Imprensa falseia dados sobre gastos públicos

Pensamento conservador ataca qualquer despesa ou investimento público que não destinado aos credores da dívida. Necessidades de pessoal e de reestruturação do estado são vistos como “gastança”.

por Gilberto Maringoni – Carta Maior

A Folha de São Paulo escancarou uma grave denúncia na manchete principal do último domingo: “Governo Lula criou 37,5 mil cargos públicos em 3 anos”. Escândalo! Mais abaixo, o jornal relata o montante do descalabro: “Aumento da máquina pública significa uma despesa extra de R$ 625 milhões por ano”.

À primeira vista, flagrou-se outro ralo de dinheiro público: a contratação de compadres e apaniguados vai inchar o estado com desocupados! Mas, no meio da matéria, os leitores são informados pelo repórter Fabio Zanini de um pequeno detalhe: do total de 37.543 novos cargos, “35.275 exigem concurso público”.

A matéria é construída a partir de dois pontos de vista: primeiro, tudo é cabide de emprego e, segundo, é pecado gastar. A conseqüência imediata é a necessidade de se conter a irresponsabilidade governamental. O que a Folha faz não é novidade. Já existe uma orquestração na mídia desde o início dos anos 1990 contra qualquer despesa estatal que não seja para honrar compromissos financeiros.

GASTOS VÊM CAINDO

O professor de economia da Unicamp, Marcio Pochmann, tem uma explicação para esse tipo de campanha. “Ser contra novas contratações é o argumento básico daqueles que advogam o estado mínimo”. Segundo ele, o Brasil tem um baixo número de funcionários públicos em relação ao total da população ocupada se comparado a qualquer país em que o estado desempenhe uma função social ativa. E dá números: “Em 1980, tínhamos 12% da população ocupada trabalhando no setor público. Hoje temos 8%, segundo dados do PNAD. Houve uma regressão”, diz ele. “Mesmo nos EUA, que não são um modelo de estado social, a proporção de funcionários públicos em relação á população ocupada é de 16,8%. Na Europa, a média é de 25%”.

Os dispêndios com pessoal, por parte da União, estão caindo também em relação ao PIB, mesmo com as novas contratações, aponta o deputado federal Sérgio Miranda (PDT-MG). Para ele, o parâmetro – a relação com o PIB – é o mais adequado para se avaliar o quadro, pois serve também para estabelecer o montante da dívida pública. Para Miranda, houve um desmonte do estado no governo FHC e mesmo com as restrições impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), há espaço para novas contratações.

A LRF foi promulgada em 1999, pelo governo FHC, visando garantir aos credores da dívida pública a prioridade absoluta nos gastos do estado. Ela estabelece, para a União, um limite de 50% da receita corrente líquida destinada aos salários. Receita corrente líquida (RCL) é o total das arrecadações da União, menos os repasses obrigatórios aos estados e municípios.

Desde 2002, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, os gastos com pessoal encontram-se ao redor de 30% da RCL. “Há uma enorme folga para contratar, pois a arrecadação de impostos aumentou muito, e há a necessidade de o estado ampliar os serviços públicos”, diz o parlamentar mineiro. Os dados estão em (http://www.stn.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/gestao_orcamentaria.asp)

TERCEIRIZAÇÃO, FAVORECIMENTO E ACIDENTES

A área que mais concursos realiza é a Petrobrás. Sua subsidiária Transpetro, que atua na área de transportes, está criando 10.012 vagas estáveis. A empresa possui 4,7 mil funcionários, cerca de 5 mil terceirizados e atua na área de transportes de petróleo e derivados.

Enfático defensor do preenchimento de cargos por concursos, o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), Heitor Manuel Pereira, denuncia que a empresa “sofreu uma contínua perda de pessoal ao longo dos últimos anos”. Segundo ele, em 1990, havia 72 mil funcionários, que foram reduzidos para 42 mil, em 2006. As contratações estariam longe de resolver os problemas da estatal: há 145 mil trabalhadores terceirizados atuando em diversas funções. “Essa é uma maneira de se privatizar a empresa por dentro. A terceirização acaba com a experiência acumulada e abre espaço para o nepotismo e o favorecimento”. Pereira relata que o número de acidentes disparou, “pela falta de experiência e treinamento daqueles que são admitidos apenas para determinada obra, por curtos períodos”.

O presidente do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo, Murilo Celso de Campos Pinheiro, dá um exemplo fatal: “A utilização dessa mão-de-obra já recebeu diversas críticas, tendo sido apontada como uma das causas dos acidentes ocorridos na Petrobrás, inclusive o afundamento da plataforma P-36, o que resultou em 11 vítimas fatais, em 15 de março de 2001”.

A situação se repete no meio universitário. Roberto Leher, professor da faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) e diretor da Andes (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior) registra uma redução de 15 a 20 % no total de professores das instituições federais de ensino superior (IFES) desde 1990. “O número de estudantes cresceu em 60% desde 1996, passando de 364 mil para 568 mil, houve a abertura de novas unidades, novos cursos e o corpo docente se manteve o mesmo”.

Durante o governo Fernando Henrique essa demanda foi suprida através da contratação de professores substitutos, em regime temporário e sem direitos trabalhistas. “Temos por volta de 25% do corpo docente nessa situação e um déficit de 8 mil professores”. Para ele, os concursos recentes resultaram em 1,9 mil contratações efetivas. “É alguma coisa, mas muito insuficiente”.

Em nota oficial, a Andes vai além e constata uma redução no investimento. “Tomando como referência o período 1995-2005, podemos constatar que, em ordem de grandeza, o orçamento executado das IFES (valores corrigidos pelo IPCA) está congelado em torno de R$ 7 bilhões (ou foi decrescente, conforme IGP-DI), situação não alterada pelo governo Lula da Silva, que, nos três primeiros anos de governo, ainda reduziu em 20% o montante de verbas em relação a 2002 (valores corrigidos pelo IGP-DI)”.

Na área de saúde, novos concursos só foram realizados após pressão do Tribunal de Contas da União, que julgou irregular o trabalho terceirizado na área.

VIÉS IDEOLÓGICO

A verdadeira campanha que se faz contra a expansão dos gastos e investimentos públicos, da qual é parte a matéria da Folha de São Paulo, tem um forte viés ideológico. A economista Ceci Juruá, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, alerta “O que eles querem não é apenas acabar com funções públicas do Estado. É cortar o que consideram mau exemplo, pois os empregos estatais têm salários melhores e estabilidade. Isso é ruim para uma iniciativa privada que corta salários e restringe direitos trabalhistas.

O engenheiro Murilo Pinheiro engrossa o coro. A contratação por concursos públicos “em nada se assemelha ao péssimo hábito nacional do cabide de emprego, no qual gente em geral sem qualificação é muito bem-remunerada para não atender aos interesses do contribuinte”.

O curioso é que a mídia se insurge contra a expansão dos serviços públicos, via novas contratações, e fecha os olhos para despesas realmente escandalosas que passam batidas, como se fossem as coisas mais normais do mundo. Nesta mesma semana, após idas e vindas, o Congresso aprovou o orçamento da União. O total das despesas com pessoal está fixado em R$ 104,2 bilhões. Para o gasto em superávit primário destina-se metade disso, R$ 48,7 bi. É bom lembrar que superávit primário é um conceito inexistente nos manuais de economia até a década passada. É uma invenção neoliberal para se garantir a rentabilidade dos títulos da dívida pública nas mãos de especuladores privados. Para a mídia, esse é um gasto virtuoso, que deve sempre ser elevado. Quando se aumenta o salário mínimo, economistas conservadores e a imprensa correm a perguntar de onde sairá o dinheiro para pagá-lo. Quando se aumenta o superávit primário, a pergunta nunca é feita.

DEBATE ANTIGO

O debate é antigo e envolve boa dose de cinismo. Há cem anos, o intelectual sergipano Manuel Bonfim – autor do notável “América Latina, males de origem” – já atacava a pretensa austeridade nos gastos públicos:

"Para justificar esse conservantismo inconseqüente, faz-se apelo a todas as fórmulas de senso comum, não o bom-senso que se inspira o dia a dia nas necessidades reais. (…) Veja-se por exemplo, como repetem: ´É preciso cortar despesas…´ Por quê? Por que o bom senso tradicional assim o diz. E julgam-se todos dispensados de estudar as coisas, para ver que, por toda parte, tem sido preciso justamente aumentar as despesas públicas, máxime nos países novos, onde as populações crescem mais rapidamente e onde está tudo por fazer. Essa é a verdade”.

A novidade da manchete da Folha é não apresentar novidades.

Fonte: Agência Carta Maior