Repressão e clientelismo estrangulam rádios comunitárias

Segundo representantes da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), a repressão é um ato político do Estado, direto (fechamento) ou indireto (omissão na apreciação de a

No início da tarde, quase dez agentes da Polícia Federal acompanhados de um representante da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) chegam ao “estúdio” de uma rádio comunitária em Teresina, capital do Piauí. Gritam pedindo a presença de algum responsável e, diante do absoluto silêncio, arrombam o lugar. Entram e imediatamente algemam – mesmo sem nenhum sinal de resistência – um dos “funcionários”. Enquanto é imobilizado, ele argumenta que a rádio está fora do ar, mas não é ouvido. Logo chega o coordenador da rádio que, antes de ser levado para a delegacia, apresenta uma pilha de documentos enviados ao Ministério das Comunicações há mais de cinco anos e questiona a ausência de resposta para o seu pedido de autorização para funcionamento mesmo depois de tanto tempo de espera.

A passagem, registrada em gravação audiovisual, foi reproduzida nesta quarta-feira (24/05) em audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, como exemplo da repressão sofrida pelas rádios comunitárias. Segundo os representantes da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) que participaram do evento, a repressão é um ato político e tem como principal responsável o Estado brasileiro seja de forma direta (por meio do fortalecimento das ações de fiscalização e repressão) ou indireta (pela omissão do Estado na apreciação de pedidos de implantação de rádios comunitárias).

Este segundo fator é, segundo os radiodifusores comunitários, o principal combustível da repressão, pois uma rádio espera anos por uma resposta do Ministério das Comunicações tem muito mais chances de ser reprimida. Em outra audiência realizada também na Câmara em dezembro do ano passado ( Organizações querem menos repressão e mais autonomia ), o assessor especial da Casa Civil, André Barbosa, reconheceu que há 'má vontade' dentro do Poder Executivo na apreciação dos pedidos para estas emissoras. Essa "evidente morosidade" ocorre, nas palavras do procurador Domingos Sávio, que representou o Ministério Público na audiência desta quarta-feira (24), "por opção do administrador público".

Para o Juiz Paulo Fernando da Silveira, autor de um livro sobre o tema, a demora geral também acontece para fortalecer a lógica clientelista no ato de autorização para a criação de rádios comunitárias. “O Ministério [das Comunicações] tem entre 10 e 15 mil pedidos e o governo não atende, pois muitas vezes decide segurar para usar como moeda de troca política”. A crítica do professor é comprovada por um estudo do assessor legislativo Cristiano Lopes Aguiar que revelou a existência do chamado “sistema pleitos” na pasta em tela. O sistema é a lista de pedidos feitos por políticos para autorizações a serem dadas para rádios comunitárias. Segundo o estudo de Lopes Aguiar, um pedido cadastrado no sistema pleitos tem 4,41 vezes mais chances de ser aprovado do que uma solicitação normal.

Segundo Ricardo Campolim, coordenador da Abraço em São Paulo, outro responsável pela morosidade é a Anatel, que tem atribuição de analisar a viabilidade de radiofreqüência no local onde foi solicitada a criação da rádio. “Hoje, 40% dos 17 mil processos estão parados. E uma das razões é porque a Anatel não faz a verificação da viabilidade técnica. A resposta da Anatel ao ministério sobre a viabilidade de uma freqüência dentro do espectro demora mais de seis meses”.

O juiz Paulo Fernando da Silveira questionou inclusive a diferença de prioridades dada pela Anatel em relação à análise e fiscalização dos processos. “Por que tão poucos funcionários para deferir os pedidos e tantos agentes para fechar rádios?”, perguntou. A deputada Teresinha Fernandes (PT-MA) também questionou a posição da Polícia Federal nas ações de fiscalização. “Falta tanto policial para dar conta dos crimes que precisam da PF e esta instituição destaca agentes para constranger jovens que fazem rádio para a comunidade”.

Direito da população –
Para o juiz Paulo Fernando Silveira, a repressão às rádios comunitárias não é só um problema de abuso, mas de violação de um direito da população. “A Constituição Federal coloca a informação como direito fundamental, a liberdade de expressão da população”. Na avaliação de Silveira, o acesso ao espectro eletromagnético (local por onde trafegam as ondas de rádio e TV) é tão importante quanto a possibilidade de poder beber água em um rio e, portanto, não pode ser cerceado. “Quem pratica crime, o cidadão que quer ter acesso ao seu direito ou o Estado que o impede de fazer isso?”, questionou.

Edilson dos Santos, da Anatel, respondeu afirmando que cabe ao Estado, se há mais demanda do que espaço a ser distribuído, gerir o uso deste bem público. O juiz concordou que o governo deve regulamentar, mas defendeu que o Estado “não pode deixar de atender um pedido, a não ser que seja por motivo justo de acordo com o interesse público”. Segundo esta lógica, caso o governo não respondesse no prazo legal (60 dias) o pedido de uma associação para a criação desta rádio, ela poderia ser colocada no ar. O magistrado citou como iniciativa neste sentido decisão do Tribunal da 4ª região do Rio Grande do Sul, cujo texto proibia que o Estado molestasse qualquer Rádio cuja associação solicitante não tivesse recebido tratamento adequado do Ministério.

No entanto, o que acontece hoje é o contrário. Cada associação que solicita o funcionamento da rádio comunitária precisa vencer todos os obstáculos e lutar para que seu pedido seja atendido e o Estado não assume a obrigação de atestar a impossibilidade da implantação de uma rádio comunitária em determinadas condições. Na avaliação do movimento de radiodifusão comunitária, esta lógica incentiva o clientelismo uma vez que as associações, frente a dificuldade junto ao Ministério, acabam recorrendo aos políticos do seu Estado para garantir a aprovação. Clementino Lopes, presidente da Abraço, lembrou que outra repressão é o cerceamento do direito de defesa a partir da apreensão dos equipamentos, expresso principalmente na criminalização dos responsáveis pelas rádios e na demora da finalização dos inquéritos. “Há inquéritos que demoram até dois anos”, reclamou.

Na avaliação dos representantes da Abraço, o caminho para mudar esta realidade está na alteração da legislação e em opções que teriam de ser feitas pelo governo federal. A primeira seria a publicação do relatório feito por um grupo de trabalho interministerial que apresenta uma série de recomendações visando melhorar a situação das rádios comunitárias no País. O documento foi finalizado há mais de oito meses, foi entregue ao presidente Lula, mas não ainda não veio a público. Um dos maiores críticos do relatório – e de grande parte de suas recomendações – é o próprio ministro das Comunicações, Hélio Costa, político historicamente ligado às emissoras de rádio e TV. São estas emissoras, organizadas principalmente em torno da Associação Brasileira de Empresas de Rádio e TV (Abert) que incentivam, com denúncias frequentes feitas à Anatel, a repressão às rádios comunitárias.

Outra questão que cabe ao governo resolver é a digitalização do rádio. Segundo o procurador Domingos Sávio, todas as soluções para o problema da repressão podem ser inúteis se for concretizada esta mudança tecnológica da forma como está prevista, sem qualquer política por parte do Executivo e voltada somente para a transição das grandes redes comerciais de rádio. “Com a digitalização não vai ser preciso lacrar rádio comunitária, pois o custo do transmissor será de US$ 75 mil”.