Secretário do Itamaraty analisa política externa brasileira

Desafios do Brasil são a redução das enormes disparidades sociais, a eliminação de suas múltiplas vulnerabilidades externas, a construção do potencial do país e a consolidação da democracia em

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores, apresentou, na fria e chuvosa noite de sexta-feira, as linhas gerais da política externa do governo brasileiro, relacionando-as com os desafios internos que o país enfrenta para reverter os altos índices de desigualdade social e o quadro de vulnerabilidade econômica e tecnológica. Falando para um público de cerca de cem pessoas, na reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a convite do mandato do deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), o embaixador defendeu a política externa do governo Lula das críticas que recebeu nas últimas semanas, principalmente a partir do episódio da nacionalização das reservas de gás e petróleo na Bolívia. Segundo ele, a repercussão que se seguiu a esse episódio no Brasil foi uma questão de política interna, contaminada pelo cenário eleitoral, e não propriamente de política externa.

Para estabelecer as relações entre as políticas externa e interna, Samuel Pinheiro Guimarães procurou definir aquelas que considera as principais características do Brasil e do mundo hoje. A grande característica da sociedade brasileira, segundo ele, são as disparidades sociais. Disparidades de renda, de gênero, de etnias e entre regiões do país. Lembrou que o Brasil é hoje o país com maior concentração de renda do mundo, com cerca de 14 milhões de pessoas convivendo com a fome e mais de 72 milhões em situação de insegurança alimentar (segundo pesquisa divulgada no dia 17 de maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE). O grupo mais afetado por essa situação de insegurança é composto por mulheres negras que vivem no Nordeste, um quadro, assinalou, que resume em um mesmo pacote o conjunto de desigualdades presentes no Brasil. “O programa Bolsa Família é um reconhecimento da importância desse tema”, destacou.

Vulnerabilidades externas –
Ao mesmo tempo em que milhões de brasileiros enfrentam diariamente o drama da fome, o Brasil possui a segunda maior frota de aviões e helicópteros particulares do mundo. “Alguém aqui possui um avião particular?” – perguntou Guimarães à platéia. “Ninguém, né. Aqui também não tem ninguém que passa fome. Nós vivemos entre esses dois extremos”, comentou. Aliada a esta situação de vulnerabilidade social, o embaixador apontou uma outra vulnerabilidade que é definidora do que o Brasil é hoje: a vulnerabilidade externa, econômica e tecnológica. Em relação a esse aspecto, ele apresentou uma resposta aos críticos da política externa do governo Lula e, mais particularmente, das viagens do presidente da República ao exterior. “As viagens do presidente à África, ao Oriente Médio e a outras regiões, criticadas por alguns, tem como um de seus objetivos justamente reduzir esse vulnerabilidade a choques externos através da diversificação dos nossos mercados”.

O embaixador citou o caso da febre aftosa, que voltou a atingir o país em 2005, como um exemplo dos efeitos práticos da vulnerabilidade externa. Segundo ele, o impacto da aftosa só não foi maior na nossa economia pelo fato de a carne não estar entre nossos principais produtos de exportação e também pela diversificação da pauta de exportações e dos seus respectivos mercados. Outro elemento que contribuiu para a redução da vulnerabilidade brasileira, acrescentou, foi o fim dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas fez uma ressalva irônica. “Agora falta desinternalizar as idéias (do FMI, obviamente). Quem quiser que me interprete”, brincou. A vulnerabilidade brasileira também é tecnológica. Guimarães citou o recente caso da venda de aviões Super-Tucanos para a Venezuela, inviabilizada pelo governo dos Estados Unidos que não deu a licença para que empresas norte-americanas fornecessem certas peças vitais para o avião.

As potencialidades brasileiras –
“Tivemos aí um negócio de aproximadamente US$ 250 milhões, inviabilizado por conta de um déficit tecnológico de nossa indústria, que depende de empresas e de governos de outros países para fechar certos tipos de negócios”, observou o embaixador. Ele apontou ainda uma outra face dessas vulnerabilidades, caracterizada pelo déficit que nossas Forças Armadas apresentam para defender adequadamente todas as fronteiras brasileiras. Trabalhar pela superação dessas vulnerabilidades, enfatizou, é um dos principais objetivos do nosso governo e de sua política externa. Uma das condições centrais para que isso ocorra é o desenvolvimento das potencialidades brasileiras, defendeu Samuel Pinheiro Guimarães. “O Brasil possui o quinto maior território do mundo, a décima população e está entre os dez maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do mundo. Só três países têm essas características: Estados Unidos, China e Brasil”, resumiu.

Isso faz com que o potencial de longo prazo da sociedade brasileira seja extraordinário. Por isso, apontou, uma das grandes tarefas do governo e do Estado brasileiro é trabalhar para a construção e o desenvolvimento deste potencial. Não é uma tarefa simples, reconheceu. Entre outras coisas, pelo fato de que estes desafios devem ser enfrentados em um ambiente democrático, o que não é nada fácil, considerando as disparidades sociais e regionais que marcam o Brasil. Algumas das críticas desferidas à política externa do governo Lula têm a ver justamente com opiniões divergentes acerca de quais devem ser as linhas estratégicas dessa política. E, em um ambiente democrático, tal diversidade de opiniões é um fator natural e inevitável. Escolhas de prioridades, em um país como o Brasil, dificilmente serão pacíficas. Afinal de contas, cada grupo social organizado vai defender seus interesses. E o imenso potencial da nossa sociedade terá que se desenvolver neste ambiente.

O estado de coisas do mundo –
Mas o desenvolvimento deste potencial também depende do cenário internacional e Samuel Pinheiro Guimarães fez uma rápida avaliação sobre como anda o estado de coisas no mundo. Para ele, uma das principais características deste cenário é a violência e o desrespeito às regras do direito internacional. “Os países mais fortes acham que têm, não somente o direito, mas o dever de impor suas idéias e interesses aos demais países, dizendo como eles devem se organizar e se comportar. Os princípios da auto-determinação e da não-intervenção não são aceitos por estes países e o que vemos hoje é um processo de enorme concentração de poder em nível internacional, em todos os níveis. Só para dar um exemplo, a força militar dos Estados Unidos hoje equivale à força dos dez países seguintes somados”. É neste cenário, que o Brasil procura reduzir suas vulnerabilidades e desenvolver o seu potencial. E os problemas não se reduzem ao poderio político e militar.

Do total de patentes registradas anualmente no mundo, cerca de 90 mil, as empresas norte-americanas registram cerca de 44 mil, ou seja, quase a metade, assinalou. Isso significa uma vantagem competitiva muito grande, pois as patentes significam, entre outras coisas, capacidade de produzir a um custo mais baixo. Um dos resultados do aprofundamento dessa distância entre os proprietários de patentes e os demais é o crescimento da concentração dos mercados, com a formação de oligopólios. O que assistimos hoje, observou ainda Samuel Pinheiro Guimarães, é um imenso progresso científico e tecnológico no centro do sistema e, ao mesmo tempo, uma diminuição da população destes países, especialmente na Europa. A população dos EUA, notou o embaixador, só não diminuiu por causa da imigração. O resultado dessa combinação é uma situação de tensão e instabilidade muito grande no sistema mundial de nações.

Integração sul-americana –
Diante desse cenário, concluiu, a política externa só faz sentido se pretende enfrentar esses desafios e buscar um melhor posicionamento do país no sistema internacional. “Nosso grande desafio é trabalhar para que as regras do sistema internacional sejam mais favoráveis à sociedade brasileira”, resumiu. Neste sentido, a emergência de um mundo multipolar interessa muito ao Brasil, pois aí, a possibilidade de o país desenvolver alianças com outros países é muito maior. Guimarães lembrou os principais pólos que vêm se formando no mundo: América do Norte e América Central, capitaneado pelos EUA; a União Européia (uma estrutura que já conta com uma burocracia de 30 mil funcionários, moeda, parlamento e legislações próprias); a China (país que, há 20 anos, vem crescendo a uma taxa média de 10%, e já se constitui na quarta potência econômica); e a América do Sul, que vem procurando construir um processo de integração física.

O secretário-geral do Itamaraty destacou que essa é uma das prioridades da política externa do governo Lula: a integração física da América do Sul para consolidar um pólo regional capaz de desenvolver a potencialidade de seus países em um mundo multipolar. Ele citou algumas iniciativas que apontam para essa integração: a construção da primeira estrada bioceânica, que vai possibilitar o escoamento da soja brasileira pelo Pacífico (via Peru), a construção da terceira ponte sobre o rio Orinoco (na fronteira com a Venezuela) e o projeto do Gasoduto do Sul impulsionado por Brasil, Venezuela e Argentina. De um ponto de vista mais geral, acrescentou, um dos principais esforços da diplomacia brasileira é a defesa do Direito Internacional, um esforço para que as regras desse direito prevaleçam entre os estados, especialmente os princípios da auto-determinação dos povos e da não-intervenção, particularmente ameaçados nos últimos anos.

Durante sua estada em Porto Alegre, Samuel Pinheiro Guimarães lançou sua mais recente obra, “Desafios brasileiros na era dos gigantes” (Editora Contraponto). No final do primeiro capítulo, ele resume os principais desafios da política externa brasileira em um trecho que oferece uma síntese de sua conferência na capital gaúcha: “Os quatro grandes desafios do Brasil são a redução gradual e firme das extraordinárias disparidades sociais, a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas, a construção do potencial brasileiro e a consolidação de uma democracia efetiva, em um cenário mundial violento, imprevisível e instável”. Para ele, qualquer reflexão sobre uma estratégia de desenvolvimento para o país deve levar esses quatro desafios em conta e qualquer política externa digna deste nome deve encará-los como tarefas prioritárias para a defesa dos interesses do país no cenário global e para a transformação das potencialidades brasileiras em uma realidade.