Carta Maior: Brasileiro elege-se senador na Itália e avalia mudanças na Europa

José Luís Del Roio, 63, acaba de se eleger senador na Itália pelo Partido da Refundação Comunista. Segundo ele, “é preciso ficar claro que só houve a possibilidade de se derrotar Berlusconi por existirem os Fóruns Sociais

Por Gilberto Maringoni

O brasileiro José Luís Del Roio, 63, acaba de se eleger senador na Itália. Militante desde os 17 anos de idade, ele disputou sua primeira eleição parlamentar pelo Partido da Refundação Comunista. Sua trajetória, desde Bragança Paulista, no interior de São Paulo, onde nasceu, até o parlamento italiano daria um rocambolesco roteiro de cinema.

Dirigente do PCB, nos anos 1960, o atual senador afastou-se do partido após o golpe militar. Fundou, juntamente com Carlos Marighella e outros ativistas, a Aliança de Libertação Nacional (ALN), que abraçou a luta armada como forma de resistência. Quando a ditadura fechou o cerco aos opositores, Del Roio seguiu para o exílio. Trabalhou no Peru, em 1970, durante o governo nacionalista de Juan Velasco Alvarado, e no Chile, na administração do socialista Salvador Allende. Um novo golpe, liderado pelo general Augusto Pinochet, o levou a Argélia. Em 1975, em Moscou, ele volta ao PCB e vincula-se a Luís Carlos Prestes (1898-1990).

Dois anos depois, um pedido do velho dirigente acaba por mudar sua vida. Informações vindas do Brasil davam conta de que as forças de segurança da ditadura localizaram importantes acervos do partido. Eram as bibliotecas de Astrojildo Pereira (1890-1965), intelectual e fundador do Partido Comunista do Brasil, em 1922, e do ex-deputado Roberto Morena (1906-1978). As coleções compreendiam peças únicas de jornais, revistas e livros do movimento operário das primeiras décadas do século 20. Se fossem apreendidas, seria quase certa a sua destruição.

“Prestes tinha um contato com a Fundação Giangiacomo Feltrinelli, de Milão, e me pediu para tirar o material do Brasil e trazer para cá”. Com a ditadura nos calcanhares, ele coordenou a coleta do material, que foi escondido entre malas, almofadas, panelas e móveis de uma brasileira em mudança para a Europa. Durante anos, a papelada foi a base do Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano, e Del Roio foi seu principal organizador. “Isso me prendeu à Milão”, diz ele, que se casou com uma professora universitária suíça, com quem tem uma filha. Em seguida, obteve sua cidadania italiana. Hoje os documentos estão de volta, catalogados, fichados e arquivados no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista.

“Devo ser um dos poucos loucos que ama São Paulo”, brinca Del Roio. As novas funções no Senado italiano o deixarão mais tempo afastado da cidade, para onde vem pelo menos duas vezes por ano. Como dirigente do Fórum Mundial das Alternativas, uma das principais organizações do Fórum Social Mundial, ele passa boa parte do ano fora da Itália, a trabalho. Isso agora deve mudar um pouco: “Temos uma maioria muito estreita no Parlamento. Meu voto pode ser decisivo em questões polêmicas”.

Com a palavra, o senador da Lombardia que até hoje não perdeu o sotaque caipira do interior de São Paulo. A entrevista foi concedida nesta terça-feira (11), por telefone.

Carta maior– Como o senhor vê o resultado eleitoral?
É um grande avanço, apesar de termos sérios problemas a resolver no curtíssimo prazo. O país está dividido ao meio. Como o regime é parlamentarista, tudo passa pelo Congresso. Dentro de 30 dias temos de eleger o presidente da República e Berlusconi pede a recontagem de uma série de votos. Se a medida for aceita, teremos crise, se não for, teremos crise. A Itália é o país mais complicado do mundo e vamos formar um governo igualmente complexo. Temos na coalizão comunistas, sociais-democratas e cristãos de esquerda. Ao mesmo tempo, há sociais-democratas muito à direita, o que gerará uma intensa disputa de rumos. Se fizermos um balanço, veremos que há 91 parlamentares que se dizem comunistas. Temos uma esquerda claramente antineoliberal que domina 20% do parlamento. Isso corresponde a 40% do governo. Não podemos nos esquecer que tivemos aqui o neoliberalismo mais extremado, combinando medidas de ajuste interno muito duras, com a total subordinação aos EUA. Isso tem de mudar. Só podemos planejar nosso futuro integrando-nos a uma União Européia transformada.

Carta maior – Como ficará o alinhamento internacional do país?
A Itália é ainda um país de certa importância no mundo, não apenas por ser a sétima economia capitalista. Nesses anos de Bush e de guerras, ela foi um aliado decisivo, depois da Inglaterra, de Blair. Uma de nossas primeiras medidas será pedir a retirada imediata das tropas italianas do Iraque. Nosso eleitorado quer isso. É uma ruptura grave, pois somos o penúltimo grande aliado dos EUA a sair da coalizão. Isso evidencia um fato para o qual poucos atentam: a Itália não é autônoma e livre. Somos o país que mais bases estadunidenses possui em seu território em todo o mundo. São cerca de 80! Funcionamos como o porta-aviões dos EUA no mediterrâneo.

Carta maior – A América Latina vive, com muitas diferenças entre os governos, uma inflexão á esquerda. A eleição na Itália, depois da derrota de Aznar na Espanha e das mobilizações sociais francesas, estaria a indicar algo semelhante, na Europa?
É difícil dizer. De certa forma, há o início de uma onda mais à esquerda no continente. A França foi capaz de inviabilizar a Constituição Européia, que consagraria várias medidas de ajuste, através do “Não” dado no plebiscito do ano passado. Nas últimas semanas, uma intensa mobilização popular evitou a flexibilização das leis trabalhistas. No entanto, os franceses não conseguem transformar esse impulso em força institucional e programa de governo. Nós, ao contrário, conseguimos isso, mas não temos movimento nas ruas. Fizemos magníficas manifestações contra a guerra do Iraque, com três milhões de pessoas, há dois anos atrás. Houve um refluxo e não temos, na Europa, uma liderança como o presidente Hugo Chávez, para fazer a disputa de maneira mais clara com a direita. É preciso ficar claro que só houve a possibilidade de se derrotar Berlusconi por existirem os Fóruns Sociais Mundiais e pelos gigantescos protestos que realizamos aqui contra a globalização neoliberal e pela paz. Eu só fui eleito senador pelo movimento dos fóruns sociais.

Carta maior – Ao mesmo tempo, há expressivas atividades localizadas, na Itália.
É verdade. Tivemos vitórias importantes. Bloqueamos o principal projeto da União Européia, a ferrovia Lisboa-Pequim. A obra é desnecessária e arrasaria comunidades e o meio-ambiente em inúmeros pontos de seu trajeto. Apesar de não termos mobilização nas grandes cidades, temos nas montanhas. Populações de vilas, cidadezinhas e comunidades camponesas protestaram em massa. Mães com filhos no colo, velhos, moços, todos foram à luta. Foi uma grande vitória contra a globalização neoliberal. E, além disso, conseguimos derrotar algumas leis trabalhistas liberalizantes.

Carta maior – Como está a questão da imigração?
Estamos assistindo ao surgimento de um proletariado sem direitos e discriminado pela etnia e pela religião, a exemplo do que acontecia no final dos anos 1800. Ele está nas fábricas, nas casas e nas ruas. Este foi o setor que, sem poder votar, me apoiou resolutamente. Como não tive nenhum suporte econômico, contei com o suporte das comunidades imigrantes, que distribuíam panfletos, conversavam com seus vizinhos, amigos, namorados etc., pedindo votos. Foi uma jornada diferente, feita por esse movimento, pelas campanhas vinculadas ao processo dos fóruns e pelos sindicatos. Todo o meu material de divulgação era baseado nas cores verde, amarelo e azul. Não gastei um tostão e não tivemos acesso a rádio ou televisão. Há campanhas milionárias, também, mas nada que se assemelhe ao Brasil, pois a legislação eleitoral aqui é dura. Por ser também radialista, sou conhecido na região da Lombardia. Para a Itália, ela é como o Estado de São Paulo, em vários aspectos. Aqui se concentra 40% da riqueza nacional e a maior parcela do eleitorado conservador.

Fonte: Agência Carta Maior