Conferência nacional dos Povos indígenas termina com resoluções polêmicas

Pela primeira vez na história do país, o governo federal conseguiu promover um encontro dessa natureza. A orientação, a participação e as propostas do documento final, porém, permanecem como objeto de questionamentos. Po

A Conferência Nacional dos Povos Indígenas, encerrada na última quarta-feira (19) – data em que se comemorou o Dia do Índio – será lembrada como um marco muito mais pelo ineditismo, ainda que com atraso de três anos (era promessa de campanha do presidente Lula para ser cumprida no primeiro ano de governo), do que pelos resultados propriamente ditos. O governo federal conseguiu promover, pela primeira vez na história do País, um evento dessa natureza, com participação de cerca de 800 representantes de mais de 200 povos indígenas.

Para o coordenador-geral de Defesa dos Direitos Indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e também coordenador da conferência, Vilmar Martins Moura, da etnia guarani, o encontro marcou a superação de rótulos do passado – como o do “bom selvagem” e o do “ser bestial” – e garantiu uma postura efetiva de protagonismo dos índios.

“Defendemos aqui o que queremos e como queremos”, reforçou Pierlangela Nascimento da Cunha, do povo Wapixana, de Roraima. Ela e Almir Suruí, da Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Norte do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Cunpir), representaram os delegados na cerimônia de encerramento da Conferência. Ambos enfatizaram, na mesa final, a necessidade de que os pedidos se transformem em ações que possam beneficiar as comunidades.

O teor e os possíveis reflexos das propostas aprovadas em plenário e relacionadas no documento final, no entanto, continuam embebidos por altas doses de polêmica. A prioridade primeira extraída da conferência não se concentrou na firme exigência da consolidação da ainda extremamente frágil política indigenista – colocadas de maneira enfática pelos cerca de 500 indígenas de 86 povos que se mobilizaram no início deste mês no Acampamento Terra Livre 2006, como parte do Abril Indígena -, que desembocam no ritmo vagaroso das demarcações de terra e na situação dramática na área de saúde indígena. Os participantes preferiram privilegiar o fortalecimento da Funai, inclusive na defesa do retorno do patrimônio de saúde indígena e recursos humanos qualificados para a entidade, com a revogação do decreto presidencial que transferiu a saúde indígena para a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Para se ter uma idéia do nível de desencontro, tal proposta vai de encontro às resoluções de uma outra conferência nacional – a de Saúde Indígena – realizada há apenas três semanas em Caldas Novas, Goiás.

Indígena ou indigenista

A incongruência de visões provocou manifestações públicas antes mesmo do início do encontro. Em moção divulgada no encerramento do Acampamento Terra Livre, entidades representativas como a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e a Apoinme (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) questionaram a legitimidade da Conferência Nacional dos Povos Indígenas. De acordo com o documento, o processo foi marcado pela contaminação dos interesses próprios da Funai, “pretendendo confundir o órgão indigenista com a política indigenista”.

No decorrer dos debates, porém, alguns representantes de entidades signatárias da moção decidiram participar da conferência organizada pela Funai. “Reavaliamos a nossa posição e resolvermos participar, principalmente para nos conhecermos melhor. E os mecanismos do Estado são importantes. O que for bom [entre as resoluções da Conferência], poderá ser aproveitado”, justifica Anastácio Peralta, do povo Guarani-Kaiowá (Mato Grosso do Sul), representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que participou do Acampamento Terra Livre. “É mais fácil dominar um povo dividido. Decidimos nos unir para somar forças. Mas é preciso deixar claro que a conferência fala em nosso nome, mas não é nossa”.

Peralta demonstra “desconfiança total” no que se refere a determinadas resoluções da conferência. “Reforçar o papel da Funai com o acúmulo da responsabilidade da questão da saúde simplesmente não vai adiantar. Desde o SPI [Serviço de Proteção do Índio, órgão federal que funcionou de 1910 a 1967 e precedeu a criação da Funai], esse debate focado no órgão indigenista não tem produzido resultados. Isso mostra uma dificuldade de análise”. Para ele, o foco central não deveria ser desviado das políticas. “E até agora, as políticas têm funcionado para os ‘grandes’. As leis existem, mas há muitas dificuldades para que sejam cumpridas. Neste governo, vivemos um dos piores tempos para os povos indígenas”, relata. “Nós índios ainda temos muitos ‘donos’. Temos que dispensar nossos ‘padrastos’ e fazer a nossa discussão. Quem sabe isso possa contribuir para que possamos dar um outro rumo para o nosso próprio país? Para a sociedade ‘branca’, os bens materiais são muito importantes. Mas isso tudo um dia acaba e a natureza está precisando de cuidado para não correr o mesmo risco”.

O formato da conferência também foi criticado por Peralta. “Não deu para expressar a nossa cultura, o valor que damos à natureza, o que amamos, as características especiais que fazem os povos indígenas brilharem”, analisa, lembrando que o formato ficou muito preso aos moldes da construção de um “projeto não-índio”. Ele espera que o conhecimento tradicional seja mais valorizado nas próximas conferências, como ocorreu no encontro continental de povos Guarani em homenagem ao líder Sepé Tiaraju, promovido e estruturado pelas próprias organizações indígenas. “Tenho esperança de que possamos organizar um encontro com os povos do Brasil e da América Latina”, coloca, sem esquecer de dar o derradeiro recado aos organizadores: “Quem não sabe receber críticas, não consegue crescer”.

Para Megaron Txucarramãe, líder do povo Caiapó, a conferência foi “boa”, mas “ainda falta muita terra para identificar e demarcar”. Segundo ele, a preponderância da reivindicação pelo fortalecimento da Funai se deu justamente para que as políticas de demarcação e de saúde indígena sejam melhoradas. Experiência muito boa. “São muitas e muitas línguas. Tivemos que adotar o estilo do ‘branco’”, argumenta. “Os povos se uniram e a próxima conferência com certeza será mais fácil”. Chefe da administração regional da Funai em Colíder (Mato Grosso), Megaron chegou a pedir o afastamento de Mércio Pereira Gomes da presidência da entidade em janeiro último, depois da publicação de algumas declarações de Gomes para a imprensa internacional que resvalaram na idéia de que no Brasil há “muita terra para pouco índio”.

Em seu discurso no encerramento da conferência, o presidente da Funai insinuou que a presença do ministro da Defesa, Waldir Pires, chefe maior das Forças Armadas, em pleno Dia do Exército (que também é comemorado no dia 19 de abril) prova que “o Estado está com os índios”. Gomes saudou ainda o esforço dos participantes das nove conferências regionais que antecederam a realização da 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas. Com a realização do encontro, asseverou ele, abriu-se o caminho para a nomeação futura de um índio para a própria presidência da Funai e até da criação oficial de um futuro Ministério dos Povos Indígenas.

De concreto, por enquanto, a conferência também definiu uma lista de indicações de nomes para a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), garantida por decreto presidencial publicado no Diário Oficial de 23 de março, que terá dez representantes índios como titulares e outros dez como suplentes. De acordo com o coordenador da conferência, Vilmar Moura, essas indicações ainda terão de ser referendadas pelas bases, como na Assembléia Geral da Coiab, que começou nesta sexta-feira (21) na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima.

Em nota oficial divulgada na data de encerramento da conferência, a Apoinme reitera que não reconhece as indicações dos representantes indígenas da sua respectiva região (Nordeste e Leste) para a CNPI. Serão nove representantes da Amazônia, seis do Nordeste e Leste, três do Sul e Sudeste e dois do Centro-Oeste. De posse do decreto e do cumprimento do prazo de 45 dias previsto no decreto para o encaminhamento de indicações, a Apoinme “já fez sua carta convocatória para uma Assembléia Geral Extraordinária, que se realizará em Olinda-PE nos dias 04 e 05 de maio de 2006, com o intuito de atender as exigências de escolha dos representantes de nossa região para a referida comissão”, confirma a nota assinada por José Barbosa dos Santos, do povo Xucuru, e Manoel Uilton dos Santos, do povo Tuxá.