Democracia, participação e cultura (parte 2)

A palavra “democracia”, para além de seu verbete em dicionários, em sua aplicação, paradigmas, diferenças e divergências oriundas do uso indiscriminado do termo, acaba por ser um dos mais controversos conceitos, apesar de sua simplicidade, dentre todos os usados no campo das ciências sociais, não sendo consenso não apenas em seu significado, mas também em sua aplicação.

A confusão decorre da livre interpretação do verbete que em diferentes bocas pode subtrair o sentido de forma de governo popular ou de nação governada pela maioria. Confundida com outros sentidos, podendo ser usada para descrever equivocadamente a república, Estado, liberalismo, liberdade de expressão, direito supostamente divino, escolha de lideres através de eleições, sufrágio universal e até mesmo aplicadas nas relações de poder interpessoais.

O termo surgido na Grécia antiga, há aproximadamente 2.500 anos, quer dizer apenas “Governo do Povo”, mas seus significados desde então seguem em constantes mutação e aplicações distintas conforme interesses e objetivos de quem os utilizam. Governos, organizações, indivíduos afirmam-se democráticos, mesmo de fato não os sendo, acusando os demais de antidemocráticos.
Mas a democracia como conceito não mudou, ainda significa o governo do povo, o que vem se modificando é apenas a sua valoração segundo analistas que afirmam o quão positivo poderá ser um governo comandado por muitos, em relação a poucos, ou apenas por um individuo.

A democracia dos gregos da forma que foi exercida não está em questão, não podendo ser simplesmente transferida para a atualidade. A democracia direta, feita na praça pública na "Ágora", existiu em um tempo onde as Cidades-estados Gregas eram pequenos centros, onde problemáticas dos governos modernos não existiam, como por exemplo a dimensão dos territórios nacionais, a economia internacional e o tamanho da máquina pública.

No sentido da participação a democracia dos antigos também era diferente. A homogeneidade dos cidadãos participantes da democracia descartava as relações de classe (MARX) e gênero, desconsiderando a igualdade, posto que detinham o direito de voto somente os homens, intelectuais e abastados. Portanto, nem escravos, jovens sem propriedade, mulheres e estrangeiros tinham direitos. Revelando que a "Ágora" não foi exatamente democrática no sentido de pluralidade de participação.

A valoração histórica do termo remonta a Grécia antiga. Platão fez a primeira classificação dos regimes bons e maus em a “República”, da qual não se difere muito da teoria apresentada em a “Política”, onde Aristóteles aprimorando o conceito distingue regimes políticos e formas ou modos de governo.

A estrutura apresentada por Aristóteles demonstra a primeira divisão fundamental das formas de governo, formada por duas linhas de classificação que ilustram a função dos “Regimes” e “Finalidades”, onde o primeiro estabelece o critério de quem governa, o segundo refere-se a finalidade, para quem governam, no interesse próprio ou no interesse geral.

A partir desta classificação expôs três tipos de regimes políticos: a monarquia (poder de um só), a oligarquia (poder de alguns poucos) e a politia (poder de todos). Quanto às formas de governo, compreendia que os regimes deveriam governar em vista do que é justo, de interesse geral e o bem comum, sendo suas finalidades positivas ou negativas.

Os dois eixos de análise formam duas linhas superiores e inferiores, com um conjunto de seis regimes de governo, sendo os três primeiros positivos. O primeiro: aquele em que um só age para todos (realeza); o segundo: aquele em que alguns agem para todos (aristocracia); o terceiro: aquele em que todos agem para todos (regime constitucional). Os três seguintes seriam deturpações ou degenerações das três primeiras formas de governo, sendo: Tirania, Oligarquia e Democracia.

Com o tempo, novas noções foram desenvolvidas sobre as formas e funções dos governos, mas a democracia assim surgiu, sendo considerada pelos seus primeiros teóricos como uma degeneração dos bons regimes de governo. Ou, apenas, a melhor dentre os piores regimes que possam existir.

Não deve ser apenas coincidência que os verbetes “demagogia” e “democracia” estão dispostos um após o outro no dicionário de política de Norberto Bobbio (2007, p. 318-329). A leitura atenta do primeiro verbete pode lhe parecer a realidade, definindo a única democracia que o mundo atual conhece, portanto demagógica, e o segundo verbete sendo apenas um debate intelectual sobre utopias distantes do mundo dos mortais.

Apesar de existirem muitas definições em dicionários, ninguém comprovou que existiu, talvez nunca exista, uma democracia como utopicamente vem sendo descrita por seus defensores. Rousseau teria concluído que “se existisse um povo de deuses, seria governado democraticamente. Mas um governo assim perfeito não é feito para os homens”.

As diferenças entre conceitos, aplicações e paradigmas das relações entre democracia, participação e cultura remetem a necessidade de novos artigos tratando dos mais diversos temas, dos mais básicos (b+a=ba) até aqueles que exigem maior aprofundamento. Abordagens necessárias ao reconhecer que no momento são cultivados pela maioria valores frágeis sobre os significados das ações coletivas, públicas, feitas de todos para todos e pelo bem comum. Razões para escrever.

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