Após oito anos, Chico lança CD com músicas inéditas

Por Edson Wander (Carta Maior)

Chico Buarque volta à música homenageando o Rio, pensando em São Paulo e flertando com o rap a partir da embolada. Disco tem versão com DVD que traz bastidores das gravaçõe

Chico Buarque de Holanda está de volta à música oito anos depois do disco “As Cidades” (BMG). Voltou a compor depois de dedicar-se inteiramente à literatura, o que lhe redeu um premiado livro (“Budapeste”). Das 12 músicas de Carioca, estréia dele na gravadora Biscoito Fino, Chico mostra nove inéditas, duas aproximando-se do rap, estilo que o compositor vinha reconhecendo como "a maior novidade da música brasileira nos últimos anos".

Com a volta ao disco, Chico está falante. A julgar pelas poucas entrevistas que concedeu por ocasião da chegada do disco, está falante como nunca. À revista Trip, ele, confesso defensor da descrimininalização, admitiu que já usou drogas pesadas e voltou a criticar duramente o PT, partido de que sempre fora publicamente simpatizante. Mas, ao jornal Folha de S. Paulo, afirmou votar em Lula de novo. Chico não está falante, porém, ao ponto de entregar-se a maratonas de entrevistas aos jornais, estratégia típica dos lançamentos de grandes estrelas (ou as que pensam ser). Nem precisava, no documentário “Desconstrução”, a versão mais cara do CD, ele fala de toda a concepção do álbum, detalha o jeito dele fazer música, faz piada o tempo todo com os músicos e o pessoal da produção e leva o baixista Jorge Helder às lágrimas, ao revelar a ele que incluiria no disco uma parceria dos dois (“Bolero Blues”).

O documentário, filmado pelo jovem diretor Bruno Natal, parece uma continuidade da série de filmes que Chico Buarque fez com Roberto de Oliveira para TV e virou DVD em três pacotes (o último chegou há pouco nas lojas). As semelhanças estão principalmente no "timing" e na edição do vídeo. E Chico andava de tão modo tomado pelo projeto dos documentários de Oliveira que uma das novas músicas do CD saiu a pedido do diretor (“Ela Faz Cinema”). Mas há um inegável clima de espontaneidade nas gravações dos bastidores da feitura do disco no estúdio, maior até do que o do pacote dos DVDs, revelando um Chico musical como seu público nunca viu.

Ele deixa-se ser filmado o tempo todo, nos mais íntimos momentos no "aquário" do estúdio (na hora de gravar as vozes) até a visita dos netos e a assinatura do contrato com a nova gravadora. Revela que nunca respeitou o tempo dos contratos que as gravadoras estipulavam. "Tipo ‘é pra fazer dois discos em quatro anos’; eu fazia três em cinco. Mas agora que eu tô com 87 anos e 52 discos, acho que eles me toleram mais porque no início era chibata mesmo", brinca. Explica também a longa parceria com o produtor e violonista Luiz Cláudio Ramos (assina a produção musical dos discos de Chico Buarque há mais duas décadas). Chico acha que a parceria é facilitada pelo violão, instrumento que toca (admitindo não dominar bem). "É diferente do que com Cristóvão Bastos e Francis Hime [pianistas, também parceiros], porque, com o Luiz Cláudio ao violão, fica mais fácil discutir minúcias, detalhes harmônicos", afirmou informando que, depois que fechar uma melodia, "todo o resto é com ele [o produtor]".

O cantor e compositor com fama de sério e arredio aparece piadista e brincalhão no DVD do novo CD. Numa das brincadeiras na hora de gravar, Chico Buarque fez um barulhinho com os dentes que atazanou o engenheiro de som, pensando ser defeito dos equipamentos. Chico fala também sobre a forma de ele compor e como anda para ele a relação música e literatura. A resposta já havia sido dada bem antes, em forma de gozadora parábola. Sério, Chico "revela" que na hora de gravar costuma "comprar" músicas de "oito ou nove" compositores anônimos do Rio. Historinha típica de ficção de araque. Fala detidamente de um tal "Armed" (imprime sotaque árabe), "compositor bom, que faz canções assim, no feminino, mas cobra caro pra cacete".

Nos momentos menos gagues da conversa, ele diz que nunca escreveu uma letra sem música, mas o contrário costuma acontecer. Não sabe explicar, mas está convencido de que ter feito "aquele livro" (“Budapeste”) tornou-o melhor compositor. Para ele, música e literatura são universos distintos em forma e conteúdo e que a segunda pode até anular a primeira em certos aspectos. "Esse distanciamento [da música] dá a sensação de estar fazendo uma coisa nova e não de estar continuando uma coisa que foi interrompida. Fiquei com desejo de fazer música depois de tanta literatura, mas já estou completamente músico e, no entanto, tenho que ir à Alemanha [para lançar o livro] e não sei bem mais o que é aquilo", falou o compositor-literato. São vários os momentos em que o público poderá conferir um Chico Buarque inédito nas entrelinhas de seu fazer e pensar musical.

Crítica: cantor volta a esmiuçar a geografia, mas brilha menos
O novo disco de Chico Buarque retoma o jeito do artista fazer uma música de forte conotação geográfica. Geográfica no sentido lato, no sentido dado a este termo por Milton Santos. A geografia da natureza, a geografia humana, a geografia dos sons, das palavras. Ele faz isso desde sempre de forma espalhada, fez isso de forma mais condensada (e globalizada) em “As Cidades”, o disco anterior de 1998. E o faz agora, mirando o Rio por diversos ângulos. Fala de um Rio suburbano (no choro-canção “Subúrbio”, que abre o álbum), um Rio cinematográfico (“Sempre”, canção saudosa de um Rio dos anos 50, feita para o novo filme de Cacá Diegues, “O Maior Amor do Mundo”). O foco é o Rio, mas a homenagem é para a geografia paulista (ainda que ele tenha chamado a arquitetura de São Paulo de "detestável"). É que, em Chico, as geografias estão sempre se cruzando.

Na geografia-síntese do disco, ele está lembrando dele mesmo, da adolescência vivida na capital paulista onde tinha o apelido de "carioca" dado pelos colegas do Colégio Santa Cruz. A geografia paulista aparece no disco em forma de mulher encantada (pela canção “As Atrizes”) e encantadora, na voz de Mônica Salmaso (uma das maiores das nossas novatas) que divide com ele a clássica “Imagina” (de Chico e Tom Jobim). Fala-se nessa música como a primeira composição de Jobim, letrada em 1983 por Chico para o filme “Para Viver um Grande Amor”, musical de Miguel Faria Jr. O cinema é tema de outras faixas no disco e esta “Imagina” é uma das quatro já gravadas antes por outros artistas. Dos 12 faixas, portanto, oito são inéditas (sete, se descontada também “Leve”, o samba abolerado que ele fez com Carlinhos Vergueiro para o primeiro disco-solo da filha deste, Dora Vergueiro).

As outras são “Ode aos Ratos”, um baião dele com Edu Lobo para o musical “Cambaio” (de Adriana e João Falcão), “Dura na Queda”, uma gafieira dele para Elza Soares e Renata Maria, canção com Ivan Lins gravada por Leila Pinheiro no ano passado. De resto, a geografia sonora de Chico Buarque em “Carioca” soa menor do que as que ele já descortinou. E não porque parece menos radiofônica, como ele apontou à Folha reclamando dos críticos, mas porque as novidades melódicas estão menores mesmo do que a prosa afiada dele, que continua intacta; em alguns momentos novamente sublime, como na canção “As Atrizes” (onde versa sobre as atrizes nuas que via nos filmes franceses quando adolescente). O único sopro de renovação propriamente musical vem de forma não completamente nova, já que se vale de uma música já lançada, “Ode aos Ratos”. Ainda assim, rendeu uma das melhores do álbum, com Chico incitando a aproximação da embolada com o rap (união, registre-se, já feita por vários artistas, tanto do rap quanto do Nordeste). É onde Chico usa também a eletrônica, discretíssima, com ajuda do percussionista Marcos Suzano (a convite do produtor Luiz Cláudio). Rap e hip hop são citados também na letra de “Subúrbio”. É o motivo que leva a admitir que a geografia sonora de Chico Buarque brilha menos no novo disco, mas não está congelada.