Três cavalos com sela e cada homem segurando um relho (3)

Não fosse a súbita aparição da velha com os dois netos, nem a visita da filha incensando o brejo verdoso com o perfume de seu Royal Briar temporão, o vale do Engenho Bento Velho teria sua planura rasa só abanada pelos galhos do bambuzal em volta; o capim verde, com nós entre as hastes, por certo estaria oscilando entre o balanço dos bambus e a umidade fecunda na margem do riacho.

A mulher subiu o barranco de acesso à casa de farinha. A velha, com os netos de seu lado, não se agoniou para dar boas-vindas à filha. Os pirralhos se desprenderam dela, inda que não se alvoroçassem para trocar o bodum de mortalha no vestido da avó, pelo cheiro já bebido do fustão impreciso do vestido da mãe.

Ela agachou-se para abraçar os dois de uma vez. Viu que nada mudara na palidez morena do rosto de cada um. Beijou-os sem estalido nos lábios. Depois, tirou de um dos ombros as alças da tiracolo de plástico florido, enfiou a mão nos fundos e retirou-a com dois sacos fornidos de broas de milho. Os pacotes de bolachas de farinha, entregou-os à velha; juntos, mais dois de farinha de milho para o cuscuz. Por último, uma barra de queijo de manteiga cuja gordura colara no papel de seda transparente; o gosto do queijo, já conhecido da família pela azedia do amarelo-pardo da batata inglesa, era um petisco nunca recusado pela fome muda dos meninos e da velha.

– Bença a mãe…

A mulher vinha roçando os quarenta anos; inda que não os tivesse inteirados, os bicos piongos dos peitos, a base achatada e meio gorda, davam conta de que metade de sua sustança se deixara extrair nos apalpos das carnes. Quando pediu a bênção à velha, a indecisão da voz e o desengonço da mão direita levantada com os dedos espremidos, tornaram-na tão submissa quanto sinistra; olhou de través para os homens, e ficou ainda mais canhestra.

O caminho que percorrera da estrada de piçarra, cruzando o vale em direção a casa, fora reparado pelos olhos inertes do homem que a trouxera na anca do cavalo. Não se despediram com palavras, nem trocaram acenos com os olhos para o provável reencontro, visto que a cumplicidade carnal entre ambos há muito se embutira nos sentidos.

Ela olhou para os homens sem esconder a estranheza nos olhos. Os quinze homens não mais olhavam para a velha, dela já tinham ouvido o bastante para conhecer-lhe os modos e o silêncio da boca fechada. Para não se mostrar sem recato, olhou para o parelho que por trás de uma moita de bambu, não afrouxara a rédea do cavalo para partir. Depois, mirou curiosa os homens que tinham nos pés, na bandeja da casa de farinha, as lonas para fincar o assentamento.

– Vão ficar aqui? – perguntou aos homens, sem ajuizar nenhum em particular.

– Vamos aproveitar a estação pra deixar o arroz crescer, o arroz e os caroços de feijão que nós vamos enfiar em cima das covas – respondeu o mais velho, o mesmo que inquirira da velha sobre a maternidade dos meninos. Tinha um chapéu de feltro na cabeça, inclinou-o para trás para não prensar a mulher com sua voz sem variação de tom.

Ela não respondeu, mas o modo como olhou para o piso duro da casa de farinha, deu conta de um agouro que podia vir da estrada de piçarra vermelha. Entrou na casa junto com a velha e os filhos, levando as provisões para a cozinha.

Os homens desceram o barranco carregando as lonas. As barracas foram montadas em torno da vara em cuja ponta movia-se a bandeira do MST. Terminado o trabalho no fim da tarde, subiram o barranco. Três cavalos com selas mantinham-se quietos num dos oitões da casa. Ninguém se assustou, assuntando mudos para os três homens, cada um segurando um relho. Sentados no tronco de coqueiro estendido na frente da casa. A velha e os meninos não saíram. A mãe sentara-se junto ao homem que a trouxera com os mantimentos.

ovelhas, nem o bimbalho de chocalhos no pescoço de uma rês ou outra, tão comuns nos alagadiços da Zona da Mata, o vento sopraria morno, conchegando a terra e as gramíneas miúdas de arroz ocultas no capinzal crescido.


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