De farsas e fantasmagorias: a decadência da direita brasileira

Inevitável começar esta reflexão com Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio”.

A frase abre magistralmente o primeiro capítulo da segunda edição da obra “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte” *. Ao leitor apressado solicito que atente ao sentido exato da distinção entre “tragédia” e “farsa” que dá a devida profundidade à afirmação marxiana. A primeira refere-se às tragédias gregas, peças teatrais de grande profundidade e, não raro, apelo dramático, composta de textos profundos, de denso conteúdo. A segunda, a “farsa”, é a comédia, a obra destinada a arrancar risos da plateia. Normalmente de um texto leve e com tom satírico, a farsa apresentava nuances invertidas ou exageradas da realidade, com o objetivo de divertir o público.

Pois a campanha eleitoral e o pós-eleição aqui no Brasil este ano testemunharam o reviver de alguns fantasmas do passado. Como não poderia deixar de ser, de maneira farsesca. Talvez o mais curioso desta vez seja a incrível confluência de espíritos de situações anteriores, porém distintas, que agora procuram juntar-se numa pantomina de enredo duvidoso.

A campanha dos candidatos de oposição baseou-se na velha e conhecida técnica de Carlos Lacerda, aquele que, nos anos 1950, liderou uma campanha denuncista que inflamou alguns setores urbanos contra o então presidente, Getúlio Vargas, levando-o a cometer suicídio no Palácio do Catete. O “lacerdismo”, ou “udenismo” é uma prática política muito característica de setores da direita brasileira (organizada, na época, na UDN – União Democrática Nacional) nas décadas e 1940 e 1950, que se aproveitava de seu domínio sobre os principais jornais para criar climas de instabilidade política com base em “denúncias”. Exatamente o que faz a imprensa monopolista desde o início do primeiro governo Lula, em 2002. Ondas de denuncismo procuram desacreditar a imagem do presidente e de seu partido, e as provas dos fatos raramente – ou nunca – aparecem.

Nesta eleição, assim como nas três últimas, “escândalos” requentados e de última hora buscaram tirar votos da candidata à reeleição. E agora, vencido o pleito por uma margem apertada (graças à onda de denúncias e ao clima de desconfiança que a mídia e os candidatos de oposição lograram criar), a vitória da presidenta é questionada. Uma frase de Lacerda, quando Getúlio Vargas foi candidato em 1951, ficou conhecida: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Quadros da oposição reviveram no twitter as palavras de Lacerda, dirigidas à presidenta Dilma, em franca declaração de seu espírito antidemocrático. E agora, após o término do pleito eleitoral, questionam a lisura do processo, claramente com o objetivo de criar um clima instável para o próximo governo de Dilma.

Impossível não fazer um paralelo com outro fato do passado, mas de um passado bem recente: a “revolta dos ricos” na Venezuela, iniciada com a declaração do candidato derrotado nas urnas, por cerca de 1% dos votos, Henrique Capriles. A partir da tensão criada por Capriles, grupos de direita passaram a orquestrar, nas ruas, manifestações violentas que degeneraram em conflitos com os apoiadores do sucessor de Hugo Chávez, Nicolás Maduro. Ainda que a grande imprensa esforce-se para apresentar as manifestações na Venezuela como uma ampla “insatisfação popular”, é notável o corte de classe dos participantes dessas ações de desestabilização política, que vão da sabotagem à tática vil de esconder víveres e provocar desabastecimentos.

Como se não bastassem as assombrações udenistas e “caprilistas”, vemos ressurgir na cena política a mais fina flor do fascio, algo como uma caricatura anacrônica do velho Plínio Salgado, o integralista que, na década de 1930, fez centenas de adeptos entre a juventude das classes médias urbanas. Trajados de verde e marchando como membros de um exército, os integralistas (ou “galinhas verdes”, como os apelidaram, jocosamente, os comunistas) faziam demonstrações de força e organização nas ruas das capitais brasileiras. Seu lema, “Anauê”, era entoado com mais ou menos a mesma entonação do “Heil Hitler” nazista. Os integralistas perseguiam militantes do PCB, com quem travavam verdadeiras batalhas nas ruas. Suas ideias, uma espécie de nacionalismo ou nativismo militarista, aproximavam-se bastante do fascismo italiano e do nazismo alemão, ainda que guardadas as devidas diferenças de contexto.

E quem é a flor? Parece que é o senhor Jair Bolsonaro, que deseja encarnar, em pleno século 21, o espírito integralista de Salgado, ao anunciar sua candidatura à Presidência da República e a organização de um partido de direita (mas direita mesmo!) unificado. Porta-voz do conservadorismo, da homofobia, do militarismo, do antifeminismo, do “bandido bom é bandido morto”, da redução da maioridade penal e da truculência em matéria de política, Bolsonaro talvez arrebanhe um bom número de votos em 2018, além de que certamente logrará organizar seu partido de direita (mas direita mesmo!). Porque a direita (mesmo, de verdade) votou em Aécio. Mas Aécio e o PSDB não são bem o que eles gostariam.

Mas se Plínio Salgado ao menos teve o mérito de ser um pensador (sim, de direita, mas um intelectual com certa densidade), editor de revistas culturais e conhecedor da história e da cultura brasileira, Bolsonaro não passa de um verborrágico vazio e preconceituoso. A farsa, aquela de que nos falava Marx.

A direita brasileira, aliás, em seus diversos matizes, carece de quadros. No passado atacavam-nos com grandes obras e pensadores de peso. Hoje seus seguidores repetem formulações de gente do nível de Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino, Arnaldo Jabour et caterva. Com ideólogos desse nível não se pode mesmo esperar que façam melhor do que repetir, debilmente, os estratagemas antidemocráticos e autoritários do passado.

Com a vilania e a desfaçatez que lhes são características, espalham calúnias e procuram envenenar a opinião pública com um clima de “guerra fria” absolutamente fora de lugar. Transformam o Foro de São Paulo, uma articulação das esquerdas (ou seja, um fórum, e não uma organização) latino-americanas e caribenhas que em suas reuniões recebe também representantes de todo o mundo para discussão dos temas sociais, na Terceira Internacional Comunista. O PCB foi perseguido depois da insurreição de 1935 e uma década depois teve seu registro cassado, em 1946, sob o argumento de que era um “partido internacional” (o que era e é vedado pela Constituição Federal) por ser ligado à Terceira Internacional. E, como se não bastasse, transformam o social-democrata Partido dos Trabalhadores em um partido prestes a instaurar uma “ditadura comunista”. Que fundamento têm essas afirmações histéricas repetidas infinitamente na televisão e nas colunas dos já citados “intelectuais” (aspas, muitas aspas) da grande mídia? Absolutamente nenhum, a não ser as alucinações anticomunistas desses articulistas ou a má fé.

Fico com a hipótese da má fé. Querem criar um clima de instabilidade política que inviabilize o segundo mandato de Dilma. Para eles um presidente do PMDB é muito mais palatável, além de contar com a legitimidade de ter sido eleito vice-presidente. Tudo isso porque para essa elite que sempre esteve no poder, os reais “Donos do Poder” – na caracterização genial de Raymundo Faoro –, é inadmissível que se passem mais quatro anos sem que possam tirar vantagens da máquina pública. Não importa se esses governos distribuíram renda (reduzindo, assim, a pressão sobre eles mesmos nos centros urbanos), investiram em infraestrutura (para que a sua produção possa escoar mais eficientemente) e multiplicaram os ganhos do capital no país.

Para os donos do poder não basta beneficiar-se dos bons tempos da economia. É preciso ter em mãos as rédeas, o comando central da nação. Pois é dela que tiraram seus quadros políticos (pois seus partidos não são capazes de formá-los) e, em muitos casos, seu sustento e o de muitas gerações de suas famílias. Baseiam-se na infâmia, da guerra psicológica e numa pretensa moralidade porque não têm programa. Tomando de empréstimo as palavras de Joaquim Nabuco, o que fazem é uma política silogística. “É uma pura arte de construção no vácuo. A base são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais”.

É preciso barrar o golpismo, a desestabilização e as ameaças à nossa democracia. As forças de esquerda, populares e patrióticas precisam organizar-se para os dias que virão. Apoiar a presidenta e sustentar ações corajosas, que enfrentem o monopólio dos meios de comunicação, renovem o sistema eleitoral e garantam a consolidação da jovem democracia brasileira. Ou teremos mais um fantasma do passado a nos assombrar. Qual? Deixo para a imaginação dos leitores.

*Nessa obra Marx trata do processo que evoluiu da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França. O livro foi escrito durante o desenrolar dos fatos, entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852. Conforme diria Engels, posteriormente, Marx apresentou de maneira tão realista aqueles acontecimentos que nenhum outro estudo, mesmo os produzidos posteriormente, pôde superá-lo. E o herói do golpe de Estado, Luis Bonaparte, “o sobrinho do tio” (Napoleão Bonaparte), não poderia mesmo ser tratado de outra maneira, “a não ser com o desprezo que plenamente tinha merecido”.

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