A estrutura repressora (parte 2)

Como apresentado no texto anterior, com o avanço do Estado “racional” ocorreu enorme contraste com a realidade social, pois, ao passo que se intensificam as especializações nos procedimentos, aumenta a desumanização.

A norma é violenta, desde sua elaboração, portanto ainda na palavra escrita, e anteriormente, desde o comando que determina como será apresentada a informação em uma guia, em campo de formulários, fichas de identificação, ou em boletos de pagamentos de taxas. São formas adotadas com objetivo de gerar constrangimentos, limitações que são algumas das formas de controle e violência adotadas pelo Estado, como aparelho repressor.

Esses instrumentos do campo burocrático funcionariam em conjunto com a família, a igreja, o trabalho, a sociedade, em cada um de seus pequenos poderes, que exercidos são capazes de gerar a repressão, com finalidade educativa, moldando o sujeito dentro da lógica existente, – forças que não seriam apenas advindas dos aparelhos do Estado (Althusser), ou do capital (Marx), mas de certa forma presente em todas as relações de poder (Foucault).

O Estado recebe o papel de detentor de poder e ética própria, a função ou permanência da governabilidade, teorias justificadas nas obras de Maquiavel e Hobbes. Para Weber, o Estado é a instância que “dispõem do monopólio da coerção física”. No texto Espírito do Estado, gênese e estrutura do campo burocrático, Pierre Bourdieu vai um pouco além, conclui que o Estado dispõem de um metacapital que o qualifica para o exercício de outros poderes ou capitais simbólicos que, somados, são maiores do que o próprio Estado. Portanto, além do exercício da força e monopólio da violência, o Estado dispõem de mecanismos de controle do capital social, capital cultural, capital econômico, capital simbólico, entre outros.

Os mecanismos não seriam apenas estruturas burocráticas ou aparelhos de Estado, mas estruturas simbólicas. Bourdieu trata disso no texto supracitado, no qual relata a importância da história da acumulação dos capitais simbólicos – nele é apresentada a análise da origem desses capitais no interior do Estado, sendo explicados através das origens do capital da força física, da unificação do espaço onde ocorre o comércio através das fronteiras e da moeda, gerando o capital econômico, da instituição do imposto que juntos geram um capital simbólico, legitimador, e de uma burocracia especializada. O capital simbólico dos impostos apoia a geração do nacionalismo e da unificação dos Estados. Logo os capitais anteriores fundam a concentração do capital da informação e do mercado cultural. Com a concentração da informação, o Estado analisa e redistribui o “todo”, especializando o Estado:

“pelo recenseamento e pela estatística ou pela contabilidade nacional, pela objetivação, por meio da cartografia, representação unitária, do alto, do espaço, ou simplesmente por meio da escrita, instrumento de acumulação de conhecimento e da codificação como unificação cognitiva que implica a centralização e a monopolização em proveito dos amanuenses ou dos letrados.” (BORDIEU, Pierre. In: Razões práticas sobre a teoria da ação. 1996, p. 105).

A Cultura, na soma de todas as informações, tem papel unificador, conforme Bourdieu diz, “ao unificar todos os códigos – jurídico, lingüístico, métrico – e ao realizar a homogeneização das formas de comunicação, especialmente a burocracia (por exemplo, os formulário, os impressos etc.)”. Com base nesses modelos citados, fundam-se os Estados, onde são estruturados os pensamentos nacionais, na educação, sendo esse o elemento fundamental da construção do Estado-nação. Ainda segundo Bourdieu: “Nas nossas sociedades, o Estado contribui de maneira determinante na produção e reprodução dos instrumentos de construção da realidade social.

Enquanto estrutura organizacional e instância reguladora das práticas, ele exerce permanentemente uma ação formadora de disposições duradouras, através de todos os constrangimentos e disciplinas corporais e mentais que impõem, de maneira uniforme, ao conjunto dos agentes”. Estas dominações ocorrem em um plano negociado entre os poucos que governam e os muitos que são governados, e assim continuará enquanto existir consonância entre estruturas cognitivas e as estruturas objetivas.

A forma da dominação é cultural, através da regra que se apresenta como técnica, evitando se expressar em sua essência, pois é antes de tudo “violenta”, crítica que pode ser melhor entendida nas leituras de Bourdieu e Foucault, que apresentam a expressão forma/conteúdo da burocracia, como essencialmente kafkiana, pois se refere à violência simbólica existente nos atos da burocracia. Essa visão se difere da violência de Estado, retratada por Weber, que é de origem hobbesiana e se define pelo uso das forças punitivas, em especial, o uso da força física, mas não apenas, pois, em todos os casos citados, se reconhece o papel do Estado como repressor – com todas as suas ferramentas, inclusive as punições administrativas. Portanto, as estruturas organizativas, são em sua essência formas violentas de controle, que sendo simbólicas, somente são notadas pela força que exercem na definição das estruturas, infraestruturas, e de como delimitam a vida no corpo social.

Uma realidade que a maioria tende a ignorar, ainda que sejam essas opressões percebidas, com o avanço da burocratização da vida. Ao passo que cresce a indiferença de parte da sociedade em relação ao bem estar do outro, cresce também a íntima relação entre o avanço da violência e da opressão do Estado. Portanto, um fato isolado e ignorado por um dado leitor, que lhe parecia distante, e que pela maioria possa ser tratado como ficção, ou como uma injustiça que ira atingir apenas alguns poucos, na verdade, atinge a maioria.

Algo percebido e escrito há quase um século, uma realidade apresentada como “fantástica” por Franz Kafka em O Processo (1925), publicado um ano após sua morte. No livro, o Estado não está em guerra, não existe uma ação concreta contra o personagem, na realidade, a narrativa revela a apatia, ausência de surpresas e a banalização contínua dos procedimentos que, ao final, levam o personagem Josef K. à morte, sem que lhe tenham dado explicações que esclarecessem e justificassem o processo ao qual fora submetido – mesmo que tenha se autoproclamado inocente, e não tenha sido formalmente acusado de nada. Não são os conflitos de classes, nem as guerras, ou a dominação de líderes totalitários, mas os processos banais, tediosos, que fazem parte da nossa experiência, que se alienam de nós. A burocracia é a mais pura expressão da morte lenta.

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