Como é “viver” em Gaza quando caem 300 obuses israelenses por dia

Já faz mais de um mês que os canhões israelenses bombardeiam a região para prevenir os tiros de foguetes artesanais disparados pelos grupos armados palestinos, e, diante disso, os habitantes aprenderam a dominar seu medo. Em geral, os

O esqueleto de um decodificador de sinal de satélite está jogado num canto das ruínas da casa da família Ghaben, em Beit Lahiya, ao norte da faixa de Gaza. Minutos antes do impacto, Hadil, uma das mais novas da família, de 8 anos, havia desligado a televisão para permitir ao seu irmão primogênito preparar num ambiente calmo sua "tawjihia" (diploma de conclusão dos estudos do segundo grau na Palestina).

"De repente, os bombardeios israelenses recomeçaram", conta Safeya, a mãe. "As deflagrações se aproximavam da nossa casa. Eu reuni meus filhos perto de mim e proibi-lhes de sair. Depois de alguns segundos, senti uma dor violenta nas costas e levei uma forte pancada na cabeça, como se alguém me desancasse. Vi uma bola de fogo e desmaiei".

Ao acordar, na manhã desta terça-feira (11/04), no hospital, Safeya foi informada de que Hadil havia morrido e que outros nove dos seus onze filhos estavam feridos, dos quais três gravemente.

O obus deixou um buraco do tamanho de duas bolas de futebol no já combalido telhado de chapa de ferro. A deflagração pulverizou as paredes da entrada da casa. Os perpianhos estão espalhados pelo pequeno pátio. Assim como ocorre com freqüência, os tiros haviam começado no final da tarde. Os onze filhos da família Ghaben estavam entretidos na leitura ou brincavam na sala principal.

O pai, Mohammed, um pintor da construção civil desempregado, estava passeando pelo emaranhado de vielas arenosas que cercam sua casa, na orla das estufas e das dunas que se alternam no norte da faixa de Gaza. Os estrondos das primeiras explosões não haviam perturbado a família.

Já faz mais de um mês que os canhões israelenses bombardeiam a região para prevenir os tiros de foguetes artesanais disparados pelos grupos armados palestinos, e, diante disso, os habitantes aprenderam a dominar seu medo. Em geral, os obuses caíam e explodiam nos campos dos arredores, os quais ficaram abandonados desde a sua destruição pelas escavadeiras israelenses.

Ou ainda, eles explodiam sobre as ruínas das antigas colônias. Esses locais são utilizados pelos militantes palestinos para disparar seus foguetes Qassam, artefatos artesanais improvisados que conseguem atingir, de vez em quando, a zona industrial de Ashkelon, e, com maior freqüência, a cidade de Sderot, muito perto de lá.

Na maioria dos casos, essas cargas explosivas caem na água ou no descampado, sem provocar dano algum. Contudo, vários habitantes de Sderot foram mortos.

"Um erro que engendra o ódio"

O ministro israelense da defesa, Shaul Mofaz, anunciou na terça-feira um endurecimento das operações militares. "Enquanto a calma não reinar do lado israelense, ela não reinará do lado palestino. As nossas operações vão ficar cada vez mais amplas e intensas", afirmou.

Segundo informam os meios de comunicação israelenses, o exército ampliou a "zona proibida" submetida aos bombardeios, de modo que o seu limite de alcance passou a ficar a uma distância de 100 metros apenas das habitações, enquanto ele era distante de 300 metros anteriormente. Cerca de 300 obuses explodem diariamente no norte da faixa de Gaza.

Será que os tiros de barragem da artilharia israelense haviam obrigado, naquele dia, os combatentes palestinos a recuarem até as áreas habitadas de Beit Lahiya? É o que afirma o exército israelense, que apresentou um pedido de desculpas pela morte de Hadil.

Em meio aos destroços da sua casinha, onde ele fuma um cigarro depois do outro, Mohammed recusa esta explicação. "É um pretexto que eles dão toda vez que crianças são atingidas", diz. "Não havia nenhum militante em nossa casa nem na vizinhança. De qualquer forma, a gente não os deixaria fazer isso a partir deste lugar".

No dia que se seguiu ao drama, um oficial israelense contatou Mohammed por telefone. Enquanto de maneira geral o exército se apressa para cancelar as eventuais autorizações para entrar em Israel das quais beneficiam os parentes das vítimas, por temer uma possível vingança, o seu interlocutor, ao contrário, lhe ofereceu uma autorização como reparação.

"Ele falava em árabe", conta Mohammed. "Ele me disse se chamar Gavi e ser responsável pela segurança nas fronteiras. Durante vinte anos eu trabalhei em Israel, até que a minha autorização me seja retirada sem razão, há um ano e meio. Eu rechacei a sua oferta. Como pode ele imaginar que eu possa ter vontade de ver judeus depois do que aconteceu comigo?"

Uma barraca de luto é levantada para as mulheres, um pouco afastada da casa atingida. Nela, Safeya, com o rosto inchado pelo desgosto, recebe as condolências das suas vizinhas. Ela segura no colo sua recém-nascida, Rana, 3 anos, que tem uma mão enfaixada e as bochechas salpicadas de queimaduras.

Sentado sobre o mesmo cobertor, Mounir, 9 anos, com uma compressa sobre o olho esquerdo, engole biscoitos, com ar ausente. "Ele está na mesma escola que Hadil", explica Haifa, a diretora. "Todos os seus camaradas estão chocados. Como ensinar a paz para as crianças dentro de condições como essas?"

Ume voz surge em meio às mulheres. Aziza, uma professora de árabe, interpela o "jornalista francês". "Por que o seu governo suspendeu a sua ajuda para o povo palestino?", exclama. "O que será que nós fizemos para merecer ser punidos? Os ocidentais não querem nos apoiar e, além disso, eles exercem uma pressão sobre o mundo árabe para que ele pare de nos enviar dinheiro. No dia em que nós começamos a aplicar a democracia, conforme vocês nos pediram para fazer, nós nos tornamos um inimigo. É um erro que vai engendrar ódio entre os povos".

Fonte: Le Monde
Tradução: UOL Mídia Global