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Cláusula de barreira: a volta do entulho autoritário

Por José Carlos Ruy
A cláusula de barreira de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados mais 2% em pelo menos nove estados, introduzida pela lei 9096, de 1995, repete as leis da ditadura militar contra a organizaç&atil

Os costumes eleitorais, em todos os países, refletem a história e também os avanços democráticos alcançados em cada um deles. No Brasil, a legislação eleitoral, baseada no voto proporcional para os corpos legislativos e no voto majoritário para cargos executivos e para o Senado, resultou de intensa luta política travada que vem desde os tempos do Império e foi aprofundada sob a República.
Essa legislação foi fortemente atacada nos períodos de ditadura e de autoritarismo. Como ocorre hoje, com a legislação partidária instituída por Fernando Henrique Cardoso, que impôs a cláusula de barreira de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, mais 2% dos votos em nove Estados, para que os partidos possam ter funcionamento parlamentar normal.
A organização partidária passou a ser tema para a legislação brasileira após a revolução de 1930. O código eleitoral de 1932 reconhecia três tipos de situação: os partidos estáveis, organizados como sociedades civis, os partidos organizados apenas para concorrer a uma eleição, sendo dissolvidos em seguida, e as candidaturas avulsas, desde que apoiados por um certo número de eleitores. Esse sistema vigorou até 1937, quando a ditadura do Estado Novo fechou os partidos.
Os partidos só reapareceram em 1945, com o fim da ditadura, e já encontraram as primeiras restrições legais à sua organização. O código eleitoral daquele ano exigia que, para sua legalização, cada partido apresentasse 10 mil assinaturas de eleitores, espalhados por cindo Estados, com um mínimo de 500 por Estado. Era obrigatório o registro no TSE, embora os  partidos continuassem com o estatuto de sociedades civis regidas pelo Código Civil.
Em maio de 1946, o presidente da República, marechal Eurico Gaspar Dutra, um político conservador, que durante a Segunda Grande Guerra teve simpatias por Hitler e Mussolini, ampliou a exigência para 50 mil. A lei também proibia os partidos que fossem filiados a organizações internacionais e recebessem dinheiro do exterior. Este dispositivo, claramente voltado contra os comunistas, só foi usado uma vez quando, em 1947, o TSE cassou o registro legal do Partido Comunista do Brasil.
O Código Eleitoral de 1950 passou considerar os partidos como pessoas jurídicas de direito público, e desde então seus estatutos, programa e a própria a vida partidária passaram a ter um controle externo. Previa também o cancelamento do registro do partido que não conseguisse eleger ao menos um deputado para a Câmara dos Deputados ou não alcançasse ao menos 50 mil votos.
Embora fosse antidemocrática e restritiva, como qualquer cláusula de barreira, aquela podia ser considerada suave em relação à que está em vigor desde 1996. Com a ditadura militar de 1964, as restrições à organização partidária foram endurecidas. Em 1967, os militares proibiram as coligações partidárias e, para existirem, os partidos precisavam ter 10% dos votos para a Câmara dos Deputados, em 2/3 dos Estados, com pelo menos 7% dos votos em cada; além disso, precisavam eleger 10% dos deputados em pelo menos um Estado, e 10% dos senadores. Os militares e os políticos conservadores que os apoiavam tinham um objetivo claro: reduzir o número de partidos para apenas dois, criando uma situação semelhante à dos EUA, onde apenas os partidos Republicano e Democrata conseguem ter representação parlamentar. Mas eram restrições severas demais, e os próprios militares acabaram por flexibilizá-las na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que reduziu a exigência para 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, em pelo menos nove Estados, com um mínimo de 3% em cada um deles. Anos depois, em 1985, voltaram a alterar as regras, fixando a exigência em 3% dos votos para a Câmara dos Deputados, em cinco Estados, com um mínimo de 2% em cada um deles.
É “fácil perceber que tais exigências se mostravam inteiramente coerentes com o bipartidarismo e a concepção autoritária” vigente sob a ditadura, diz a especialista Kátia de Carvalho, da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados e autora do estudo “Cláusula de barreira e funcionamento parlamentar”.
A crônica contemporânea da cláusula de barreira teve início na revisão constitucional de 1993. Foi justamente em oposição àquele espírito autoritário que a Constituição de 1988 aboliu qualquer restrição dessa natureza. Entretanto, na revisão de 1993, o relator da matéria referente à organização partidária, o então deputado Nelson Jobim, tentou criar a cláusula de barreira de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados mais 2% desses votos em pelo menos 1/3 dos Estados, proposta que não foi sequer votada. Mas, em 1995, no começo do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Congresso aprovou a lei 9096, de 19 de setembro de 1995, impondo a regra que está em vigor e ameaça deixar fora da Câmara dos Deputados setores importantes da opinião pública, ameaçando especialmente o Partido Comunista do Brasil e criando obstáculos para que ele, caso não consiga cumprir aquela exigência, possa cumprir o papel de destaque que vem desempenhando na República.
A eleição de 2002 foi disputada por 30 partidos. Deles, apenas quatro obtiveram 10% ou mais dos votos: Partido dos Trabalhadores (18,4%), Partido da Social Democracia Brasileira (14,3%), Partido do Movimento Democrático Brasileiro e Partido da Frente Liberal (ambos com 13,4%). Isto é, os quatro maiores partidos saíram das urnas com quase 60% dos votos. Outros três partidos obtiveram entre 5 e 10% dos votos – o Partido Progressista (7,8%), o Partido Socialista Brasileiro (5,3%) e o Partido Democrático Trabalhista (5,1%).
Isto é, pelo resultado eleitoral de 2002 para a Câmara dos Deputados, somente quatro grandes partidos teriam assegurado seu funcionamento normal, e outros três menores teriam alguma chance; os outros 23 ficariam irremediavelmente de fora, demonstrando o caráter profundamente restritivo da cláusula de barreira. Com ela, os conservadores conseguiram trazer de volta, à legislação partidária, o mesmo espírito da legislação da ditadura militar, “que conseguimos revogar junto com o entulho autoritário, volta a vigorar”, como lembrou Renato Rabelo.