Três tempos de uma revolta francesa

O professor universitário Rémy Herrera analisa os três auges da luta popular na França atual: a vitória do voto "não" no referendo do ano passado, a revolta nos guetos suburbanos no final do ano e a mobilizaç&at

O impacto do voto "não": Maio de 2005

No referendo de 29 de Maio de 2005 o eleitorado francês rejeitou a proposta Constituição Européia por 55% dos votos [1] . A proposta destinava-se a tornar lei constitucional a política do neoliberalismo econômico que é há muitos anos defendida pelos libertários da extrema-direita – inclusive nos Estados Unidos. O sonho deles era equipar a Europa com uma Constituição que, ao instalar instituições supranacionais flexíveis, privaria os Estados nacionais da maior parte da sua soberania, e por sua vez reforçaria o domínio do grande capital.

Este projeto foi fortemente promovido pelos monopólios transnacionais, cujas administrações francesas convidavam o público a votar "sim por uma Europa próspera". Isto incluiu a petroleira Total, preocupada com os seus US$ 10,9 mil milhões de lucros em 2004, o mais elevado já alguma vez registrado por uma firma francesa, e que demitindo trabalhadores no território nacional; a firma de cosméticos L'Oreal, cujo diretor-geral é o mais bem pago da França, com US$ 7,9 milhões por ano, e cujo proprietário é "a mulher mais rica da França", com uma fortuna de US$ 13,7 bilhões – enquanto um de cada seis trabalhadores é pago apenas com o salário mínimo e 7 milhões de franceses vivem na pobreza. Há também a Schneider (máquinas ferramenta), cujos acionistas tiveram o maior aumento de dividendos (+64%) e que promove o outsourcing da sua produção; e a firma de armamentos Dassault, que acabou de comprar parte dos meios de comunicação. Esta última bombardeou o público com slogans pelo "sim", tentando manipulá-lo e martelando-o com mentiras.

Os franceses disseram "não". Este voto seguiu linhas de classe. Foi um recordar às elites de que o povo ainda existe, de que as classes populares resistem, e de que o mundo do trabalho pode ser mobilizado. O "não" abrangeu os votos de 80% dos trabalhadores da produção, 70% dos pequenos agricultores, 67% dos trabalhadores de escritório, 64% dos funcionários públicos, mais de 50% dos artesãos, pequenos lojistas e profissões intermediárias. Ele ganhou os votos de 66% das famílias com rendimentos mensais inferiores a US$ 1800, 75% dos licenciados, e 71% dos desempregados.
Este resultado foi produto da consciência, resistência e unidade das classes populares. Foi a sua primeira e grande vitória numa confrontação com o neoliberalismo desde as grandes greves de 1995.

Este "não" foi uma rejeição daqueles – quer nos partidos de direita quer na "esquerda" neoliberalizada – que ao longo dos últimos 20 anos manipularam o país entregando-o ao saque dos especuladores. O povo francês sabe quanto perdeu através da destruição de serviços sociais efetuada pelos partidos da direita e extrema-direita no poder ("reforma" das pensões sob o governo do primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin); mas também não esqueceu que o neoliberalismo foi estabelecido em França a partir de 1984 pelos "socialistas" presidente Mitterrand e primeiro-ministro Laurent Fabius — seria mais preciso chamá-los membros do Partido Socialista (PS) ao invés de verdadeiros socialistas.
Alternar governos entre o PS e a direita, ambos cumprindo o programa neoliberal, não proporcionava alternativas reais mas apenas tons de diferença nas suas retóricas. Era essencial para a classe dominante que as forças social-democratas adotassem o neoliberalismo e executassem uma destruição dos ganhos sociais dos trabalhadores, impondo-se aos sindicatos paralisados pelo governo PS.

O povo francês torna-se cada vez mais consciente de que há uma estreita conexão entre o neoliberalismo, o qual pode ser definido como o poder das finanças, e a hegemonia estadunidense. A maior parte dos donos do capital dominante, em escala mundial, estão baseados nos Estados Unidos. A "globalização" foi imposta, a partir dos Estados Unidos, especialmente depois do Fed americano ter aumentado unilateralmente as taxas de juro, em outubro de 1979.
A Europa, hoje em construção sem os seus cidadãos, está destinada a servir os interesses do grande capital europeu ocidental – o mesmo que, desde a queda do Muro de Berlim em 1989, tem transformado as economias do Leste Europeu em subsidiárias subservientes. Orientadas para o livre mercado e para os EUA desde a sua origem, após o colapso da URSS estas forças européias dominantes limitaram suas ambições a uma defesa prudente dos seus interesses em subordinação ao capital financeiro estadunidense, à sua estratégia neoliberal favorável à guerra e aos instrumentos utilizados para forçar sua hegemonia: a Otan para o domínio militar; o FMI-Banco Mundial-OMC para o domínio econômico.

Os europeus não apresentaram qualquer resistência significativa — afora alguns discursos no Conselho de Segurança das Nações Unidas — aos crimes e saques perpetrados pelo capital financeiro, cuja ferramenta é a administração Bush. Na França, havia um consenso entre o PS e a direita em que o Tratado de Maastricht, um modelo de regionalização neoliberal, fosse adotado para o Mercado Comum em 1992, o qual também decidiu entrar na guerra contra a Iugoslávia em 1999, outra submissão à estratégia americana ou atlantista. Esta aliança entre as classes dominantes da Europa e a dos Estados Unidos (com os quais o Japão está associado) é dirigida basicamente contra os povos do sul (incluindo a China). A ideologia da classe dominante justifica isto com os valores "democráticos" que afirma encarnar.

Contudo, como mostra a atividade pós-referendo, a democracia burguesa, tal como funciona em França, é fictícia. Quase toda a coleção de políticos franceses tradicionais apoiou a Constituição Européia. Todos eles foram batidos. Ainda assim, todos permanecem no poder: Jacques Chirac permanece como presidente, com apenas 24% de aprovação nas pesquisas de junho de 2005; Nicolas Sarkozy, chefe do principal partido de direita (UMP), François Hollande como cabeça do PS (com uma popularidade classificada nos 35% em meados de 2005, mais baixa do que a dos líderes dos partidos Comunista e Trotskista) [2] .
Se, para a grande maioria do povo francês, a democracia está reduzida a um pequeno passeio silencioso até à urna eleitoral num domingo a cada 18 meses, para ficar na fila de voto (em silêncio), para anuir com a cabeça (em silêncio) quando o seu nome é chamado, para deslizar um envelope dentro da caixa de votos (em silêncio) e para voltar para casa (em silêncio), sem que nada mude, então esta democracia é muito barulho por nada. Mas a burguesia está no poder, e não tem intenção de abandoná-lo.

Um leitor que não seja especialista em política francesa pode pensar que a nomeação de Dominique de Villepin para o posto de primeiro-ministro, em 31 de maio de 2005, após a vitória do "não" no referendo, significaria uma mudança de rota nas relações entre Paris e Washington. Não foi este o líder político que, apenas uns poucos meses antes, no Conselho de Segurança da ONU, levantou-se contra a administração Bush e opôs-se à guerra ao Iraque? Não fez ele sua primeira prioridade o combate ao desemprego? [3] Villepin simplesmente reutilizou os velhos slogans não verdadeiros da campanha de Chirac (do qual ele é um fiel partidário): reduzir a "divisão social". Mas é pelo ataque a leis do trabalho e da segurança social que ele planeia criar empregos e reforçar a coesão social, isto é, através das mesmas políticas neoliberais que estão nas raízes dos problemas que diz estar a resolver.

A perspectiva do governo é não só mais neoliberalismo como também, apesar das aparências, mais atlantismo. Inicialmente, o povo francês ficou sabendo, com surpresa, que uma base militar conjunta franco-americana funcionara em Paris durante quase quatro anos, com agentes do serviço secreto francês e agentes da CIA trabalhando juntos. Alguém pode imaginar que estes colegas estiveram a assistir juntos, na televisão, a famosa confrontação entre a França e os Estados Unidos nas Nações Unidas.
Há mais: o homem forte do atual governo Villepin, o rival de Chirac Nicolas Sarkozy, ministro do Interior e líder do primeiro partido de extrema-direita, apoiado pelos membros da maioria do Parlamento, é pró-EUA. [4] É quase desnecessário acrescentar que ele também é a favor de uma linha dura neoliberal  — assim como o seu irmão, que era, até recentemente, o número dois dos patrões franceses. Finalmente, a amizade entre os capitalistas franceses e americanos é reforçada pela chegada dos ministros pró-EUA das Finanças, Orçamento e Comércio Exterior.

A entrada em ação do duo Villepin-Sarkozy foi então um pouco mais do mesmo. Enquanto aguardava o fim do mandato presidencial em 2007, de Villepin abrigava a esperança de atrair votos da esquerda prometendo mais empregos, enquanto Sarkozy falava diretamente à direita utilizando as questões da segurança e do combate à imigração, prioridades da extrema direita de Jen-Marie Le Pen [5] . Em Julho de 2005 e depois, Villepin anunciou novas privatizações, e Sarkozy novas deportações de trabalhadores sem-documentos.

Que lições a esquerda progressista poderia retirar da vitória do voto "não"? Primeiro, que a vigilância das bases aos sindicatos e partidos pró-classes trabalhadoras é essencial para impor uma política democrática às suas lideranças, as quais são influenciadas pelas pressões neoliberais da burguesia. Foi o que aconteceu quando os militantes da Confederação Geral do Trabalho (CGT), a principal central sindical dos trabalhadores franceses, próxima aos comunistas com a sua mobilização reverteram a tendência da sua liderança do "sim" para o "não" no referendo.
A segunda lição é que, quando a liderança de um sindicato ou partido de trabalhadores se torna outra vez aquilo que nunca deveria ter deixado de ser, ou seja, líderes combativos de organizações de classe, ela pode rapidamente recuperar a confiança e o apoio das suas bases. Ao retomar suas posições de defesa dos interesses da classe operária e opor-se ao desvio direitista da social-democracia, os líderes do Partido Comunista Francês (PCF) adotaram a boa opção de apoiar o voto "não". Resultado: foram seguidos por 98% dos seus membros na votação do referendo — a mais forte proporção de todos os partidos.

Na situação francesa, o PCF foi o centro organizativo decisivo do voto "não" de esquerda durante a campanha. Sem a logística local e material que o PCF trouxe para os demais componentes progressistas do voto "não", a vitória indubitavelmente não teria sido possível. Talvez pela primeira vez em França, foi aberta uma oportunidade histórica para uma união da esquerda com apoio popular. É vital não desperdiçar esta oportunidade, em particular com criticismos excessivos ou com alianças regressivas. Exemplos desta última são alianças eleitorais com os pró-"sim" (e pró-EUA) na liderança do PS — estratégia atual do PCF — e com a liderança neoliberal fabiusiana pró-"não" (e pró-EUA) do mesmo PS — estratégia da LCR. Não há certeza de que as forças de esquerda evitarão estas armadilhas na perspectiva da eleição presidencial de 2007.

O levante nos subúrbios: outubro-novembro de 2005

Muito tem sido escrito, dentro e fora da França, para caluniar os eventos que a mídia chamou de "insurreição dos subúrbios" ou "guerra de guerrilha urbana", os quais tiveram lugar em 2005 entre o fim de outubro (após a morte em condições suspeitas de dois jovens perseguidos pela força policial em Clichy-sous-Bois, perto de Paris) e o fim de novembro (após o governo estender o estado de emergência por três meses) [6] . Esta distorção atingiu um nível ridículo quando as embaixadas de vários países publicaram instruções de segurança para os seus nacionais residentes em território francês. A França não estava em chamas.

As desordens ocorreram apenas dentro ou próximo de "cités" ou distritos dos subúrbios onde um certo número de famílias mais pobres são confinadas em torres e muralhas de cimento [7] . Os jovens que se revoltaram contra a ordem estabelecida focaram seu ataque contra propriedades tangíveis, incendiando carros aos milhares, delegacias de polícia, centros comerciais, bancos e assim por diante, mas não contra pessoas — exceto a força policial. Muitas vezes sem aceitar as formas de violência gratuita que assumiu — particularmente quando propriedade pública (escolas, transportes públicos) era afetada –, grande parte da França compreendeu esta revolta e, na verdade, considerou a explosão como absolutamente inevitável.

Todos sabemos que a sociedade (capitalista) de que somos parte nada oferece a esta juventude: nem condições habitacionais decentes, nem educação que leve a emprego estável, nem esperança de avanço social, nem reconhecimento satisfatório; nem sequer quer ouvi-los. A conexão mais concreta que estes jovens mantêm com o Estado (capitalista) consiste em serem detidos, questionados e revistados pela força policial, por vezes com brutalidade e sempre com intimidação e humilhação.

Muitos observadores manifestaram-se, corretamente, contra a repressão direcionada aos jovens. Mas em geral fizeram-no concentrando suas críticas sobre o ministro do Interior, Sarkozy, um candidato à eleição de 2007. Sua demissão, só por si, não teria obviamente resolvido as dificuldades dos subúrbios. As provocações da Sarkozy, que afirma querer "limpar com jatos de água" as cités da "ralé" que "as polui", foram recebidas pelos habitantes destes distritos como os insultos que pretendiam ser, mas também como uma demonstração de ódio contra os pobres em geral. A classe trabalhadora como um todo, todos aqueles que padecem e resistem à ofensiva destruidora do neoliberalismo, sentiu que estava entre os seus alvos.

Os observadores que interpretam a revolta unicamente através da estrutura de raça e de religião esquecem que na suas raízes esta rebelião coloca um problema de classe. Foi uma rebelião dos filhos das pessoas comuns, cujas condições de vida são inseguras e que aprendem o que é a luta de classe a partir dos choques de um Estado repressivo contra eles: (in)justiça sumária com sentenças dadas logo na primeira audiência em tribunal, por vezes na noite da detenção, com punições desproporcionais — tais como um ano de prisão por incendiar latas de lixo, ou a deportação de possuidores de visto de residência que são apanhados durante os tumultos — restabelecimento da dupla penalização, com prisão seguida de deportação.

Durante e após o 8 de Novembro de 2005, o rebeldes enfrentaram o estado de emergência nas "zonas sensíveis". Esta lei libera as autoridades administrativas do princípio da legalidade que habitualmente governa suas ações, e estende seus poderes na forma de proibições ao movimento das pessoas, prisão domiciliar de pessoas cuja atividade prove ser perigosa para a ordem, fechamento de áreas de esporte e proibição de reuniões suspeitas de manter a desordem, revista de lares a qualquer hora do dia ou da noite, controle da imprensa, do rádio e cinema. Também permite que tribunais militares julguem pessoas por crimes e ofensas abrangidas pela lei civil [8] . Anteriormente o governo francês recorrera a estas leis apenas contra os argelinos (1955) e os kanaks (1985) — mas não chegou a utilizá-las em território metropolitano, nem mesmo em 1968 [9] .

A repressão que se abateu sobre estes jovens é repressão de classe, dirigida contra esta classe urbana subprivilegiada, quer seja descendente de pais franceses ou de imigrantes ou estrangeiros. Que um certo número deles são de origem estrangeira (norte-africanos e subsaarianos, especialmente) não elimina o fato de que o ponto em comum daqueles que se revoltaram é a pobreza. Esta repressão de classe, agravada pelo ódio racial da pequena elite rentista francesa, pode ser explicada, entre outras coisas, por um fato que muitas vezes é escondido.

Pelas suas lutas, mesmo no fogo dos acontecimentos, estes jovens — que também estão incluídos no povo francês e na sua vasta maioria de "pessoas comuns" — são os portadores de uma alternativa à atual sociedade. Esta alternativa não é nem teórica nem conceitualizada, nem sequer está clara, mas é praticada na dura realidade das cités — fracassos escolares, discriminação, desemprego, habitação ruidosa e deteriorada, mal servidos por transporte público demasiado caro, entre todas as escassas infraestruturas sociais e culturais. Isto é a antítese do apartheid urbano-racial-social pregado pelo xenofóbico e reacionário projeto das elites francesas: manter setores inteiros do povo no desemprego e na pobreza, e saque imperialista do sul [10] . A alternativa que está a ser construída hoje nestes subúrbios pobres, e pela qual estes jovens combatem na primeira linha, é a de uma França etnicamente mestiça, aberta para o mundo — especialmente para o Terceiro Mundo —, uma França forte e orgulhosa da sua diversidade, a crescer mais diversa. A grande maioria dos jovens que se levantaram são franceses e não têm necessidade de "serem integrados". Eles precisam ser reconhecidos pelo que são e pelo que fazem: são franceses, estão construindo a França de amanhã, uma sociedade de aceitação mútua, inter-racial, cosmopolita e tolerante.

Estamos longe do estereótipo de um povo francês racista, apresentado pela mídia dominante e proposto pela Frente Nacional. Nos distritos pobres, a enorme maioria das pessoas comuns fez a sua opção: com coragem, tolerância e respeito mútuo, aceitaram cada um dos outros e construíram uma vida em comum. São estas pessoas dos subúrbios, a sofrerem o fardo dos desastres sociais provocados pelas políticas neoliberais, que confrontam Le Pen — e os seus substitutos da direita "moderada", através dos quais ele exerce sua influência. Le Pen se construiu sobre o nauseabundo esterco da história da burguesia francesa — o da escravidão, colonização, colaboração com o nazismo e com o atual imperialismo. Ele corrompeu aqueles a quem o neoliberalismo empobreceu. O seu atual peso político deve-se não ao suposto racismo do povo francês e sim à reação das fracções extremistas da burguesia francesa em relação àqueles que adotaram a opção anti-apartheid, já praticada pelos jovens dos subúrbios. E as vitórias obtidas contra ele em 2002 — nas quais também participou esta juventude multi-colorida, os mesmos que souberam o suficiente para se mobilizarem e dizerem "não" à Constituição Européia –, são decisivas para a defesa dos valores da república.

Muitos jovens são hoje completamente excluídos pelo movimento trabalhista francês das lutas emancipatórias. As escolas não lhes ensinam a história destas lutas, e ainda menos daquelas dos povos do sul. Os partidos de trabalhadores e os sindicatos tampouco os educam. No entanto, o mais sério é que muitos militantes progressistas desconhecem a história e as notícias da resistência nos subúrbios de de Paris e Lyon, por parte dos imigrantes, mesmo após a crise da década de 1970. Estes movimentos efervescentes, perturbadores, dispersos, são uma expressão da população auto-organizada, misturando pobres franceses e gente nascida no estrangeiro, que avançam lado a lado por transformações sociais.

Isto não significa sugerir que este jovens sejam os herdeiros de um proletariado sem fôlego nos centros capitalistas, ou reflitam a intensa agitação nas periferias do sul. Não significa negar que muitos destes jovens aspiram simplesmente ter um lugar na sociedade de consumo e ascender o seu status social na sociedade capitalista. Não significa esconder o fato de que alguns deles não têm outro objetivo exceto a destruição, para responder taco a taco a esta sociedade iníqua e repressiva que os empurra para trás ou os exclui. Não significa idealizar as exigências destas rebeliões — quando chegam a ter alguma — ou mesmo justificar todas as formas de violência. Mas mesmo se estes jovens em revolta não formam partidos, e provocam muita desconfiança e uma preocupação real no resto do país, a esquerda deve encará-los como aliados para a necessária transformação radical, social e democrática da França, não apenas um bloco votante nas próximas eleições.

É tempo de a esquerda francesa exprimir sua solidariedade em relação a este sub-proletariado sub-explorado. A juventude marginalizada dos subúrbios certamente não constitui toda a base social da esquerda, mas sem ela a esquerda nunca será verdadeiramente popular, isto é, do povo. O que está em causa quanto a esta solidariedade consiste em coordenar as lutas tradicionais dos trabalhadores da França com aquelas dos outros setores das classes populares: economicamente comprimidas, desempregadas, sem casa, não documentadas, os sem-direitos… Para a esquerda progressista francesa, isto é indubitavelmente uma oportunidade histórica de reconstruir um claro espírito revolucionário e internacionalista a partir de modernas posições de classe.

Ao emergir incessantemente das cités, alimentada pelos fardos das condições de vida e (falta de) trabalho, a explodir após cada excesso policial, estas lutas precisam ser organizadas, estruturadas, unidas, embora tenham suas energias dispersadas ou enfraquecidas pelas ofensivas de recuperação — muitas vezes orquestradas a partir das poltronas do PS, cooptando os movimentos de jovens das cités e promovendo a "beurgeoisie" [11] na sua máquina eleitoral. Estes movimentos ainda estão ativos, em busca de autonomia e participação, refletindo sobre como resistir à alienação capitalista, como emancipar a juventude dos seus ódios e desejos consumistas, como unir os subúrbios na luta contra a discriminação, ataques racistas, violência policial, expulsões de estrangeiros, por habitação, emprego, liberdade de religião, para que as próprias pessoas controlem o seu futuro — mas também para formular uma estratégia de ação e representação política [12] . Tais propostas devem ser formuladas de um modo suficientemente amplo que permita sua articulação com as demandas de outros movimentos que surgiram na década de 1990 [13] . Conseguir que as exigências destes vários movimentos convirjam não é fácil, mas os pontos de convergência são numerosos: é o caso, por exemplo, do emprego.

A mobilização contra o "CPE ": fevereiro-abril de 2006

O "CPE" ( contrat première embauche ou contrato de primeiro emprego) foi uma das "reformas" do mercado de trabalho adotadas recentemente pelo governo da direita na França. Reservado à juventude, seu objetivo é substituir contratos com duração ilimitada (CDI ou contrats à durée indéterminée ) por empregos precários em grandes firmas, com mais de 20 pessoas.
As empresas que recorrem a este tipo de contrato ficam isentas das contribuições patronais para a previdência social. Sua nova pele, o "CNE" ( contrat nouvelle embauche ou novo contrato de emprego), que preocupa todos os trabalhadores de empresas com menos de 20 pessoas, sem condição de idade, ainda está em vigor. Desde agosto último, foram assinados aproximadamente 300 mil CNEs. Concedidas aos patrões, em nome do dogma do "corte nos custos do trabalho", estas benesses provaram sua ineficácia na criação de empregos estáveis. Resultaram apenas no aprofundamento de déficits públicos, na redução da procura, o que por sua vez exerceu novas pressões para elevar o desemprego — porque este último não se deve a custos de trabalho excessivamente elevados e sim à coação da lucratividade financeira imposta pelos acionistas das empresas.

O CPE é um contrato que permite aos patrões, durante dois anos, demitir jovens sem formalidades nem qualquer justificação, nem mesmo o mínimo recurso legal.
Este contrato de precarização, com duração dúbia, é de fato pior do que um contrato com duração limitada (CDD, contrat à durée déterminée ). O jovem é mantido na mais completa incerteza quanto ao dia seguinte, o que o impede de construir uma vida normal: criar uma família e prevenir-se contra a penúria, ter uma habitação decente, ter acesso a crédito para adquirir bens duráveis… Enquanto uma sucessão de CDDs pode conduzir a uma proposta de CDI, os CPEs poderiam se suceder sem controle. Findo o período de dois anos, um administrador que contratou um jovem pelo CPE poderia, após um de três meses, contrata-lo outra vez com o mesmo estatuto. A tendência mais provável por parte dos empregadores é despedir trabalhadores em CDI para substituí-los por jovens em CPE.

Pode-se entender o principal objetivo dissimulado do CPE: exacerbar a competição entre trabalhadores, precarizar os mais jovens ao mesmo tempo que os utiliza para desmantelar todo o estatuto dos que ganham salários pelo CDI. E lançar um ataque contra uma das conquistas das leis do trabalho, que é o limite imposto à lógica do capital pelas lutas dos trabalhadores contra demissões arbitrárias — graças à obrigação imposta aos empregadores de apresentarem razões para qualquer demissão, ao direito do empregado de abrir um processo no caso de demissão abusiva, e a afirmação do direito dos trabalhadores contra o poder absoluto dos capitalistas. Esta disposição cai sob o processo geral de flexibilização do mercado de trabalho francês, recomendado pelos advogados do neoliberalismo (supressão do salário mínimo, criação de um único contrato flexível de trabalho), que anseiam há muito pelo fim da "exceção francesa".

Como reagiram os jovens da França, apoiados pelos trabalhadores unidos numa "inter-sindical"? Mobilizaram-se, organizaram assembléias gerais, informaram e treinaram a si próprios quanto às reformas atuais, tal como durante a campanha contra a Constituição da UE, a seguir ocuparam universidades e faculdades (além de estradas, estações de trem e aeroportos), e desceram à rua para demonstrar maciçamente sua resistência a esta guerra social: 500.000 em 7 de fevereiro; 1.000.000 em 7 de março; 1.500.000 em 18 de março, entre 2 e 3.000.000 em 28 de março, mais de 3.000.000 em 4 de abril…

Ao contrário de todas as aparências, a dupla Villepin-Sarkozy funciona "bem": o primeiro dedica-se a destruir as leis trabalhistas, ao passo que o objetivo do segundo é romper as resistências intimidando os jovens. Após a dura repressão dos tumultos de novembro, milhares de demonstradores anti-CPE (talvez mais de 4.000) foram interpelados em todo o território nacional. Centenas de sentenças de prisão de até 8 meses foram lavradas, geralmente na primeira audiência em tribunal, contra jovens que participaram nas confrontações com as forças policiais… Será esta a opção deixada pelo governo para a juventude francesa, precariedade ou prisão?

Imagine os edifícios da Universidade da Sorbonne, no Quartier Latin de Paris, cercados durante semanas por duas fileiras de camburões da polícia; a própria Praça da Sorbonne cercada por muros de chapa de aço anti-tumulto, através dos quais podia-se distinguir grande quantidade de veículos da polícia: furgões, caminhões de limpeza… e um número significativo de "CRS" em uniforme de batalha [14] .
Contudo, esta demonstração de força não fez com que os estudantes perdessem o senso de humor. Sobre as grades anti-tumulto em torno da Sorbonne, podia-se ler: "Não alimentem os CRS, por favor" (inscrição usada no zoo para os animais); ou "Por causa dos riscos de contágio devido à gripe aviária, contenção das galinhas" (na gíria francesa os polícias são chamados "galinhas")…

Após quase três meses de crise, duas greves gerais (chamadas "interprofissionais" por alguns observadores) e uma série de demonstrações que reuniram aproximadamente 10 milhões de pessoas, o presidente Chirac e o primeiro-ministro Villepin anunciaram, na segunda-feira, 10 de abril, um dia antes do anúncio de uma nova grande demonstração, a "substituição" do artigo da lei (denominado "sobre a igualdade das oportunidades" ) que criava o CPE por um dispositivo "a favor da inserção profissional de jovens em dificuldades" — com financiamentos públicos de 150 milhões de euros em 2006, contra 23 bilhões de euros concedidos aos patrões no esquema anterior (CPE). De Villepin declarou: "Eu quis propor uma solução forte. Isto não foi entendido por todos, e lamento".

As organizações anti-CPE aplaudiram esta decisão, mas esperavam conhecer o conteúdo das novas propostas de lei. A principal organização de estudantes (Unef) manteve um novo dia de ação para 11 de Abril, enquanto reconhecia que a supressão do CPE constituiu uma "primeira vitória decisiva”. A CGT considerou a "retirada do CPE" como um "êxito da ação convergente dos trabalhadores, estudantes e alunos das faculdades bem como da unidade sindical". No dia 13 de abril, 16 universidades foram "fortemente perturbadas pelos grevistas", três outras bloqueadas (Toulouse, Montpellier, Aix-Marseille), e a de Rennes, encabeçando a mobilização anti-CPE, foi fechada novamente devido ao seu "clima tenso". Em 18 de abril, muitos estudantes ainda votaram a favor de uma "reorganização e remobilização do movimento" até a completa retirada do CNE e da lei "sobre a igualdade das oportunidades" (incluindo dispositivos que criavam a condição de aprendiz aos 14 anos e restauravam o trabalho noturno a partir dos 15 anos), a satisfação do salário e reivindicações por aumentos de subsídios, bem como o levantamento de leis anti-imigrantes e o fim da repressão. Em 19 de Abril, o retorno ao trabalho foi votado, por toda parte. O próximo passo?
Notas
(1) Rémy Herrera, "Impact of the French 'no' in the US," Workers World Newspaper (June 2005); "No Way!
French Workers Reject EU Constitution," Political Affairs 84, no. 9 (2005); e Depois do não francês
(2) No PS, a simulação dos procedimentos democráticos e a manipulação dos militantes conduziu a um fracasso: o partido votou "sim" em 55% numa votação interna sob a pressão dos seus executivos e "não" em 59% no referendo, quando a votação era livre.
(3) Tem havido cerca de 10% de desemprego em França, desde há 20 anos. Hoje, 7,5 milhões de pessoas são afetadas pela falta de emprego ou pelo subemprego: 3 milhões desempregados em todas as categorias incluem, 1 milhão não registado, 1,5 milhão com contratos temporários ou CDD, 2 milhões constrangidos a trabalhos em tempo parcial. A taxa de desemprego é de 22,8% em 2005 para os jovens de 15 a 24 anos (ou seja, 618 mil), em superior a 50% entre aqueles de origem africana.
(5) Jean-Marie Le Pen é o líder da Frente Nacional de extrema-direita. Em 2002 ele concorreu à eleição à presidência contra Jacques Chirac, que acabou por vencer com 82% dos votos.
(6) Samir Amin e Rémy Herrera, "A Próposito de las revueltas de los barrios periféricos en Francia," Revista del Observatorio social de América Latina 8, no. 18 (2005).
(7) As " cités " são projetos em grande escala de habitação subsidiada. As "banlieues" são os subúrbios das classes trabalhadores em torno das cidades francesas.
(8) Exceto para alguns responsáveis do PS que se declaram satisfeitos com o estado de emergência, a esquerda como um todo condenou esta escalada da repressão. Mas as reações do PS foram no mínimo muito comedidas: seu primeiro secretário, Holland, disse que "a aplicação da lei de 1955 deve ser limitada no tempo e no espaço" e que sua extensão era "um símbolo mau" . Em 2001, sua esposa, Ségolène Royal, então ministra do governo Lionel Jospin, declarou: "a expressão 'cessar fogo' é inadmissível, guerreira". O presidente do grupo do PS na Assembleia Nacional proclamou: "Sob tais circunstâncias, as formações democráticas devem saber concluir um pato de não agressão". Assim, a realidade de uma "expressão inadmissível" pode tornar-se admissível.
(9) Em 1962 os argelinos venceram uma longa guerra de libertação. A luta pela auto-determinação em Kanaky (Nova Caledonia), um território francês no Pacífico Sul, enfraqueceu depois de 1985.
(10) Um paradoxo desta rebelião é que estes jovens são completamente permeáveis ao modo de vida consumista americano (vestuário, comida, jogos, gíria, referências culturais); mas, com o seu anti-racismo, eles rejeitam a violência da segregação interna americana e da guerra externa. Ainda que a maioria destes jovens promotores de tumultos não seja politizada, a sua ação é política.
(11) " Beurs " é uma gíria para aqueles com raízes norte-africanas. " Beurgeoisie " é um jogo de palavras.
(12) Exemplo: Movimento de Imigração e Subúrbios (MIB, Mouvement de l'Immigration et des Banlieues ).
(13) Tais como: Direito à habitação (DAL, uma associação formada em 1990 quando famílias despejadas ocuparam edifícios no 20º distrito de Paris); Comité dos Sem Casa (CDSL, criado em 1993 para ajudar pessoas mais idosas em dificuldades e pessoas pobres sem amigos ou família); Direitos primeiro! (DD!, criada em 1994); Atue contra o Desemprego! (AC!); Grupo de intervenção em apoio aos imigrantes (GISTI); Apelo dos "sem" (lançado em 20 de Dezembro de 1995, durante as grandes greves de trabalhadores; Associação para o emprego, inserção e solidariedade (APEIS)…
(14) Os "CRS" ( Compagnie républicaine de sécurité ) fazem parte das forças oficiais responsáveis pela ordem pública.

* Investigador do Centre National pour la Recherche Scientifique (CNRS) e professor na Universidade Paris 1 Pantheon-Sorbonne.   Email: [email protected] . Traduzido a partir da versão em inglês