Houve feudalismo no Brasil?

Por Julio Vellozo
O artigo publicado no último dia 29 de março por Elias Jabbour no Vermelho,  sobre as características de um suposto feudalismo no Brasil, serve para retomar um debate de importância capital para o

Na imensa complexidade da sociedade colonial, é possível buscar nexo e exemplo para justificar qualquer esquema teórico pré-estabelecido. Conforme Caio Prado Jr, “apanham-se essas coincidências, despreza-se o resto, recompõe-se com isso uma descrição das nossas condições econômicas, sociais e políticas que apresentam alguma correspondência aparente com os padrões escolhidos”.
Este método tem sido utilizado para justificar não só a tese do feudalismo, como outras teses também.
Para entender a sociedade que se construiu nos trópicos, é preciso compreender em primeiro lugar que se trata de um “novo mundo”, criado a partir de novas condições e de um choque de realidades tão poderoso quanto o que se deu entre o velho mundo romano e o mundo germânico, e que resultou no processo que daria origem ao feudalismo –  modo complexo, original e irrepetível de produção. São desprezadas, na maioria das vezes, as profundas  especificidades da situação aberta com a colonização portuguesa na América.
Esta recusa a um modelo pré-estabelecido não significa uma adesão às teses desenvolvidas por Jacob Gorender e Ciro Cardoso, do modo de produção escravista colonial. Sua tentativa tem méritos: rompe com a idéia de modo de produção feudal na América Portuguesa, dá o devido valor às relações de produção, nega a idéia de que não existem determinantes internos para a vida colonial. No entanto, na tentativa de romper em definitivo com as interpretações da chamada escola do “sentido da colonização”, o esquema inviabiliza-se por negar as poderosas determinações dos fatores externos relacionados à economia mundo.
Nesta singela contribuição ao debate polemizamos com as idéias expostas por Elias partindo das relações de produção na colônia. Consideramos que elas, ao lado das conexões da colônia com a economia mundo, são as determinantes mais importantes para compreender a América Portuguesa.
As relações de produção escravistas: 
“é sempre a relação direta dos donos das condições de produção  com os produtores diretos – relação que sempre corresponde naturalmente a um estágio definido do desenvolvimento  dos métodos de trabalho e, assim, da produtividade social – que revela o segredo mais íntimo, a base oculta de toda a estrutura social e, com ele, a forma política da relação de soberania e dependência (…) Isso não impede que a mesma base econômica  – do ponto de vista de suas principais condições – devido a inúmeras circunstâncias empíricas diferentes, meio ambiente, relações raciais, influências históricas externas, etc, apresente infinitas variações e gradações de aspecto, o que pode ser avaliado tão somente através da análise das circunstâncias conhecidas empiricamente”.
Karl Marx, O Capital.
Entre os séculos XVI e XIX, 40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas Américas desembarcaram em portos brasileiros. Esse “trato de viventes” era impulsionado pela demanda de uma economia pulsante, baseada principalmente na grande propriedade monocultura, voltada para a exportação. A estes 4 milhões de africanos somaram-se outros milhões de indígenas, também transformados em trabalhadores escravos.
Assim, as relações de produção na colônia foram preponderantemente escravistas. Nos núcleos mais dinâmicos da economia colonial e mesmo na maioria das atividades subsidiárias a eles os escravos foram o fator de produção determinante. Índios e negros escravizados plantavam a cana e produziam o açúcar; faziam o trabalho doméstico das casas grandes; plantavam e beneficiavam o fumo que era trocado por escravos; catavam o algodão; garimpavam ouro e diamante nas gerais; preparavam o charque no sul; pajeavam os que viviam nas cidades; estavam presentes nas fazendas de gado que se espalhavam no sertão de dentro e no sertão de fora. Na cidade colonial o escravo está sempre presente, carregando liteiras, acompanhando os homens e mulheres livres, trabalhando nos mais diversos ofícios como “negros de ganho”.
Se o escravo fosse apenas o principal fator de produção, isso seria suficiente para coloca-lo como elemento determinante na caracterização da colônia. Mas a escravidão ia além,  penetrando todos os poros da sociedade colonial. A escravidão foi, nas palavras de Fernando Novais[1][1], a relação social dominante no universo colonial. Havia, na sociedade colonial da América Portuguesa, uma relação de rejeição aberta ao trabalho, considerado coisa de escravo.
O escravo, diferentemente do servo, era um bem móvel, que podia ser vendido, trocado, hipotecado, alugado, leiloado – de todos os elementos de capital imobilizado, era, inclusive, o elemento de maior liquidez. A facilidade de obtenção do escravo, possibilitada pelo fluxo contínuo de seu fornecimento, somente diminuído em conjunturas específicas, fazia com que os senhores buscassem acelerar a rotação do capital, recuperando com rapidez o dinheiro investido nos escravos, através da ultra-exploração. Isso fazia com que os escravos morressem logo, e fossem rapidamente substituídos. Esta intensa rotatividade da mão de obra somada a possibilidade de mobilidade do escravo através da sua negociação, colocava a sociedade colonial bem longe de um modelo feudal[2][2], onde o servo está preso a gleba.
As outras formas de coerção do trabalho, não escravas, foram secundárias na sociedade colonial. Fora dos grandes domínios, em alguns setores de menor expressão da atividade econômica, outras relações de trabalho estabeleceram-se. Mesmo que admitíssemos que as relações de produção que encontramos nestas atividades caracterizem um modelo feudal –  fato que contestamos – elas não teriam peso no conjunto da realidade para dar sentido ao todo da sociedade colonial.
Analisemos o caso da pecuária, tratado no texto de Elias como a  atividade onde estão caracterizadas com mais clareza as relações de produção feudais.
Dois pólos de pecuária existiam na América Portuguesa, um localizado na região meridional da colônia e outro no norte. Comecemos pelo  sul.
Sabe-se que foi a partir do século XVIII, duzentos anos após o início das atividades produtivas na colônia, que o sul pastoril conectou-se aos circuitos econômicos da colônia, fornecendo charque, primeiro para a região mineradora, depois para o conjunto do sudeste, com destaque para o Rio de Janeiro.
Na atividade havia uma multiplicidade de formas de trabalho. O trabalho era livre (peão/gaúcho) sendo assalariado em alguns casos. Em outros, o estancieiro cedia ao gaúcho um pedaço de terra, onde ele podia plantar para sua subsistência.
No entanto, ao lado desta relação, havia também o trabalho escravo que era a mão de obra fundamental da charqueada. Deste modo, em 1819 cerca de 30% da população da capitania do Rio Grande do Sul era de cativos. Havia o que João Fragoso chamou de binômio estância/charqueada. Neste binômio, pela própria característica das duas atividades, era a de produção do charque que absorvia a maior parte da mão de obra.
Na pecuária do nordeste também havia, ao lado do trabalho livre não assalariado, (partícipe de uma relação de trabalho supostamente feudal) uma grande presença do trabalho escravo. Cito, correndo o risco de ser árido: “Em 1665, nos currais de Jácome Pereira, por exemplo, os africanos eram descritos junto com o plantel de gado vacum e cavalar. No curral de Jurumungão havia 220 vacas, bois e cavalos, assim como ‘Gonçalo e Maria sua mulher escravos gentios de Guiné, e Gaspar e Mateus moleques[3][3]”. 
É errada a idéia de que o trabalho livre tenha sido a regra na atividade pecuária nordestina. Dedos demográficos nos mostram que, no ano de 1697, 48% da população total envolvida com a pecuária era escrava[4][4].
Havia, na verdade, uma certa divisão do trabalho, como no caso do sul. Havia o chamado passador, um tipo especial de vaqueiro, responsável pela condução dos animais ao mercado costeiro. Este era remunerado com crias, em uma relação de trabalho livre não capitalista. Mesmo neste caso, como em outros que já citamos, havia um número grande de passadores que eram remunerados em dinheiro: “quem quer que entrega a sua boiada ao passador, para que leve das Jacobinas até o Capoame, que é jornada de quinze, ou dezesseis ou dezessete dias, lhe dá por paga do seu trabalho um cruzado por cabeça da dita boiada[5][5]”.
O que desejamos provar é que, mesmo que aceitássemos a idéia de que as formas de parceria, meação, retribuição com cabeças de gado e outras deste tipo constituíssem relações de produção feudal, elas eram restritas a algumas áreas da produção, e mesmo nestas, conviviam com trabalho assalariado, e, em especial, trabalho escravo.
A segunda questão é que as áreas de que falamos tem uma importância relativamente grande, mas estão longe de ser o centro dinâmico da economia colonial. Este estava nas atividades relacionadas à monocultura exportadora. Eram os ritmos desta atividade que ditavam o mercado interno, em geral organizado para fornecer alimentos, meios de produção para este setor principal.
Em especial até o século XIX, foi para fornecer carne e animais para os engenhos que os sertanejos ocuparam as margens do São Francisco, “o sertão de dentro e o sertão de fora”. Foi pela demanda da atividade mineradora que o modelo estância/charqueada recebeu o seu impulso formador.   Foram os senhores de engenho, os senhores do café e os comerciantes de grosso trato – setores dominantes da vida colonial ligados ao comércio exterior -, que comandaram a vida colônia. Com isso não negamos a existência de um mercando interno, crescentemente importante a partir da atividade mineratória. Somente buscamos estabelecer qual centro dinâmico o animava, e, porque não, ditava os seus ritmos[6][6].
E, se nos setores subsidiários o trabalho escravo tem grande presença,  nos setores mais dinâmicos o trabalho escravo é absolutamente majoritário.
Com a crise do trabalho escravo as formas de trabalho livre não assalariado serviram como um ponto de inflexão, até a generalização do assalariamento. Como um processo de transição profundo e complexo, o caminho que envolveu a substituição das relações de produção escravistas pelas de assalariamento, passou por formas intermediárias. É assim que devemos encarar as relações de produção que foram por muito tempo, equivocadamente, consideradas como feudais.
A partir das questões levantadas acima podemos afirmar que:
1.      As relações de produção consideradas pelos autores que sustentam a tese do feudalismo na colônia não são feudais. Talvez possamos considerá-las, sem um grande rigor conceitual, como um trabalho livre não assalariado.
2.      Mesmo se considerássemos que as relações de parceria, meia, terça, eram relações feudais, elas aconteceram de modo restrito e em áreas periféricas da economia colonial. A principal delas foi sem dúvida a pecuária, que no sul só tornou-se importante em meados do século XVIII, com as conexões estabelecidas com a mineração.
3.      Mesmo onde ocorreram na pecuária não eram absolutas, convivendo com trabalho escravo e com trabalho livre assalariado.
4.      As relações estabelecidas a partir do fim da escravidão não representam relações de tipo feudal, mas um trabalho livre não assalariado, mero ponto de inflexão, no processo de constituição do trabalho assalariado como relação determinante.
Notas:
[[1][1] NOVAIS, Fernando, Aproximações, 2005, Cosacnaify Pág. 215.


[2]
[2] Por maiores que sejam as variantes, o servo preso a gleba é, tal qual o proletariado para o capitalismo, o fator de produção clássico do modo de produção feudal.


[3]
[3] Moleque ou Muleque era termo que designava os escravos jovens ou adolescentes. PUNTONI, Pedro, A Guerra dos Bárbaros – Povos Indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. Hucitec, 2002.


[4]
[4] MOTT, Luis. Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial. Revista de antropologia. São Paulo. Citado em . PUNTONI, Pedro, A Guerra dos Bárbaros – Povos Indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. Hucitec, 2002. Ver ainda: GORENDER, Jacob. O Escravismo Colinal. São Paulo. 1985, p 425-42. É claro que este escravo, ao contrário de que diz  Gorender, possuía um estatuto especial, dadas as condições reais desta atividade produtiva; o autor tem dificuldades em enxergar os diversos matizes diferentes que a escravidão tomou no diferentes ramos em que o escravo foi utilizado.

[5]
[5] ANTONIL, Pe André João Antonil. Cultura e Opulência do Brasil. Lisboa, 1711, p.189.


[6]
[6] Os trabalho de João Fragoso Homens de Grossa Aventura busca negar a existência de uma correspondência entre os ciclos de expansão do comércio externo com os ciclos de expansão do mercado interno. O trabalho de Eduardo Mariutti e de outros autores, publicados na Revista da Fipe, cujo número não tenho a mão para fazer a citação correta, desmente de forma cabal estas afirmações. É preciso, apesar de toda a galhofa que tem envolvido o trabalho de João Fragoso, tomar muito cuidado com suas afirmações. Entre outras coisas porque o recorte temporal  (século XIX), e o local escolhido para o seu estudo , (a praça do Rio de Janeiro),  não são capazes de oferecer um retrato real da vida econômica da colônia. Isso porque, por um lado,  o século XIX é o da crise do sistema colonial; e por outro, o Rio de Janeiro sofria as imensas modificações trazidas com a abertura dos portos e o estabelecimento da corte no Brasil.

É necessário, antes de comprar em pacote fechado as idéias da “escola de Niterói”, estabelecer um debate profundo, que desvende as reais implicações das teorias defendidas por João Fragoso.