Inezita velha de guerra

Ainda na década de 1960 eu comecei a formar uma discoteca pessoal, com LPs e compactos que ganhava ou conseguia comprar. Tinha muita MPB, mas o forte era o rock, de Beatles e Stones a Hendrix, Joplin e Mutantes. Mas, lá no meio, um LP de capa branca, como uma pequena foto ao centro, se destacava: era um álbum de Inezita Barroso.

O caso serve apenas pra demonstrar o quanto a arte de Inezita está presente entre nós, desde meados do século passado e estará pra sempre. Ela faleceu neste domingo (8) ao completar 90 anos de idade.

Inezita talvez tenha ficado mais conhecida como cantora de música caipira, paulista que era. Já estaria de bom tamanho, mas sua importância na história das artes no Brasil vai muito além disso.

Como pesquisadora incansável, sempre reforçou e ajudou a preservar as mais diversas manifestações culturais brasileiras. Ritmos, danças, cantorias e cantigas dos mais recônditos rincões desses brasis, dos pampas gaúchos aos beiradões amazônicos, foram o motor da sua vida. Sempre foi atrás, a pé, em lombo de mula, barco, jipe, ônibus ou avião. Ao som de tambores e violas, ou em silêncio.

A diversidade vem com ela do berço. Ela nasceu na cosmopolita São Paulo, em março de 1925, com o nome de Ignez Madalena Aranha de Lima. Era filha da elite cafeeira paulista, pois embora seu pai tenha sido funcionário da Estrada-de-ferro Sorocabana, era essa sua atividade principal.

Por isso, desde muito pequena ela andava pelas fazendas da família, no interior, em contato com trabalhadores e populações locais. São daí os primeiros encontros ao vivo com causos e cantorias. Ficava encantada, a menina.

Apesar de se dizer avesso à música caipira, e de em casa só ouvir música clássica, seu pai era amigo de Raul Montes Torres, o cantor e compositor de alguns clássicos, anos depois gravados por Inezita. Ela o conhecia de uma fazenda de seu pai, próxima a Botucatu, que Torres costumava visitar. São dele, por exemplo, “Moda da Mula Preta”, “Saudades de Matão”, “Colcha de Retalhos” e “A Moda da Pinga”.

Como toda moça da alta-roda de então, ela estudou piano, o que despertou sua verve musical, logo transposta pra outros instrumentos, especialmente o violão. Desde os 7 anos de idade, já tocava em festinhas no Clube de Perdizes, bairro sofisticado da capital paulista. “A família torcia o nariz, porque era feio ser artista, ainda mais pra mulher”, contou ela certa feita, em entrevista.

Seu gosto pela pesquisa adveio, por certo, do curso de Biblioteconomia na Universidade de São Paulo (USP), em que se formou em 1953. Mas, sua biblioteca estava mesmo nesse mundão, a céu aberto ou barracões de festas populares. E era muito afinada com seu gosto por música.
O sobrenome ela emprestou do advogado cearense Adolfo Cabral Barroso, com quem se casou em 1947, aos 22 anos, e tiveram uma filha. Já o diminutivo Inezita era o jeito carinhoso com que a tratavam em casa e noutras rodas, pela sua baixa estatura e corpo franzino.

Seu marido não era músico, mas tinha um irmão que era radialista e, também por isso, a incentivava a cultivar o veio das artes. Foi o apoio mais importante que teve na vida, segundo ela.

Logo após o casamento, os dois se mudaram pro Pernambuco, onde ela pôs pra fora sua ânsia artística. O que os movia eram razões profissionais de Adolfo, mas Inezita se enturmou bem depressa no meio artístico pernambucano.

Assim, virou cantora profissional da potente Rádio Clube do Recife, nos programas de auditório que atraiam barulhentas plateias, já com o nome artístico que a acompanhou pelo resto da vida. Apesar do entusiasmo, contudo, as atividades do Recife ainda eram um ensaio para o que iria suceder nos anos seguintes, já de volta a São Paulo.

O cunhado Maurício Barroso, além do rádio, mexia também com TV e teatro, com gente como Paulo Autran e Tônia Carrero, e colocou Inezita na roda. Era a fina-flor do teatro moderno e dos primeiros passos da TV no Brasil, que ajuntava gente de todo canto, todo mundo interessado em cultura popular. E todos muito solidários, de modo que ela estava em ambiente propício para dar asas aos seus sonhos. E avoou.

O primeiro grande salto foi estrear no cinema, como atriz. É bom dizer que, desde logo, ela percebeu que essa não era bem a sua praia. Mas, de todo jeito, atuou em nove filmes de longa-metragem, num dos quais em papel principal. Foi em “Mulher de Verdade”, de Alberto Cavalcanti, em que interpretou uma enfermeira bígama, pelo que foi agraciada com o Prêmio Saci de melhor atriz de 1955.

A estreia mesmo, porém, foi em papel de prostituta, em filme da Vera Cruz. Mas, foi interpretando ela mesma, como cantora, que atuou em maior número de filmes, o que reforçou sua ligação com a música. Era, de todo modo, uma atividade que denotava com força uma atitude de rebeldia aos padrões elitistas da sua família.

A projeção maior de seu trabalho, entretanto, veio por meio do rádio e do disco. O rádio, naquela época, não era apenas tocador de discos. Eram as emissoras que promoviam as festas e os programas de auditório nas capitais e cidades do interior. Dividiam o cenário com os circos que peregrinavam de praça em praça. Isso significava estar o tempo todo com o pé na estrada. Vestia roupas simples, botinas, cabelos pretos meio encaracolados, e chegava lá, fosse onde fosse.

Nessas andanças, ela conheceu todo mundo do meio musical, especialmente os caipiras. Os paulistas Tonico e Tinoco, por exemplo. Mas ela se apegou mais a Tião Carreiro, que fazia dupla com Pardinho. Tião era mineiro de Montes Claros, mas havia se estabelecido em São Paulo, incentivado por Teddy Vieira, um produtor musical e compositor de grande renome. É autor de “O Menino da Porteira”, pra citar só uma.

Mas Inezita considerava Tião o grande nome do caipira, porque ela sabia que esse gênero musical, embora colocado no mesmo saco, é diferente de região pra região. A batida de viola em Minas Gerais era muito outra. E são mais de 30 afinações diferentes, segundo levantamento que ela fez.

Ela admirava Tião porque ele misturou as pegadas e ponteios paulistas e mineiros e criou o pagode caipira, que gerou grande mudança no gênero. Além disso, ele retirou das duplas a predominância da segunda voz, estridente, valorizando a primeira voz, mais grave, cadenciada. E era, também, exímio tocador de viola, tendo gravado vários discos instrumentais, com solos.

Quando passou a gravar, em 1953, logo de cara, Inezita arrebentou em audiência com um disco que trazia as músicas “Ronda”, de Paulo Vanzolini, e “A Moda da Pinga” (conhecida como “Marvada Pinga”), de Ochelsis Laureano e Raul Torres. E aí, em meio a tantas andanças, tem um caminhão de histórias. Cada música foi gravada por algum motivo. Ela sabia de todas, mas, quando se punha a falar disso, rendia dias de conversa.

Uma das histórias, porém, é especial de boa, como ela dizia. Trata-se de “Lampião de Gás”, que se tornou um de seus maiores sucessos, mas por acaso. A autora é Zica Bérgami, uma senhora da alta sociedade paulistana, que procurou Inezita nos estúdios da TV Record, só que não teve coragem de falar com ela.

Acompanhada de uma amiga – ambas finamente vestidas, com colares de pérolas e perfume francês –, Zica se dirigiu ao maestro Hervê Cordovil, diretor musical, e disse que tinha uma música pra Inezita cantar. Ela cantarolou a melodia e entregou a letra a ele, que a guardou numa gaveta, com jeito de que ali iria mofar.

Belo dia, no entanto, ao finalizar um novo disco de Inezita, havia espaço pra mais uma música e Hervê se lembrou da tal composição. Improvisou um arranjo, que ela adorou, e a peça foi gravada, como tapa-buraco. E deu no que deu.

Essas histórias acabam vindo à tona, até mesmo porque Inezita guardou meticuloso arquivo de toda sua carreira, desde menina, assim honrando seu diploma da USP. São recortes de jornais e revistas, fitas de rádio e TV, cartazes, objetos diversos e o que mais se imaginar, tudo organizado, devidamente catalogado.

Ademais, o programa Viola, Minha Viola, que ela apresentava semanalmente na TV Cultura de São Paulo, desde 1980, é um baú de informações sobre a música de raiz no Brasil. Ela sempre se queixou de pressões para dar guarida a artistas da chamada “nova música sertaneja”, um estilo que incorpora outros ritmos, inclusive estrangeiros. Mas, sempre resistiu, com o beneplácito da emissora. E sempre deu a palavra final sobre os convidados, por exemplo.

Pois bem, mas recentemente um casal amigo me deu uma caixa com CDs remasterizados de Inezita Barroso, numa retrospectiva da sua carreira. Dentre esses discos, um deles me lembrou do passado. É aquele de capa branca, com uma pequena foto dela ao centro. Mas continua muito atual, porque é eterno.

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