Em vez de um bolero, um frevo

Somente aos sábados, o Oitão da Conceição solta ruídos que não são seus. Ouvem-se os esguichos de carros de mão, em geral carregando galinhas e perus que não deixam por menos o alvoroço de um extremo a outro do oitão. Os porcos, puxados por cordas amarradas ao pescoço, contribuem com os grunhidos de suas gargantas gordas.

Junto a animais e veículos com tração de duas rodas no máximo, o vozerio das pessoas deixa-se espremer entre as duas enormes paredes das duas únicas casas com a cumeeira alta. Sábado é dia de feira. Goiana não estremece, mas de suas entranhas saem homens e mulheres em trânsito para a morte, abrem as bocas para esganiçar entre os cacos dos dentes que a morte não é uma lorota, por isso caminham para a feira tão ou mais barulhentos que os sinos das igrejas.

Aos domingos a cidade encolhe feito um caramujo. Ao fim da tarde, os sinos do Carmo tocam para a missa. As portas de cada casa se abrem sem medo de fazer ruído nos trincos e tranquetas enferrujados. Os sinos, alternando badalos agudos e espessos, são o salvo-conduto para a redenção de pecados indistintos. As velhas, encostando-se nas paredes das casas, rumam para a igreja; têm medo de que a fuligem dos canos de escape nos escassos veículos, empane a brancura do véu que imprime santidade em seus cabelos brancos.

Às segundas, como de resto até às sextas-feiras, o bulício rotineiro tem o efeito de entorpecer o juízo de cada morador. Nada de inusitado lhes acontece, e contentam-se com informes medíocres, inda que singulares porque ditos à boca miúda.

É durante a semana que o Oitão da Conceição mostra seus moradores como raízes que dão frutos só ali. Comecemos pela família que habita a casa ao fundo do oitão. Tem como chefe uma matrona sem marido certo. O corpo é anguloso como as linhas das beiras da única janela; da janela e da porta de trinco enferrujado. Não é alta, mas a redondez das ancas junta-se aos cabelos descidos nas costas, combinando com a voz estridente de quem impõe autoridade não pela justeza dos argumentos, mas pela sonoridade da garganta. Tudo isso confere à mulher atributos que fazem-na abominar a romaria dos bichos para os abates da feira. Por trás de si, três filhos: uma moça de quatorze, um rapaz de treze e o miúdo de apenas dez anos. Todos afeitos à obediência cega. Têm o que comer e o que vestir, inda que a mãe, na pacatez dos dias úteis, faça no encurvamento do corpo as medidas para o comércio do próprio sexo. Ela recebe cada um dos amantes, duas a três vezes por semana. Os filhos evacuam os recintos escuros do reduzido lar. A moça simula namoros na conversa sem prumo com a amiga numa rua próxima, os meninos comprazem-se correndo atrás de uma bola que os aliena da noção de serem filhos de uma rameira.

Vizinho a Amara – o nome combina com as calcinhas de morim sem elástico, com botões num dos lados dos quadris, inda que deixando marcas na pele – mora o clarinetista conhecido como Léo. Tem por ofício a arte de cortar cabelos. Sabe dos segredos da cidade junto com outros dois barbeiros, com quem divide o aluguel do salão; não em sua casa, mas olhando para a calçada ampla da rua da feira. Divide os segredos ouvidos na barbearia apenas com sua mulher. Léo é manco de uma das pernas, peco. O defeito atrofiou-lhe um dos lados do corpo mole; atrofiou-lhe também a língua para não se trocar com os outros e, assim, evitar apelidos incômodos. Ele sabe e finge que não ouve os gemidos dos amantes de Amara. Não a julga marafona. Amara, além de ser vizinha numa das duas casas com telhados sem forro, não comercia o corpo na Barra, onde as mulheres mostram-se como mangas maduras à luz do sol. Convém dizer que a discrição de Léo fora, é imposta pela gravidade amotinada de Amara.

No começo do oitão, há as duas casas com a cumeeira alta, uma paralela a outra. Na primeira, a porta de acesso à sala é ao lado; as janelas ficam na frente. Tem como principal morador o comerciante a quem chamam Zé do Leite; não é chegado à brancura, mas à transparência da cachaça sem cor. Quando bebe, canta e dança e nunca tira o paletó de linho, inda que sob o sol do verão ribeirinho de Goiana. Na outra casa, vive a família de Chico Lira, o alfaiate de cor negra e alma de comunista. É bígamo. Para compensar o remorso do juízo, provê a despensa das duas cozinhas com galinhas, perus e a gordura dos suínos que grunhem aos sábados no Oitão da Conceição.

Numa sexta-feira à noite, Amara acolheu o derradeiro amante da semana. Léo voltara da barbearia. Chico Lira jantara e fumava o Continental sentado à cadeira em frente ao quintal. Logo teria que sair para a visita a outra cônjuge. Zé do Leite, bêbado, não dera fim à sede e saciava-se na barraca de madeira, aos fundos do oitão, atrás da casa de Chico Lira. Uma birosca onde outros bêbados espremem cachaça das horas. Por ser sexta-feira, cada morador se crer festeiro e faz a festa de seu jeito.

O oitão é um beco tão estreito que se pode ouvir o papagaio de Chico Lira grasnindo no terraço dos fundos da casa. O amante de Amara, por certo montando-a com esforço cavalar e suor na testa, não conseguia evitar o ímpeto estrepitoso dos gases soltos dos intestinos. Ato contínuo, expandia-se:

– Ai… é bom. Ai… é bom.

Léo ouviu e correu para o clarinete, trazendo-o para a sala. Tocou um bolero de Bievenido Granja. Zé do Leite livrou-se do círculo de bêbados, foi à frente da casa de Léo e arremeteu:

– Está fazendo serenata para Amara? Toque um frevo de rua.

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