Pochmann: “De cada 10 ricos do Brasil, seis moram em SP”

O economista Márcio Pochmann, especialista em economia social e do trabalho e ex-secretário Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da cidade de São Paulo – gestão Marta Suplicy (2001-2004) – analisa os efeitos da recente expl

Como o senhor, que já produziu tanta informação sobre a situação social na cidade de São Paulo, vê os episódios desses últimos dias?


Márcio Pochmann:
Não sou especialista dessa temática da violência. Agora, eu acredito que de fato as interpretações e argumentos, que vem à tona de forma muito recente, apenas tocam numa questão que é muito mais complexa. E é bastante estranho a gente estar analisando essa explosão da violência no estado mais desenvolvido da nação.


E quanto às declarações do governador Cláudio Lembo, em entrevista à jornalista Mônica Bérgamo, publicada na Folha de São Paulo hoje, que dizem que a burguesia paulista é "cínica" e que vai ter que "abrir a sua bolsinha" para pagar a conta?


De cada 10 ricos do Brasil 6 moram no estado de São Paulo. Essa situação desses dias é um reflexo, um sintoma, num quadro de regressão que nós estamos vivendo nesses últimos 25 anos.


Que regressão é essa?


De um lado nós estamos convivendo com um regime de acumulação financeira, que vem permitindo a expansão da riqueza com um esvaziamento do setor produtivo.


Quais os resultados dessa acumulação?


Uma acumulação financeira diz respeito a um padrão de desenvolvimento que tem possibilitado praticamente duplicar a quantidade de famílias ricas em duas décadas.


Duplicou?


Duplicou, duplicou. Acompanhado do esvaziamento da classe média e ampliação da base da pirâmide social, ampliação da quantidade de famílias relativamente pobres. Eu estou adotando o conceito de relativamente pobres, que não são os chamados pobres de pobreza absoluta, que é o cara que não tem o mínimo, nem como comer feijão e arroz.


Que dimensão tem esse movimento? Quais são os números conhecidos?


Olha, o principal número diz respeito inclusive ao tipo de ocupação que nós estamos gerando. A cada 10 ocupações abertas no Brasil, 9 são até 2 salários mínimos.


A cada 10 empregos, 9 são até 2 salários mínimos…


A cada 10 empregos novos, 9 são até dois salários mínimos. Então na verdade você está criando uma sociedade polarizada, é cada vez maior a distância entre muito ricos e pobres.


Qual foi o ritmo dessa regressão?

São 25 anos com a economia crescendo 2,6% em média ao ano, o que gera um quadro de regressão social associada, eu diria assim, até regressão econômica, porque o estado de São Paulo, que era o principal estado no ponto de vista das forças produtivas, da potencialidade econômica, está se transferindo de um estado industrial em um estado que regride ao setor primário exportador. As áreas dinâmicas do estado são as áreas voltadas para produção de produtos agrícolas, soja e suco de laranja, para citar dois exemplos.


E o senhor, que foi secretário do Trabalho da cidade de São Paulo na administração passada e que conhece os indicadores sociais, o que pode nos dizer da influência disso nos episódios dessa semana?


A cidade de São Paulo sintetiza essa sociedade, conflagrada e em uma estratificação polar. A cidade concentra a sede das principais empresas transnacionais que operam para a América Latina, é o principal centro financeiro da América Latina, e está convivendo com um processo muito rápido de desaburguesamento da classe média ou, se quiser, proletarização da classe média.


Quando se superpõem os mapas da exclusão social e da violência, há um nexo?

Do ponto de vista da geografia isso parece cada vez mais presente, porque, digamos, um dos estopins da manifestação da violência é, a meu ver, o crescimento da pobreza relativa, isto é, o quanto relativamente eu sou pobre diante do padrão de riqueza que o País, a geografia, o local oferece. Quando a gente olha do ponto de vista da pobreza absoluta, que é aquela linha de miséria, o nordeste apresenta os maiores números. Onde é que estão os pobres absolutos? Estão no nordeste. Agora, quando você olha a pobreza relativa ela está muito mais na região sul-sudeste.


O que o senhor quer dizer é que os mais pobres, os mais miseráveis da cidade de São Paulo, se deparam todo o tempo com a riqueza enorme. Isso pode produzir uma dissonância que é a violência?

Exatamente. É a desigualdade… e a possibilidade de você ter uma mobilidade, uma ascensão, utilizando desvios de curto prazo.


Daí a criminalidade, o narcotráfico…

Exatamente. E nesse sentido tem a ver com a própria sociedade de consumo na qual nós estamos vivendo. A descrença nos valores de fraternidade, solidariedade, a valorização crescente do individualismo, do ter e não ser. E também imagino que essa situação que nós estamos vivendo – eu não sei o perfil dos criminosos, o perfil etário e mesmo sócio econômico do chamado crime organizado – mas a impressão que eu tenho é que se trata de um perfil de um segmento etário relativamente muito novo, que é uma expressão maior dos problemas que afetam a juventude brasileira. A crise de perspectiva, o descrédito em relação ao trabalho como o centro da organização da vida. O trabalho perde centralidade porque, em primeiro lugar, você não tem empregos decentes para a juventude. Os filhos da classe média e ricos estão praticamente abandonando o Brasil: a cada 10 jovens que se formam em nível universitário do Brasil, dois saem do Brasil. É a chamada fuga de cérebros.


De cada 10 jovens, dois estão deixando o País?

Isso, eu diria, diz respeito aos jovens mais integrados na sociedade, disciplinados pela cultura do trabalho, pela escolaridade. Agora, o que tem crescido muito é, sobretudo, a descrença na educação como um valor fundamental de uma sociabilidade e da construção de uma trajetória profissional de médio e longo prazo.

Pobreza extrema, riqueza extrema, violência extrema, enorme fragilidade, inclusive moral, quais foram os componentes principais para essa crise?

Acredito que são efeitos combinados, porque de um lado a gente convive numa sociedade em que a criança pobre tem o risco e o medo de passar fome e o filho da classe média tem o risco e o medo de conviver com o faminto. Então, evidentemente que se combina essa situação. Agora, em momentos agudos como esse, quer dizer, no estado mais rico da nação, onde você tem a elite da polícia, isso está ocorrendo, é um retrato mais amplo da sociedade que nós estamos construindo no Brasil. E as respostas a isso em geral são respostas que pretendem combater pelo efeito e não pela causa, quer dizer, quando a policia entra em jogo evidentemente que é na emergência.
Agora isso é resultado de um processo mais longo que, a meu ver, está associado a essa perspectiva de um crescimento muito baixo e da perda de perspectiva em relação à construção de um projeto nacional que dê motivação e que integre as pessoas do ponto de vista do trabalho e dos valores que dizem respeito à convivência e à sociabilidade, em última análise.

O que teria levado o governador a referir-se tão clara e duramente ao cinismo da burguesia?

O governador talvez possa estar fazendo uma reflexão do que representaram os 12 anos de choque de gestão que o Estado se propôs a fazer, muitas vezes motivado justamente por esse pensamento que acreditava que com menos Estado os resultados seriam mais promissores do ponto de vista do desenvolvimento sócio-econômico. Quer dizer, 12 anos e o estado de São Paulo viu uma regressão. Para você ter uma idéia, o PIB per capita do estado paulista no ano de 2002 é 7% menor do que foi em 1980.

Esse foi o choque?

Esse choque de gestão significa um esvaziamento da capacidade do Estado de fazer intervenções em termos de políticas públicas, e a segurança é uma política pública importante.

Fonte: Terra Magazine