Artistas de todo País se unem para mudar Ordem dos Músicos

Por Carlos Gustavo Yoda (Carta Maior)

Crise representativa na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) chega no limite e artistas de todo o país, articulados em fóruns, conseguem colocar projetos de mudanças novamen

Que a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) está em crise, não é nenhuma novidade até para quem não tem muito interesse no assunto. Presidida há 42 anos pela mesma figura, Wilson Sândoli, que acumula as presidências do Conselho Federal da OMB, do Conselho Regional Paulista e do Sindicato dos Músicos de São Paulo, a representatividade e atividade da Ordem nunca foi tão questionada. Por meio de fóruns regionais, que criaram o Fórum Nacional Permanente de Músicos, em 2005, no FSM de Porto Alegre, os artistas estão conseguindo, além de tornar o debate público, apoio para aprovar no Congresso as modificações necessárias para a democratização da Ordem.

A atuação da Frente Parlamentar da Cultura no tema começou efetivamente no meio de abril desse ano, quando representantes do Fórum compareceram à Câmara para pedir o desengavetamento do projeto de lei 2838, de 1989. O projeto, que não é o ideal, mas já amplia a participação dos músicos na entidade, tem boas chances de ser aprovado antes das eleições, com votação apenas das lideranças de bancadas.

O projeto modificaria, por exemplo, o mandato dos conselhos para dois anos. Hoje, os mandatos são de três anos, sendo renovados anualmente a partir do quarto ano da primeira gestão. A estrutura é questionada pelos músicos, porque acaba favorecendo a permanência das mesmas pessoas por muitos anos. A composição dos conselhos interfere diretamente na atividade do músico profissional no Brasil porque os órgãos são os responsáveis pela expedição da carteira que autoriza o exercício da profissão em território nacional. São também os conselhos que fiscalizam e autuam as casas que contratam músicos sem a tal carteirinha.

Conforma explicou a assessoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB – RJ), vice-presidente da Frente da Cultura, o principal impasse é um projeto substitutivo apresentado pelo Senado. O relator da comissão é Robson Tuma (PFL-SP), que acatou as propostas dos senadores, desviando o projeto dos interesses dos músicos.

O músico e compositor carioca Tibério Gaspar Rodrigues, representante do Fórum Nacional de Músicos, acredita que o relator está sensibilizando-se com a causa dos músicos, devido ao grande apoio e expressão que o Fórum está recebendo no Congresso e na mídia, e vai acatar as reivindicações da articulação.

“A ordem tem um problema grave e central que é a pouca representatividade que ela alcança. Ela deveria servir para regular e prover benefícios, como cursos e eventos. Mas acontece apenas perseguição, impedindo de trabalhar os músicos que não conseguem adequar-se”, afirma Du Oliveira, do Fórum Goiano de Músicos.

O produtor goiano explica que a Ordem tem uma regra que divide os músicos entre profissionais, aqueles que estudaram e sabem ler partitura, e os práticos, que apenas tocam instrumentos, sem base teórica. E apenas os profissionais têm direito a voto. Para Tibério Gaspar, o processo de eleição é extremamente viciado, e com os currais eleitorais já formados. Ele vê, por isso, a necessidade da urgente aprovação do projeto da Câmara, que pontua justamente na questão de ampliação de participação dos músicos no processo eleitoral da Ordem.

Há cerca de três anos, um repórter da revista Carta Capital, mesmo sem nunca ter tido uma única aula de piano na vida, submeteu-se ao teste no instrumento e foi aprovado. O exame, realizado na escola de música Keyboard, em Jundiaí (SP), foi aplicado pelo próprio delegado regional da OMB, Marcelo Dantas Fagundes. Na noite anterior ao teste, o repórter pediu a um músico que lhe ensinasse os dois acordes (lá menor e sol) da canção “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, de Geraldo Vandré.

Antes mesmo de interpretá-la, o jornalista já podia ser considerado um músico. Depois de pagar uma taxa de R$ 260,00, em dinheiro, e fornecer todos os documentos necessários para a inscrição (quatro fotos 3×4, CPF, RG, carteira de reservista e comprovante de residência), Fagundes emitiu um recibo com carimbo da OMB contendo o nº 24.321, que permitia ao repórter atuar profissionalmente como pianista. Só depois o exame foi feito, e não durou nem cinco minutos. "Toque alguma coisa", pediu o examinador. Pouco depois, o desastre musical foi interrompido pelo delegado regional da OMB com um "já está bom".

Du Oliveira, do Fórum Goiano de Músicos, diz, porém, que a luta não termina com a aprovação dessa mudança: Os Fóruns têm uma proposta própria de lei. Mas a estratégia é aprovar primeiro a que tramita na Câmara há mais de 16 anos. Entre outras bandeiras do Fórum, está a luta pela inclusão de aulas de música na base curricular de todo o ensino básico.

Alienação da classe –
“Estamos em uma campanha muito ampla. Sempre houve uma forte dispersão da classe. A imagem do músico é aquela da figura boêmia, do desinformado, de carreira passageira. Nos anos sessenta, pessoas mais esclarecidas como Edu Lobo, Tom Jobim, Geraldo Vandré, Chico Buarque trouxeram novos pensamentos para além da música. Então veio o golpe. Todas as lideranças foram caçadas. Tornamo-nos submissos. E aprofundou o processo de alienação em todo o Brasil”, acredita Tibério Gaspar.

O carioca entende que os tempos mudaram e a Ordem ficou para trás, com uma regulamentação de 1960. Ele entende que a OMB poderia atuar em questões como a facilitação de importação e financiamento de instrumentos, sistemas previdenciários e de saúde, a questão de educação dos músicos e do ensino da arte nas escolas.

“O país vive uma situação trágica. Temos que pensar os problemas como um todo, que resultam em desigualdade social. E a música pode contribuir demais nesse processo de inclusão e tomada de consciência. Mas, no geral, ela tem servido apenas para dançar, uma dança alienante. Temos que resgatar o papel político do músico. O artista de vanguarda que forma e informa com a sua expressão”, pontua Tibério.

Em março, o Fórum Carioca de Músicos promoveu um grande show público, intitulado Fora de Ordem, que conseguiu atrair novos produtores culturais e entidades da sociedade civil organizada para apoiarem a luta dos músicos. Com essas articulações, o Fórum Nacional está conseguindo envolver a mídia, parlamentares e a sociedade.

“Como é que morre Guilherme de Brito (sambista carioca que faleceu na semana passada) e nós temos de fazer uma vaquinha para poder enterrá-lo? Isso é um absurdo. Uma das maiores referências do samba carioca, parceiro poeta de Nelson Cavaquinho, morreu na miséria. Estão trucidando a nossa memória. Parece que plastificaram tudo com esses americanismos, essa falta de consciência, de pensar no outro”, conclui o carioca, que afirma que o ministro da Cultura, Gilberto Gil, está ajudando na articulação das mudanças.

História –
A Ordem dos Músicos do Brasil nasceu em 1960, por Juscelino Kubitschek, no mesmo ano da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O primeiro presidente foi perseguido politicamente. O atual presidente, Wilson Sândoli, delatou seu único antecessor como comunista. Sândoli assumiu a Ordem, então, como interventor, em 1964.

A OMB possui cerca de 50 mil inscritos em todo o país. Desses, pouco mais de 8 mil estão em dia com as anuidades. Em fevereiro de 2000, o departamento jurídico do Conselho Regional de São Paulo emitiu uma carta cobrando os inadimplentes e informando que aqueles que não quitassem seus débitos ficariam automaticamente suspensos do exercício profissional.

Todo o poderio político de Sândoli é inversamente proporcional ao de sua carreira artística. Ele atuou como crooner de algumas casas noturnas no Centro de São Paulo, entre os anos 50 e 60. O presidente da OMB diz ter gravado um disco em toda a vida, que nunca ninguém sabe qual é, conforme reportagens publicadas na grande imprensa.

Hoje, no quadro dirigente não há nomes expressivos artisticamente. Ao ser criada, em 1960, os conselhos regionais e federal eram compostos pela fina-flor da música, gente como Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnatalli e Francisco Mignone. O idealizador da OMB foi o paraibano José de Lima Siqueira. Ao falecer, na cidade do Rio de Janeiro, em 1985, além de óperas, cantatas e concertos, deixou um currículo de agitador cultural. Compositor, regente, professor e musicólogo, Siqueira criou e dirigiu três orquestras – a Sinfônica Brasileira, a Sinfônica do Rio de Janeiro e a Sinfônica Nacional.

Quem precisa de ordem? –
Nos últimos anos, centenas de músicos conquistaram na Justiça o direito de atuarem profissionalmente sem a licença da OMB. Pernambuco foi um dos primeiros estados que conseguiu articular os artistas em defesa do artigo 5º da Constituição, que garante em seu parágrafo 9º: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

A banda recifense Mundo Livre S/A chegou até a lançar uma música/manifesto, “Muito Obrigado”, no álbum “O Outro Mundo de Manuela Rosário”. A composição narra uma fábula na floresta onde passarinhos que cantavam livremente foram coibidos pelos urubus que decidiram regulamentar o setor.

Entre os refrões que questionavam “quem precisa de ordem para cantar?”, Fred Zeroquatro deixava o recado: “Moral da história – em terra de urubus diplomados, não se ouve o canto dos sabiás”.