“O Melhor Lance”, doenças do imaginário

Em fábula sobre doenças modernas e a montagem de autômatos, cineasta italiano Giuseppe Tornatore trata da decadência da burguesia europeia

Depois de Paolo Sorrentino tratar da decadência italiana em “A Grande Beleza” (2013), seu compatriota Giuseppe Tornatore (“Cinema Paradiso”, 1988) traça um painel mais ambicioso. Com detido olhar, ele mostra através deste “O Melhor Lance”, não ser caso isolado. Ela se alastra Europa afora. Há mais burgueses adquirindo obras de arte em leilões e especulando nas bolsas de valores que investindo nos setores produtivos de seus países.

O filme passeia por várias épocas por meio de obras de arte renascentistas, para estruturar a fábula moderna da Bela Adormecida, unindo psicanálise e materialismo. O centro da ação é a relação do antiquário e leiloeiro Virgil Oldman (Geofrey Rush) e a jovem Claire Ibbetson (Sylvia Hoecks). E discute, além disso, a capacidade de o homem reconstruir máquinas e errar ao tentar reestruturar o ser humano.

Entre tantos fios, Tornatore transita sutilmente pela história de seu país. Virgil fareja obras-primas para se enriquecer, Claire, herdeira da velha burguesia italiana, hesita em manter ou não seu rico acervo de obras de arte. Ele usa luvas para não ser contaminado, ela trancou-se num quarto de sua secular vila no centro de Roma, por medo das pessoas.

Bela Adormecida deveria tratar de sua agorafobia

Virgil construiu sua reputação sobre arte renascentista, colecionada pela agonizante nobreza, a velha burguesia europeia e os especuladores travestidos de investidores. Claire vive o ocaso de sua classe e não tem ligações, se não afetiva, com esta arte. Daí a metáfora de sua fuga ao contato com outras pessoas – a Bela Adormecida, presa em seu castelo em ruínas, deveria tratar a agorafobia numa clínica psiquiátrica.

Como as peças encontradas em seu acervo por Virgil, para serem montadas até se transformar no autômato (robô), construído no século 18, ela deverá se submeter à reconstrução de seu “eu” até estar apta a enfrentar as agruras da existência. O autômato é a antevisão da automação no século 20, com a introdução dos robôs no setor produtivo. Ou seja, o novo que brota do velho, via circuitos científicos/tecnológicos para gerar moderno processo evolutivo.

As sequências se alternam entre ela e Virgil e deste com o mecânico/eletricista Robert (Jim Sturgess). Ela e o autômato vão sendo reconstruídos, com a diferença de que ela, dadas à sua constituição humana, varia de comportamento e reage, confirmando as diferenças de restruturações. É tão árduo, para não dizer impossível, fazê-la agir de modo normal, quanto o desfecho revela.

Mentor erra em sua tentativa

Esta construção narrativa exige que Tornatore recorra aos arquétipos brotados de Joseph Campbell, em seu livro “O Herói de Mil Faces”, para torná-los críveis para o espectador. Usa o jovem Robert como mentor para elucidar os mistérios e fobias de Claire e as fraquezas e deficiências de Virgil para lidar com ela. Vai orientando-o, como se tratasse de magia, e as variações comportamentais dela pouco importassem. Em certo instante funciona, igual ao autômato, depois regride ao estágio anterior da doença.

Numa desconstrução não só do mentor, como da própria psicanálise, a realidade cotidiana mesclada à paixão faz com que ela rompa a carapaça ultrapassando a linha demarcatória de sua agorafobia. O grito de socorro de Virgil em plena chuva, depois de ser assaltado, a metamorfoseia em heroína. A Bela Adormecida salva o príncipe agonizante. Porém, a vida que se segue não é definitiva, é talvez um refluxo mal suportado por dores, complexos e fobias tão profundas que requerem anos e anos de terapia.

Como se vê, Tornatore não está interessado apenas no que as imagens mostram na tela. As sequências de “O Último Lance” se alternavam entre o tema central, a relação Virgil/Claire, os leilões de arte e as conversas dele com Billy (Donald Sutherland), seu parceiro em arrumados leilões. Sua câmera ainda se detém nos rostos de colecionadores e especuladores, em Robert na oficina e na vila de paredes carcomidas da doente Claire.

Movimentos de câmera tendem ao romanesco

Este encadeamento é reforçado pela fotografia de Fábio Zamarion que, matizada pelos tons sombrios, azuis e vermelhos, tornam os ambientes sombrios, decadentes. A profusão de bustos, afrescos, painéis, pinturas e móveis escuros os tornam ainda mais opressivos. Os próprios movimentos de câmera (travellings) tendem ao romanesco ao descrever salões, pátios, escadas, porões, ruas tomadas pelas sombras e se deter no rosto enrugado de Virgil e nas faces das colecionadoras em seus leilões.

Não bastassem estas ênfases, Tornatore, dá um toque à Fellini em sequências de hesitação e desespero de Virgil. Sempre o faz retornar ao bar em frente à vila de Claire, tendo a Anã Autista sentada diante da janela. Ela fica num contínuo repetir de números, que só ganham sentido no desfecho do filme. O que leva Virgil ao emblemático bar, decorado por roldanas em movimento e cheio de jovens alheio a elas. Não é mais o novo, nem o velho, é tão só a crise do homem moderno.

"O Melhor Lance”. (La Migliore Offerta). Drama. Itália. 131 minutos. 2013. Edição: Massimo Quaglia. Música: Ennio Morricone. Fotografia: Fabio Zamarion. Roteiro/direção: Giuseppe Tornatore. Elenco: Geofrey Rush, Jim Sturgess, Sylvia Hoecks, Donald Sutherland.



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