Para vencer, a revolução bolivariana precisa ser regada pela crítica

Na edição do último do Fórum Social Mundial, um sociólogo venezuelano chamou a atenção para algo que intelectuais e simpatizantes de Chávez e do movimento debatem em pequenos espaços, mas que quase nunca discutem em arti

Era 00h20 de 25 de abril de 1974 quando a Rádio Renascença deu a senha para que o movimento eclodisse. E a senha era a música Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, cuja poesia continha as seguintes estrofes:

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena.
Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade.

Foi no embalo dessa canção que um coletivo de oficiais, boa parte capitães do Exército, iniciou o movimento que, em apenas 17 horas, levou à lona um sistema ditatorial que sufocava Portugal por 48 anos, bem como os Estados coloniais vinculados ao país.

O movimento se tornou conhecido como Revolução dos Cravos. O nome foi fruto do gesto de uma vendedora de flores que, na chegada das tropas à Praça do Rossio, em Lisboa, teve a feliz idéia de colocar a flor na boca de um fuzil. E o povo nas ruas repetiu o gesto que inundou as capas de jornais de todo o mundo.

Para a história, aquela será sempre a Revolução dos Cravos, mesmo que boa parte daquelas flores tenha murchado antes de desabrochar. Mas não é a reflexão daquela história de além-mar, prestes a completar 32 anos, que interessa ao momento.

A reflexão necessária passa pela Venezuela, nosso vizinho de fronteira, que há sete anos e meio tem parte do país a sustentar que lá se vive também um processo de rompimento histórico, a Revolução Bolivariana.

Se fôssemos buscar uma música para o estopim desse processo, ela certamente estaria num dos álbuns de Ali Primera, músico que morreu há 21 anos, em 1985, bem antes de Hugo Chávez ter se tornado figura pública no país, o que apenas ocorreu em 1992, quando organizou um levante contra o governo de Carlos Andrés Pérez.

Mesmo derrotado, Chávez assumiu a liderança do movimento e disse o famoso "por ahora", significando que recuava, mas que um dia voltaria. O que aconteceu com sua eleição no final de 1998, numa disputa ocorrida nos termos da democracia representativa.

É aí que começa o embaraço da explicação do que se costuma denominar "revolução bolivariana". Hugo Rafael Chávez Frias foi eleito presidente do que hoje é a República Bolivariana da Venezuela (essa denominação do país foi aprovada com a nova Constituição) em um processo eleitoral no qual votos substituíram canhões, guerrilhas, fuzis e flores. O que não significa que se tratou de um processo tranqüilo.

O filósofo Rolan Denis relata no vídeo Otro modo es posible… en Venezuela que, quando a vitória de Chávez começou a se anunciar na apuração, seus simpatizantes foram às ruas armados para comemorar a vitória que se anunciava, inseguros de que algo pudesse acontecer no país, como um golpe de direita.

O jornalista Altamiro Borges, editor da revista Debate Sindical, sustenta que "a originalidade da revolução bolivariana, decorrente das particularidades desse país e da rica história do seu povo, não permite leituras simplistas ou transposições mecânicas". E complementa: "na prática, os militares foram a força propulsora da revolução bolivariana e constituem o principal partido de Chávez. Diferentemente de outros países da região, a esquerda política e social estava anêmica no país, fragilizada por décadas de marasmo. Só agora há um forte impulso à organização dos setores populares".

O forte impulso à organização

Altamiro Borges tem razão. Depois da aprovação da Constituição Bolivariana e, principalmente, após o golpe midiático-militar de 11 de abril de 2002, o governo Chávez tem investido recursos e energia para que a organização dos setores populares no país se fortaleça. E, evidentemente, para que esses setores tenham mais capacidade de defender o processo em curso e o governo que ele realiza.

Na edição de janeiro último do Fórum Social Mundial, em Caracas, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander chamou a atenção para algo que intelectuais e simpatizantes de Hugo Chávez e do movimento que lidera debatem em pequenos espaços, mas que quase nunca discutem em artigos ou em intervenções mais amplas.

Lander destacou que Chávez e seu governo aprofundaram uma série de políticas públicas voltadas para os setores populares, mas que este processo acabou se transformando em um projeto de reorganização social patrocinado pelo governo e pelos recursos do petróleo. E provocou: "é possível uma autonomia se a organização política está baseada em políticas públicas? Essas organizações não serão sempre subordinadas?"

Lander faz questão de dizer que mesmo essa forma de organização é um avanço em relação ao passado, mas, ao mesmo tempo, pode vir a ser um perigo para o futuro.

Os perigos futuros

As melhores notícias para o processo histórico da América Latina nos últimos anos têm vindo da Venezuela. As vitórias das camadas populares da população, lideradas por um governante corajoso que tem enfrentado, com inteligência, sucessivas tentativas de golpe, têm dado ânimo a outras ousadias continentais.

A eleição de Evo Morales, na Bolívia, foi uma delas. Mas, por sorte, o movimento organizado foi quem levou Evo ao poder. A de Olanta Humala, no Peru, se vier a acontecer, também fará parte desse contexto. Isso dá crédito à chamada revolução bolivariana, mas para que o processo seja amplo e participativo ainda há muito que caminhar.

Hoje, já existe no país um descontentamento com o estreitamento político de certos setores dos partidos que compõem a base de Hugo Chávez, em especial o MVR. Militantes reclamam que seus dirigentes trabalham o tempo todo com a esgarçada dicotomia do "quem não está com a gente está contra a gente". Ou seja, se o movimento ou grupo questiona o rumo de alguma política pública defendida pelo governo, ele é tratado como adversário político.

Essa crítica, talvez até de forma exagerada, foi feita em recente entrevista à revista Fórum por Leonardo Domingues, um dos criadores do site www.aporrea.org, fundamental no dia 11 de abril de 2002 para que o golpe midiático-militar fosse denunciado ao mundo.

Domingues diz que partidários de Chávez "estão ganhando eleições com discurso revolucionário, mas no governo têm prática de direita. Muitos desses governadores têm usado recursos do Estado para atingir seus objetivos e são autoritários. Não respeitam o movimento social e não aceitam críticas. Centralizam o poder para seus projetos pessoais".

Mesmo que possa haver exagero, é inegável que a revolução bolivariana tem alta dose de componente pessoal. E certo viés autoritário. Algo que precisa ser quebrado para que o movimento se associe aos ideais de uma enorme sociedade planetária que hoje não participa da crença de que um governo forte com certas práticas populares garanta a efetividade da necessária democracia participativa.

O dado pessoal não se dá apenas no culto à liderança de Hugo Chávez, tratado como comandante por todos os apresentadores de canais de televisão com vinculação ao Estado, como também nas publicidades de governantes de cidades e estados vinculados ao MVR.

Há absurdos personalistas, como o patrocinado pelo prefeito metropolitano de Caracas, Juan Barreto, que pintou as ambulâncias entregues em sua gestão com uma foto sua abraçado a Chávez. Foto que, aliás, também está estampada em muitos táxis que circulam por Caracas.

Há também grande insatisfação de setores que defendem o processo de revolução bolivariana com a forma como são escolhidos os candidatos a representar o movimento nas eleições. Os candidatos costumam ser indicados mais ou menos como se dava na antiga tradição priista, pelo "dedazo".

Durante mais de 70 anos, no México, o PRI elegeu e reelegeu governantes. O ciclo foi interrompido na última disputa, com a vitória do direitista Vicente Fox, do PAN. Na tradição priista, o presidente em turno indicava seu sucessor, isso era o "dedazo".

Na Venezuela, os indicados a candidatos a governadores e prefeitos não saem todos da força do dedo de Chávez. Mas há pouco envolvimento da população e abertura para que esse envolvimento exista em relação às decisões partidárias que costumam se dar na cúpula. E também há muita reclamação com a forma como alguns governantes têm conduzido suas gestões.

Fredy Bernal, prefeito de uma região de Caracas denominada município libertador, foi um aliado de toda a prova de Chávez nos dias do golpe. Resistiu como poucos e organizou a retomada do Palácio de Miraflores. Mesmo fazendo uma gestão questionada, isso lhe garantiu a indicação do MVR para disputar a reeleição. E ganhou. É comum se ouvir em Caracas a frase: "voto por Chávez, independente de quem seja".

No entanto, é difícil encontrar caraquenhos satisfeitos com seu governo. Mesmo com a abundância dos dólares do petróleo, Caracas é uma cidade muito suja, com enormes bolsões de lixo que se avolumam pelas ruas. Preocupação de classe média? Não, de higiene pública. Até porque o lixo não se amontoa apenas nos bairros centrais, mas também nos cantões da periferia.

A revolução dentro da revolução

Ao menos desde o referendo revocatório, que aconteceu em agosto de 2004 e garantiu a seqüência do mandato de Chávez, alguns setores venezuelanos discutem a "revolução dentro da revolução". Ao debater isso, tratam um pouco do abordado acima.

Agora, em dezembro, o país viverá uma nova disputa eleitoral. Haverá eleição para a presidência da República. E o melhor para a Venezuela e para a América Latina é que Hugo Chávez vença novamente. Fundamentalmente porque o país avançou e muito em políticas públicas como de saúde, educação, reforma agrária, desenvolvimento sustentável e democracia nos meios de comunicação, por exemplo. Mas é preciso avançar em outros setores.

Para que se concretize como um processo revolucionário inovador e consistente, há necessidade de que o movimento venezuelano supere a autofagia própria das conquistas de esquerda. É preciso também que derrote as marcas do autoritarismo nascente. E que sirva aos interesses daqueles que desceram os morros e impediram o retrocesso em 11 de abril.

Para que isso venha a ocorrer, a revolução bolivariana terá que conviver com críticas. Os intelectuais e militantes que lhe deram sustentação para que superasse seus momentos de enfrentamento, agora têm a obrigação de questionar muitos dos seus caminhos. E para usar uma infantil, mas útil metáfora, a água da crítica, nesse caso, é tão importante quanto o adubo da sustentação.

*Editor da Revista Fórum – www.revistaforum.com.br/vs3/