Suspeitas da oposição continuam, mas os fatos estão a favor de Bastos

Ninguém pode negar que a Polícia Federal esclareceu o episódio da quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa em prazo recorde, o que resultou na demissão e indiciamento de dois amigos tanto do presidente da República como do próprio minis

O ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, pode colocar no seu currículo mais uma homenagem honrosa: nestes quase 40 meses de governo Lula, a base governista nunca se mobilizou tanto para defender um integrante do primeiro escalão do fogo cerrado da oposição quanto no depoimento que ele prestou nesta quinta-feira (20) na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ). Desde a tática para deslocar a audiência do Senado para a Câmara até a presença majoritária dos deputados governistas na lista de debatedores, tudo foi bem montado para virar a página do episódio da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa, de modo que o governo pudesse redirecionar seus esforços para as outras frentes de batalha com a oposição. Mas, apesar do bom desempenho do ministro, tudo indica que a ofensiva vai continuar.

Bastos começou o depoimento um tanto nervoso. Natural para um criminalista dos mais bem sucedidos do país com décadas de experiência em tribunais judiciais, mas que pela primeira vez figurava como réu em um tribunal político. Quando um ministro é convocado pelo Congresso para dar explicações sobre assuntos embaraçosos, ninguém sabe o que pode acontecer. A perspectiva do estrelato no noticiário excita os congressistas a assumirem o papel de algozes. Ainda mais em ano eleitoral, com indícios de uma disputa virulenta pela frente. Se o depoente escorrega ou tropeça nas explicações, seus aliados vão minguando e a oposição tripudia.

Para sorte do ministro da Justiça, os integrantes da oposição demonstraram estar meio confusos e mal preparados para o embate no campo dos fatos. O que fez com que nas oito horas do depoimento, que começou pouco depois das 10h, predominasse o proselitismo político. Com o ministro dizendo que não compactuou com o crime, os governistas elogiando sua atuação no processo e os oposicionistas procurando caracterizar o envolvimento dele para estabelecer a conexão com o presidente Lula.

A bancada do PFL até que estava bem municiada. Os deputados receberam um pacote de documentos contendo um clipping com declarações dadas pelo ministro da Justiça desde o início da crise do caseiro, os depoimentos prestados à Diretoria de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal por 20 pessoas envolvidas no caso e a transcrição de dois depoimentos dados à CPI dos Bingos, por Francenildo Santos Costa e pela vice-presidente de Tecnologia da Caixa, Clarice Coppetti.

Libelos políticos

Foi dessa papelada que o líder do PFL, Rodrigo Maia (RJ), tirou alguns trechos para concluir que o aparelho do Estado foi usado para calar um humilde caseiro a pedido do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que, segundo ele, se via enrolado em dezenas de escândalos de corrupção. Pouco antes, o líder do PSDB, Jutahy Junior (BA), havia dito a mesma coisa com outras palavras. Bastos elevou o tom de voz para demonstrar indignação, repelindo as suspeitas de que ele e/ou seus assessores teriam compactuado com a quebra do sigilo de Francenildo. “O que vossa excelência fez aqui foi um discurso, um libelo da disputa política. Dizer que arquitetei defesas, que sou o advogado oculto do governo, não é verdade”, sustentou.

Embora a oposição tenha motivos para levantar suspeitas, o ministro da Justiça tem os fatos a seu favor. Nunca na história deste país, um escândalo envolvendo uma autoridade tão poderosa como o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi esclarecido em um prazo tão curto. “Esse fato foi apurado em tempo recorde. Nunca na história do Brasil a Polícia Federal agiu com essa isenção, com essa impessoalidade, com esse distanciamento”, disse Bastos.

Entre a violação do sigilo e a confissão do ex-presidente da Caixa Jorge Mattoso, que provocou sua própria demissão e a demissão de Palocci, decorreram 11 dias. Foram necessários outros 22 dias para concluir o inquérito com o indiciamento de Mattoso, Palocci e o ex-assessor de imprensa do Ministério da Fazenda, Marcelo Netto. A conclusão é parcial. Como lembrou Bastos, no Estado Democrático de Direito só se considera culpado quem for condenado em instância definitiva, assegurado o amplo direito de defesa. Mas o julgamento político perante o Congresso e a sociedade já ocorreu.

Investigações republicanas

O deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) disse durante o depoimento de Bastos que em seus 27 anos como promotor nunca viu tanta independência tanto no Ministério Público quanto na Polícia Federal. Ele considerou que o depoimento esclareceu satisfatoriamente as três questões principais do caso: 1) não houve participação do ministro da Justiça; 2) não houve autorização para a Polícia Federal investigar o caseiro; 3) Bastos não participou de qualquer estratégia de defesa dos acusados. Isso, apesar de eles serem amigos do ministro da Justiça e do presidente da República, observou o deputado petista, lembrando que até hoje existem cicatrizes entre o PFL e o PSDB por causa do direcionamento da PF e do MP para desestabilizar, no início de 2002, a candidatura em ascensão da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL).

O presidente do PT, Ricardo Berzoini (SP), bateu na mesma tecla, com o objetivo de mostrar que o governo anterior dirigia a PF conforme seus interesses. Além do caso Lunus (referência ao nome da empresa de Roseana e do marido Jorge Murad, onde foram encontrados milhões de reais em dinheiro empacotado, possivelmente para financiar a campanha frustrada), ele citou outros dois: a dificuldade que o então ministro da Justiça, Renan Calheiros (PMDB), para demitir o diretor-geral da PF na época, Vicente Chelotti, considerado um arquivo ambulante de casos nebulosos ocorridos no governo FHC; o afastamento de um delegado da PF que investigava o diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira, envolvido em casos suspeitos de irregularidades no processo de privatização.

No entanto, existem questões mal explicadas sobre esse caso. A suspeita de que o caseiro teria sido pago pela oposição para desmentir Palocci foi discutida em reunião da coordenação política? O ministro da Fazenda e o presidente da Caixa agiram por conta própria ou foram instruídos ou autorizados por outros integrantes do governo? Bastos não conseguiu afastar essas suspeitas, mas foi categórico ao sustentar que não foi conivente e nem omisso em relação ao crime, mesmo tendo acompanhado o advogado Arnaldo Malheiros em um encontro com Palocci e Mattoso no auge da crise. “Havia suspeitas, mas o papel do ministro da Justiça é trabalhar com fatos e não espalhar rumores”, explicou Bastos na CCJ.

Segunda jornada

Depois de passar oito horas na CCJ da Câmara e sair-se relativamente bem, o ministro da Justiça disse que não teria problema em voltar para prestar contas ao Senado, como deseja o líder do PSDB naquela Casa, Arthur Virgilio (AM). O senador tucano tem destoado nos ataques, que estão um tom acima da teatralidade dos colegas da oposição. Na Câmara, o líder da minoria, José Carlos Aleluia (PFL-BA), entregou os pontos. “Não adianta pressionar mais. O problema não é o ministro, é o governo. Ele deve ter sido o homem que alertou Lula sobre a gravidade da quebra do sigilo. Se Lula vai continuar, que ele continue também”.

O líder do PFL, Rodrigo Maia, jogou a responsabilidade para o Conselho de Ética Pública do Governo Federal. Encaminhou ofício pedindo para que seja avaliada a atitude do ministro da Justiça ao indicar um advogado para Palocci. Esse parece ter sido um erro do qual Bastos se arrepende, embora não reconheça. Em uma passagem do depoimento ele enfatizou seu cuidado em separar a vida profissional da vida pública, acrescentando: “agora terei mais ainda”.

No PPS, os sinais do rescaldo foram contraditórios. Enquanto o ex-ministro Raul Jungman (PE) saiu dizendo que após o depoimento só resta uma condenação moral ao ministro, o deputado Colbert Martins (BA) avisou que não ficou satisfeito com os esclarecimentos e pretende convocar o presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e os assessores do ministério da Justiça que estiveram com Palocci nos dias em que o sigilo bancário do caseiro foi violado e vazado para a imprensa.

O líder do PSDB, Jutahy Junior, disse que para a oposição é até melhor que Bastos permaneça no Ministério, mas que ele deveria afastar-se do governo para não contaminar sua biografia. O tucano não deixou claro se continuará fazendo carga sobre o ministro da Justiça. Vai depender do cenário político, da pressão da bancada, da necessidade de ter um elo de diálogo das oposições com governo. Bastos conversa freqüentemente com Fernando Henrique Cardoso, com José Serra, Antonio Carlos Magalhães. Essas relações têm sido fundamentais para que ele seja tratado com respeito no Congresso. Ficou claro durante o depoimento que o alvo sentado à frente do quadro com a imagem do enforcamento de Tiradentes não era apenas o ministro da Justiça. Era o presidente da República.

* Para Agência Carta Maior