Marx e Engels e a polêmica dos direitos autorais

Desde meados de 2014 vem sendo travada pela internet uma polêmica a respeito dos direitos autorais sobre as obras de Karl Marx e Friedrich Engels. Ela é de enorme interesse para marxistas, militantes sociais e políticos, estudantes e pesquisadores em geral.

 Tudo começou em abril de 2014 quando a editora inglesa Lawrence & Wishart (L&W) notificou (via email!) ao Marxist Internet Archive (Arquivo Marxista na Internet – MIA – www.marxists.org ) para tirar do ar as obras de Marx e Engels sobre as quais reivindica direitos autorais.

A L&W é uma tradicional editora britânica de esquerda. Foi fundada em 1936 .numa associação entre o editor Martin Lawrence, o Partido Comunista da Grã-Bretanha e a Wishart Ltd, uma editora antifascista.

Era a época da política de Frente Popular adotada pela Internacional Comunista, e a L&W ajudou a difundir a cultura marxista entre os ingleses, com obras clássicas, científicas, literatura e também revistas teóricas e de divulgação marxista.

Entre os autores estavam desde W. H. Auden e Christopher Isherwood; mais tarde incluiu autores como Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Edward Thompson, J. D. Bernal, entre outros.

O MIA, por sua vez, é a mais completa biblioteca virtual com o objetivo de divulgar obras de autores marxistas e mesmo pensadores clássicos não marxistas. Lá estão autores como Karl Marx, Friedrich Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburg, Che Guevara, e também Bakunin ou Proudhon, Max Weber e pensadores como Maquiavel, Descartes, Rousseau ou Hegel.

As primeiras iniciativas para formar a biblioteca virtual datam de 1990, sendo inaugurada pela disponibilização na internet de O Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. Em 2002 recebeu a denominação atual.

O MIA é mantido por voluntários (atualmente são cerca de 62 em 33 países) e o acesso às obras é completamente gratuito; seu acervo virtual contém cerca de 53 mil obras de 592 autores, em mais de 60 idiomas diferentes.

A polêmica teve início assim que se soube da decisão tomada pela L&W de proibir a divulgação no MIA das obras em inglês de Marx e Engels; a editora britânica chegou a ameaçar com medidas judiciais em defesa de sua pretensão.

Uma primeira ação contra a decisão da L&W foi o abaixo-assinado (https://www.change.org/p/lawrence-wishart-no-copyright-for-marx-engels-collected-works), que rapidamente recebeu a adesão de quase 5 mil marxistas e democratas em todo o mundo.

O texto do abaixo assinado, escrito pelo cineasta paquistanês Ammar Aziz, indica com clareza que o problema envolvido não é legal nem comercial mas político: “Vocês não podem privatizar seus [de Marx e Engels] escritos – eles são propriedade coletiva do povo para o qual foram escritos. Privatizar os escritos de Marx e Engels é como patentear o uso das palavras socialismo e comunismo".

Ele tem razão. Há grande concordância, entre os que combatem a iniciativa da L&W, sobre os aspectos comerciais da questão. Ninguém pretende criar dificuldades insuperáveis para a editora, que se defendeu dizendo que agiu para evitar um “suicídio institucional” que considera inevitável se as obras de Marx e Engels continuassem disponíveis no MIA.

A L&W disse estar negociando a distribuição eletrônica daquelas obras para bibliotecas universitárias, e isso será financiado com recursos de fundos públicos.

Há também grande acordo a respeito dos aspectos legais do problema, embora o consenso não seja tão amplo. Afinal há décadas as obras de Marx e Engels estão em domínio público. Em geral as leis de direito autoral, que variam de país para pais, estabelecem como limite para isso o prazo de 70 anos após a morte do autor – Marx morreu em 1883. Isto é, 131 anos antes da decisão da L&W. Engels morreu em 1895; ou seja, 119 anos antes.

Embora a reivindicação da L&W incida sobre a tradução em inglês e não sobre os originais de Marx e Engels, muitos contestam a legitimidade daquele pleito. Afinal as traduções para o inglês feitas desde 1975 resultam de investimentos feitos pela Editorial Progresso, a editora mantida pelo governo soviético até 1991, pela International Publishers, ligada ao Partido Comunista dos Estados Unidos, e a L&W – que, assim, não fez sozinha os investimentos para a tradução, e talvez nem tenha sido a principal financiadora do empreendimento.

Deixando à parte os problemas comerciais e legais da questão, a revolta provocada pela decisão da L&W está ligada aos aspectos políticos e éticos. O argumento fundamental questiona se há sentido em proteger como se fosse uma propriedade monopolista a obra dos fundadores da moderna luta anticapitalista.

A L&W, que se declara uma editora radical e anticapitalista, atua de forma empresarial para defender o que pretende serem seus direitos autorais. Nessa pretensão ela se iguala a empresas monopolistas como as grandes gravadoras de discos, as grandes produtoras de filmes, aos gigantes farmacêuticos ou a fabricantes de sementes como a Monsanto.

Este é o ponto chave da polêmica. A legislação de direitos autorais surgiu, no século 19, para proteger os direitos dos autores contra a ganância de editoras e outras empresas que exploram aquilo que foi elaborado por seus talentos. Ao longo do século 20, com o desenvolvimento das grandes empresas monopolistas, ela foi se transformando e virou defesa da “propriedade intelectual” sobre a qual os monopólios podem reivindicar direitos exclusivos.

Mas tratam-se de coisas diferentes. “Direito autoral” é inerente ao autor, pessoa física e não jurídica, e sua defesa é a proteção do trabalhador. “Propriedade intelectual”, ao contrário, é algo que, embora intangível, pode ser apropriado privadamente, com finalidade comercial, por empresas que contrataram profissionais para elaborar obras de arte ou do pensamento; são empresas que compram a força de trabalho do profissional que tem o talento para fazer isso. Esta é a norma capitalista: a valorização do capital através do emprego da força de trabalho alheia.

O próprio título do artigo que saiu no jornal publicado pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha define a posição crítica contra a reivindicação de direitos de propriedade intelectual pela L&W; é uma afirmação direta: “Karl Marx and Friedrich Engels for the masses” (“Karl Marx e Friedrich Engels para as massas” – Weekly Worker, 22/5/2014). O artigo reafirma a convicção de que a obra dos fundadores do socialismo científico pertence ao movimento dos trabalhadores como um todo, não estando portanto sujeita à legislação burguesa de direitos autorais. Nesse sentido, faz um agradecimento ao MIA que, ao tornar possível a milhões de pessoas o livre acesso a obras marxistas, presta “um real serviço ao nosso movimento”.

Em sentido oposto, a L&W “tem posto o direito burguês de propriedade acima das obras desses dois homens cujas vidas encarnaram a luta para deixar esses direitos para trás”.

Apontando a oposição – ou melhor, a contradição – entre as regras do mercado capitalista e as necessidades da luta anticapitalista, enfatiza a necessidade de se olhar para o desenvolvimento de nossa própria atividade”, rejeitando o jogo do mercado.

“É extremamente irônico e absolutamente lamentável”, diz com razão, que as obras de Marx e Engels sejam removidas do MIA numa data simbólica, o “Primeiro de Maio – Dia Internacional dos Trabalhadores de 2014”.

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