Casa da Colina, um cenário ermo e desolador

Por Sullivan Bernardo de Almeida (Carta Maior)*

A Casa da Colina, atualmente Museu Biográfico Casa Guilherme de Almeida, mantido pela Secretaria Estadual da Cultura de São Paulo, além de não oferecer condições

Ocupando uma área de 350 metros quadrados, a Casa da Colina[1], – atualmente Museu Biográfico Casa Guilherme de Almeida – foi projetada pelo arquiteto Silvio Jaguaribe Eckmann, em 1945. Em 1946 Guilherme de Almeida passou a residir na casa, até a data de sua morte em 1969. Dez anos depois, a Casa da Colina foi transformada em um museu biográfico, inaugurado em 13 de março de 1979. Sendo Guilherme de Almeida, um dos articuladores da Semana de 22, o rico e variado acervo do museu possui obras dos principais modernistas brasileiros: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Victor Brecheret, Portinari, Antonio Gomide, Paim Vieira, Noêmia Mourão, Samson Flexor, Guignard, Poty, entre outros.

Além das obras modernistas é possível encontrar móveis antigos, pratarias, objetos decorativos, fotografias, livros, revistas, hemeroteca, correspondência pessoal e documentos. A consulta a este material é facultada apenas a estudiosos e especialistas, mediante apresentação de carta de recomendação da instituição que referenda a pesquisa.

Entre as preciosidades encontradas no museu, encontram-se os “Fantoches da Meia-noite”, obra singular[2] na história da arte brasileira. Envolvidos num papel velho e amarelado, os desenhos ficam numa estante metálica localizada no quarto onde dormia Gui de Almeida, filho de Guilherme e Baby[3]. As condições de conservação e segurança são precárias, o ambiente não é climatizado e não possui nenhum tipo de monitoramento por câmeras de vídeo, tornando sua subtração uma possibilidade bastante exeqüível.

Para os pesquisadores, a situação torna-se ainda mais difícil, já que o museu, vinculado a Secretaria Estadual da Cultura, não mantém uma equipe especializada para atendimento, além de não seguir nenhum tipo de normatização técnica para arquivamento das obras e preenchimento das fichas catalográficas. Desta forma a consulta aos arquivos[4] quase sempre é um ato improdutivo e tedioso.

Diante do deste breve relato, é possível perceber que o pesquisador interessado em investigar os “Fantoches da Meia-noite” terá dificuldades, pois as duas únicas instituições públicas[5] que mantém os “originais” parecem ter dificuldades de exercer uma das suas principais funções que é conservar e preservar a memória, fator decisivo para a produção do conhecimento.

A série “Fantoches da Meia-noite” é sem dúvida a obra mais significativa do período em que Di Cavalcanti atuou como artista gráfico. Sua publicação significou uma mudança no seu estilo de produzir ilustrações e, ainda, antecipou o discurso expressionista ferozmente repudiado pela tradição acadêmica durante a Semana de 22.

É lei! – "Um museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e aberto ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe para finalidades do estudo, da instrução e da apreciação, evidência material dos povos e seu ambiente" [6].

No Brasil, a Constituição Brasileira de 1988, traz artigos referentes ao patrimônio cultural brasileiro dentre os quais merece considerações:

"Artigo 23º – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV – Impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de ouros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

Artigo 30 º – Compete aos Municípios: IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Decreto-lei nº 25 que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional cujo Capítulo I, Artigo 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse pública, que por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.Capítulo II. Do Tombamento. Artigo 26 – Os negociantes de antiguidade, de obras de arte de qualquer natureza, de manuscritos e livros antigos ou raros são obrigados a um registro especial no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cumprindo-lhes, outrossim, apresentar semestralmente às mesmas relações completas das coisas históricas e artísticas que possuírem. (IPHAN, 2004).

A Casa Guilherme de Almeida é o primeiro museu biográfico da cidade e possui um rico acervo composto por desenhos, gravuras, pinturas, esculturas, móveis, objetos decorativos, fotografias, livros, revistas, hemeroteca, correspondência pessoal além de outros documentos. Entre o grupo de esculturas, vale destacar a peça em bronze criada por Brecheret, intitulada "Sóror Dolorosa". Nas bibliotecas, existem livros em primeira edição, entre os quais um precioso volume em pergaminho, datado do Século XVII. Há também uma coleção de mapas holandeses autênticos, juntamente com uma série de fotografias em preto e branco de grande importância histórica, que infelizmente, em breve, estarão destruídos por falta de condições adequadas de conservação e preservação.

Conservar X Conservar – De origem latina a palavra “conservar” significa manter no lugar, no estado atual e, parece que é exatamente isso que tem sido feito desde de sua inauguração. O que seus “mantenedores” não sabem, ou se esqueceram, que conservar também significa amparar, defender, guardar com cuidado, fazer durar.

Neste sentido, conservar/esconder impossibilita o conservar/fazer durar. É preciso tornar público o acervo para que haja algum tipo de iniciativa voltada para a preservação do mesmo. A Casa Guilherme de Almeida deve ser divulgada e aberta ao público em geral, obedecendo é claro às limitações de circulação no interior do prédio.

A este respeito Cristina Freire[7] em seu livro “Poéticas do Processo”[8] afirma que conservar não é somente uma questão técnica, mas é também dar inteligibilidade, na medida em que somente a produção efetiva do conhecimento a partir das coleções é capaz de preservá-las do esquecimento. Neste sentido, a pesquisa que resultou na publicação de “Poéticas do Processo” cumpriu o papel de conservar/fazer durar, pois trouxe à tona não somente um acervo que estava, assim como o da Casa Guilherme de Almeida, esquecido nos armários de aço nos corredores do MAC – Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, mas conferiu-lhe inteligibilidade, fazendo com que novos pesquisadores possam lançar outros olhares sobre este tão preciso patrimônio material e imaterial de uma sociedade em transformação. Em certo sentido, este trabalho dialoga com a pesquisa de Cristina Freire, pois ao tentar dar visibilidade aos “Fantoches da Meia-noite”, descobrimos que o museu “conserva” em suas estantes uma série de outras obras desconhecidas do público e até mesmo de muitos pesquisadores.

Estes não são os únicos casos de indiferença praticados pelo Estado em relação ao patrimônio cultural. É sabido que diversos museus, bibliotecas e casas de cultura convivem com o mesmo problema. Por isso é necessário criar ações, a fim de desencadear um processo contínuo de disseminação dos acervos, começando pela digitalização dos mesmos, do contrário perderemos nosso referencial histórico.

(*) Sullivan Bernardo de Almeida é formado em Letras, pós-graduado em História da Arte e Estudos de Museus de Arte pela Universidade de São Paulo e mestrando em Educação, Arte e História da Cultura.

NOTAS
[1] Local de concorridos saraus a Casa da Colina recebeu este nome porque ficava em um local isolado e muito alto na Rua Macapá, 187 – Perdizes.

[2] Esta obra é cercada de incertezas, não se sabe exatamente a técnica utilizada pelo artista, nem se existe uma outra versão, ou ainda, se o exemplar que se encontra na Casa Guilherme de Almeida é realmente um original. Vale ressaltar que recentemente a Biblioteca Nacional lançou um livro sobre histórias em quadrinhos onde foi publicada uma série dos Fantoches em tons pastéis, diferente dos desenhos encontrados na Casa Guilherme de Almeida, que trazem tons mais vibrantes como o vermelho.

[3] Baby Barroso do Amaral era esposa de Guilherme de Almeida.

[4] Apesar de serem parte do patrimônio cultural, os documentos dos arquivos, os manuscritos e os documentos impressos não sobrevivem por si mesmos; é necessária uma vontade política para salvaguardar e proteger esta herança cultural e para enriquecê-la continuamente com documentos contemporâneos de valor duradouro. Como em uma casa vazia, o patrimônio que não é administrado e mantido por arquivistas ou bibliotecários competentes e que não está acessível aos pesquisadores e ao grande público, está condenado a deteriorização e ao desaparecimento. Por esta razão, numerosos países editam regulamentos e leis para a proteção, conservação e utilização dos arquivos. (IBICT, 1999, p 169).

[5] Existe uma “reprodução” na Biblioteca Nacional, mas não foi possível fotografa-la, pois o Departamento de Iconografia está fechado por conta de um roubo ocorrido na instituição este ano (2005).

[6] (ICOM Estatuto, artigo 2, parágrafo. 1. Esta definição foi adotada pelo ICOM Assembléia Geral em Copenhagen em 1974).

[7] Cristina Freire é pesquisadora, escritora e docente da Universidade de São Paulo.

[8] O livro resgata um acervo que ficou guardado no Museu de Arte Contemporânea por mais de vinte anos. Nele se encontram obras de Regina Silveira, Julio Plaza, Anna Bella Geiger, Krzysztof Wodiczko entre outros artistas consagrados do Brasil e do exterior. São fotos, desenhos, cartões-postais e projetos de instalações.