Não basta abrir os olhos

Aprendi, com a boa literatura da melhor ficção, que a verdade e verossimilhança não são necessariamente compatíveis. Assim venho me guiando por esses tempos de propaladas crises econômicas e políticas. Vejamos, por exemplo, essas manifestações de caminhoneiros, que em nosso Estado ganharam força, elas são verossímeis mas lhes falta a verdade. Tudo delas nos parecem boatos, ninguém fala coisa com coisa, ninguém se arvora de algo real, verdadeiro.

Alguns amigos não mais chamam de "manifestações", mas sim locautes, indo a contrapelo dos jornais e televisões. Afinal, tratam-se de paralisações querendo inviabilizar a economia, provocar reações políticas que talvez pouco digam respeito às necessidades reais dos caminhoneiros. A prova está na suposta ausência de lideranças, ninguém se diz líder nacional do tal movimento. É tudo sombra nesse assunto.

Talvez hajam outras provas, não sei, não sou jornalista tampouco exerço cargo em alguma instituição que diga respeito ao assunto. Talvez esteja a exagerar; ora, Paulo, as imagens e corre-corre da imprensa falada e irradiada estão claras, só não vê quem não quer. É, talvez…

E por aí é que se constrói a inverossimilhança de um fato cotidiano. Por trás, apertando bem o olhar, nos parece que existem forças poderosas a desenhar outra história, a verdadeira história que lhe dá movimento. As personagens centrais dessa história, quem sabe sejam outras que não o caminhoneiro fretista, cidadão mais do que essencial para nosso país. Esses líderes, que não aparecem, são gente importante a esconder-se na covardia do fazer de conta que o locaute é um ato espontâneo e legítimo, de trabalhadores e autônomos.

Se tivéssemos menos dependência das estradas de rodagem para a circulação de mecadorias, quem sabe não precisássemos passar pelo mesmo que o nosso vizinho, a Argentina, passou em tempos recentes? Mas se as últimas ditaduras militares, bem como os fatos anteriores de Getúlio e Perón, e posteriores como Collor e Menen, irmanam nossas nações em movimentos políticos similares, por que não a verossimilhança dessas história não encontraria, nessas similaridades históricas, sua verdade?

Tudo bem, são especulações. Estou a especular, mas o que é a boa literatura? Ora, literatura é a especulação, a maior de todas usualmente atrás da verdade, um jogar com os elementos ficcionais do que nos chegam em primeira instância, e que o tempo, tal como as boas leitura, consegue, por vezes longamente, decompôr e desnudar, separando o real do aparente. O que nos leva ao argentino, e clássico, Jorge Luis Borges, "Há verdades tão claras que para vê-las não basta abrir os olhos". Pois as verdades do cego Borges são tão excessivamente claras que nos cegam. E, aturdidos, vagamente confusos, não fazemos outro a não ser desviar o olhar. Devemos?

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