Peru escolhe entre neoliberalismo e mudança

De Lima, para o Vermelho,
Mônica Simioni

O Peru elege hoje (4) seu novo presidente. Um ex-presidente corrupto, líder de um dos partidos mais tradicionais do país disputa com um tenente coronel aposentado, r

Ao contrário dos períodos eleitorais no Brasil, as ruas de Lima estão “limpas”, sem aquela nossa velha conhecida poluição visual. No máximo se encontra uma faixa do aprista Alan García, candidato apoiado pela direita, garantindo “a mudança responsável”. Do nacionalista Ollanta Humala é possível encontrar alguns poucos outdoors no centro da cidade com a promessa: “Futuro”.

Apesar desta distinção, existe uma grande similaridade entre este segundo turno peruano e o brasileiro de 2002, quando Lula venceu o tucano José Serra. Quem não lembra da atriz Regina Duarte na TV, no programa do candidato do PSDB, falando que “tinha medo” do operário inexperiente e agressivo? Era de arrepiar os cabelos.

Assim o candidato aprista tem feito no Peru. García é um ladrão, apoiado pelos setores conservadores do país. Teve sua imagem cuidadosamente construída para poder chegar ao segundo turno. Chegou ao segundo turno ao ultrapassar, por pouco, a ultraconservadora Lourdes Flores, adepta da seita religiosa Opus Dei e de um seleto grupo de empresários e pensadores neoliberais patrocinados por Washington. Seu semblante é o de um homem arrependido, católico, que se preocupa com os milhòes de pobres do país e enfrenta a ameaça autoritária de Humala. Mesmo assim, não convence.

Candidato da mídia

Nesta batalha, cairam como uma luva as declarações de Hugo Chávez contra o aprista no final de maio. Ontem, véspera da votação, vários canais abertos de televisão reprisaram durante todo o dia as falas do presidente venezuelano chamando García de ladrão, ameaçando tirar o embaixador se ele ganhar e se referindo a Humala como “companheiro”.

Por mais que o candidato nacionalista diga que não recebe ajuda financeira da Venezuela, que falou com Chávez apenas uma vez na vida e que não existe apadrinhamento político, isso não repercute na imprensa peruana. E muito pouco na estrangeira.

A mídia brasileira assumiu sua faceta golpista durante a crise política, forçando – sem sucesso – a construção de um cenário desfavorável a Lula. A imprensa venezuelana usa e abusa de mentiras panfletárias para combater o apoio popular a Chávez. A imprensa peruana também arregaçou as mangas para investir contra o tenente-coronel que fala em nacionalização, revisão de contratos, Constituinte e reforma do Estado.

Lendas mirabolantes constaram todos os dias nos veículos de comunicação, reproduzidas pelas agências internacionais para todo o mundo. Em uma delas, que circulou esta semana, um dirigente do Partido Pátria Para Todos (PPT), da Venezuela, em visita fraternal ao Partido Comunista do Peru-Pátria Roja, se tornou um agente bolivariano que teria vindo a Lima gerar uma revolta no dia da votação, junto a outros 5 mil venezuelanos. Ele foi recebido por um dirigente comunista do Movimento Nova Esquerda (MNI na sigla em espanhol) e a imagem dos dois foi difundida pelos meios de comunicação. Houve até o rastreamento de ligações telefônicas e encontros que teriam realizado aqui.

História

A história recente do Peru é marcada por experiências complexas que deixaram marcas profundas na sociedade e explicam a força que a “campanha do medo” tem aqui. O Partido Comunista do Peru-Sendero Luminoso, grupo marxista-leninista-maoísta surgido na cidade de Ayacucho, região dos Andes, atuou entre as décadas de 1980 e 1990 deixando dezenas de milhares de mortos. Em resposta, grupos paramilitares assassinaram outra dezena de milhares.

Segundo o informe final da Comissão pela Verdade e Reconciliação do Peru (CVR), ao todo foram cerca de 70 mil peruanos – entre homens, mulheres e crianças – que perderam suas vidas no conflito armado, 75% dos quais tinham o quéchua como idioma materno, mais da metade eram camponeses e quase 80% viviam em cinco departamentos: Junín, Ayacucho, Huanuco, Huancavelica e Apurímac. Todos, exceto o primeiro, constam na lista dos departamentos mais pobres segundo o Informe sobre Desenvolvimento Humano de 2002.

Segundo Alberto Moreno, secretário geral do Partido Comunista do Peru-Pátria Roja e presidente do MNI, o Sendero Luminoso (SL) é responsável pela melhor propaganda anticomunista no país. Associado a terroristas e assassinos cruéis, o imaginário sobre os comunistas ainda hoje é distorcido, despolitizado e preconceituoso.

Aprismo

O aprismo é um outro capítulo importante. Surgiu na década de 1920 com a atuação de Victor Raúl Haya de la Torre, dirigente estudantil que foi um dos articuladores da fundação da Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra) em 1924 no México. Inicialmente, tinha um programa avançado, baseado em cinco pontos: 1 – ação contra o imperialismo ianque; 2 – pela unidade política da América Latina; 3 – pela nacionalização de terras e indústrias; 4 – pela internacionalização do Canal do Panamá; 5 – pela solidariedade com todos os povos e classes oprimidas do mundo.

No final dos anos 20 e início dos 30, o Apra já era uma frente latino-americana, que passou a influenciar diretamente a política de alguns países, como Costa Rica, Venezuela, Chile, Cuba e República Dominicana. No Peru, o Partido Aprista Peruano foi fundado em 1930.

Haya de La Torre faleceu em 2 de agosto de 1979, depois de ter sido candidato presidencial em 1931, 1962 e 1963, e presidente da Assembleia Constituinte em 1978. Entretanto, a tradição histórica do partido se forjou na clandestinidade e em meio a perseguições, assassinatos de militantes e do estigma de ser inimigo das Forcas Armadas.

Mas em 1985, o carismatico Alan Garcia foi eleito presidente e geriu um governo totalmente ao revés do que propunha. Em cinco anos de governo, o país afundou numa grave crise econômica: a inflação acumulada chegou a 2.178.482%; a perfcentagem de peruanos abaixo da linha de pobreza praticamente triplicou, passando de 16% para 45%, os salários caíram a menos da metade; a dívida externa passou de U$ 13 bilhões para U$ 20 bilhões. Os peruanos iniciaram um movimento de fuga do país sem precedentes.

Além disso, a corrupção também foi gigantesca. Existem diversos casos, cujas investigações se encontram paralisadas, de desvio de verbas públicas e enriquecimento de membros do governo.

Fujimorismo

Em seguida, chegou ao poder o presidente Alberto Fujimori, que afundou ainda mais o país. Além da já tradicional corrupção, o clientelismo e a manipulação política foram mais intensos e respaldaram políticas neoliberais, que acabaram por destruir grande parte da estrutura do Estado. Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunal Constitucional, Jurado Nacional Eleitoral, todos órgãos passaram a ser controlados pelo Executivo.

Como se vê, os anos 80 e 90 deram um duro golpe nos peruanos. Para a classe trabalhadora, as consequências foram ainda mais sérias. As privatizações levaram a demissão de dezenas de milhares. As organizações sindicais ingressaram num período de desmobilização que dura até hoje. A maioria das categorias tem pouca representação e o movimento sindical acaba enfrentando dificuldades para chegar à unidade necessária para articular as reivindicações e bandeiras.

Os vícios nos organismos federais ainda hoje são notórios. E o papel do Estado na sociedade também é limitado. O próprio Escritório Nacional de Processos Eleitorais (Onpe, na sigla edm espanhol) e a organização desta eleição deixam isso evidente. Se houver fraude na votação, a responsabilidade não é da Onpe e sim dos fiscais dos partidos. Ou seja, o Estado se aliena do processo.

A presidente do órgão, Magdalena Chu, explicou ontem em coletiva de imprensa que ao Onpe cabe contabilizar os números e isso está garantido que será feito sem fraudes. Até porque ali estão os observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Parlamento Europeu e de alguns países da América do Sul. Mas fiscalizar e garantir a idoneidade das mesas de votação, por exemplo, não cabe ao Onpe.

Cerca de 16 milhões de peruanos têm a obrigação de votar. Para a grande maioria deles, este é o único momento em que vivenciam seu espírito cidadão. Quem não vota, assim como no Brasil, leva uma multa. Mas aqui é mais simples. Quando o jovem tira seu RG com 18 anos, já está habilitado, com este mesmo documento, a votar. Não precisa ir a nenhum outro órgão se registrar. Até porque este não existe, já que o papel do Onpe é outro.

Um novo Peru

Assim o peruano vai às urnas eleger o seu chefe de Estado nos próximos cinco anos. Ele pode ser um social-democrata carismático, que ficará bem na televisão – quando Alan García sorri chega a lembrar o ex-presidente estadunidense Richard Nixon – e que manterá o país sob o comando de políticas neoliberais. Ainda mais quando seu programa de governo parece ter sido copiado das últimas manchetes dos jornais brasileiros: “Fome zero” e “Água para todos” são algumas das propostas. O que não é uma tática de todo ruim, já que o presidente Lula desfruta de uma apoio de cerca de 54%, segundo pesquisa recente.

Mas o Peru pode ousar novamente eleger um presidente inexperiente, como fez quando escolheu Alejandro Toledo contra García na última eleição. Sim, o Toledo é o presidente mais impopular da história e pouco fez pelo país. Mas é ntambém uma prova de que o peruano não esquece as safadezas e as consequências do governo aprista. O Peru precisa e merece um futuro com melhores perspectivas, elevar-se a outro patamar rompendo com essa triste trajetória política. O país pode e deve se inserir no novo quadro continental, de parcerias entre os governos latino-americanos e de políticas internas avançadas, que visem o povo e não só o Deus capital.