticas públicas sociais universais que atinjam a população negra dando a ela acesso ao trabalho e renda, saúde digna, educação da pré-escola à universidade, casa para morar, esgoto, acesso aos equipamentos culturais, equipamentos de esporte e lazer e outras benesses e direitos que a sociedade desfruta. Além de um adicional (políticas focalizadas) que cumpriria o objetivo de combater as
desigualdades econômicas e sociais, visto que elas não diminuem somente com a universalização das políticas sociais.

4 – Por isso, aos negros e negras brasileiras reparar deve ser mudar, transformar, revolucionar, socializar os bens e as riquezas produzidas, rever o contrato social que regula nossas vidas em
sociedade.

Nem sempre no interior do movimento negro o conceito de reparação se aproxima ao indicado nos quatro pontos acima. O conceito não é universal e determinante, comporta variáveis cognitivas e reflexão sobre sua viabilidade, razão pela qual pode servir a vários e
diferenciados propósitos. Entendo que não há leitura monolítica em nenhum tema debatido pelo movimento social brasileiro. Porém devemos lembrar que a diferenciação na determinação do conceito e na condução do debate político pode encobrir concepções, ideologias, projetos e idiossincrasias políticas contraditórias – às vezes as diferenciações poder corresponder ao método utilizado. Importante, também, compreender a inexistência de neutralidade e a possibilidade de flexibilização dos conceitos, visto que são ferramentas, utilitários, peças que são empregadas para um fim político, ideológico, científico etc.

Vejamos o exemplo dos africanos e judeus que utilizam o conceito para respaldarem discursos estrutural e conjuntural, respectivamente. Durante a “III Conferência Mundial Contra o Racismo,
a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas”, os países africanos pautaram o tema. Exigiam reparação pelos prejuízos causados ao continente devido ao saque de seres humanos durante o período da escravidão e ao saque dos recursos naturais durante o colonialismo. Fora lhe suprimida a energia vital, impedindo seu desenvolvimento e prosperidade.

Como forma de reparação a África reivindicava: perdão da dívida externa (nós, da UNEGRO, a consideramos imoral, abusiva e ilegítima, pois os países africanos são os verdadeiros credores pelos motivos expostos acima); acesso às técnicas e às informações; investimento a fundo perdido em infra-estrutura; acesso a medicamentos, pois as transnacionais farmacêuticas, com apoio de seus respectivos governos, desejavam lucrar economicamente com a pandemia da AIDS que assola o continente africano. Vê-se nesse caso, um profundo desejo de mudança, para transformar o continente e a vida das pessoas que nele habitam, ainda que tais exigências firam princípios e sustentáculos do capital. Enquanto os judeus trabalharam o conceito de reparação como instrumento de resgate dos prejuízos morais, políticos e pecuniários impostos pela perseguição e violência nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

O primeiro tem uma perspectiva transformadora, libertadora. Busca resgatar direitos vilipendiados. Trata-se de uma abordagem eminentemente política. Não basta uma soma de dinheiro, a África exige aportes que dêem condições concretas de desenvolvimento e soberania. Enquanto o segundo adota um caráter exclusivamente indenizatório, em nenhum momento questiona o sistema, ao contrário, legitima-o na medida que respalda sua demanda com remédios e argüição jurídica. Nesse caso reparação é sinônimo de indenização, destituída de teor político transformador.

Ao movimento negro, do ponto de vista estratégico, interessa o conceito de reparação ser debatido como instrumento transformador, pois a condição de subalternidade em que a comunidade negra se encontra na pirâmide social é uma construção histórica, sistêmica e estrutural. O racismo é um justificador das desigualdades, serve aos propósitos da elite nacional, constitui um reducionismo político e histórico tratar suas conseqüências como evento conjuntural. Por isso, a UNEGRO não abre mão da compreensão de que junto ao atendimento dos graves problemas que afetam a população negra, temos que combater o sistema como forma de superação do racismo.

No debate eleitoral e, posteriormente, no debate que o movimento negro brasileiro fará por ocasião do "Congresso Nacional das Organizações do Movimento Negro", reparação será um dos temas principais, visto que setores do movimento a têm como bandeira fundamental na luta contra o racismo. Será um grande desafio para a UNEGRO contribuir para a politização desse conceito, entendendo que a vitória nesse fórum contribuirá para a consolidação do conceito e, conseqüentemente, com a política do vencedor.

Por fim, a proposta de estabelecer na primeira abordagem valores pecuniários como reparação deve ser compreendido como início de um debate com a população e uma excepcionalidade exigida em alguns casos, cabe à nossa militância e coordenação fazer os ajustes necessários no processo de construção desse debate. Não podemos confundir as idéias da entidade com o estágio de assimilação popular e não podemos totalizar nossas abordagens, sob pena de não conseguirmos dialogar com a massa. Os níveis de compreensão do movimento negro e da população são diferenciados, por isso as mediações devem se adequar aos sujeitos.

Fonte:Edson França