O coronel foi votar

Às dez em ponto o coronel chegou para votar. Escolhera a hora conforme seu juízo utilitário. Se viesse antes, a fila de votantes ainda estaria se formando; correria o risco de se juntar a um grupo ainda minguado de eleitores. Se viesse depois, correria o mesmo risco, porque estaria próximo da hora do almoço. À tarde… 

Ora, reservara a tarde para calcular como ostentara o brio da escolha de seu voto. Ainda abrira a porta do guarda-roupa para apreciar a farda verde-oliva, tão ereta no cabide quanto seus ombros nunca arqueados.

Ao lado, para recompor a memória solene do coronel, o espadim luzente. Sempre que ia ao quartel, antes de se sentar à frente do birô, pendurava o espadim na parede ao lado, junto a flâmulas e bandeirolas verdes e azuis. Despachando documentos, assinando-os, tinha um olho nos papéis e outro nos raios luzentes do espadim.

Mas não tirara o pijama desde que se pusera em pé, lera o jornal com ele e pusera o robe para sentar-se à mesa do café.

– Vai vestir a farda para votar? – quis saber sua mulher.

– Vou.

– Vou mandar a empregada tirá-lo do guarda-roupa e passar no ferro elétrico.

– Sim, faça isso.

A farda não tinha sequer um traço de amassadura. A empregada logo terminou e pôs o uniforme na poltrona num canto do quarto, em frente à ponta inferior da cama do casal.

O coronel vestiu-a, pôs o quepe na cabeça e o espadim atado no lado direito da cintura. Desceu os degraus do terraço e antes de abrir o portão da frente da casa, tirou o quepe da cabeça, pondo-o entre o antebraço direito e o corpo. Àquela hora, o calor se concentrara, a quentura incidindo no jardim verdoso da casa e na farda da mesma cor do coronel. Ele sentiu o suor minar de sua testa. Quando dobrou a esquina da vila militar, sentiu que na camisa, abaixo das axilas, deixava ver duas largas poças de suor. Repôs o quepe na cabeça, não para ostentar a marcialidade, mas para se proteger do sol. O incômodo acentuou o perfil belicoso de seu rosto. Podia ir de carro. Mas decidira fazer o curto percurso até o educandário a pé. Com garbo e ao mesmo tempo dando conta da ideologia de seu voto, inda que não mencionasse nomes ou siglas.

Andou os quatro quarteirões ao lado da vila militar. Pisou em papéis, santinhos de candidatos diversos. Os veículos, apesar da pouca velocidade, não evitavam o sopro de poeira nos cantos de todo o meio-fio. O coronel empoeirou-se. O pó juntou-se às poças de suor, agora espalhadas de cima a baixo da camisa e ainda nas costas.

Enquanto estivera na ativa, o coronel nunca vestira farda para ir à cabine de votação. Ninguém o ignorava portador de divisas no peito da impecável camisa cremosa da farda. Agora, com cinquenta anos e apenas um de aposentadoria, não se acomodara ao pijama, a não ser em casa, venturoso patrono do lar, no gozo da intimidade decorrente da justa reforma.

Às dez em ponto o coronel estacou na fila. Incomodou-se por ser o último, não fazer uso da patente e ser o primeiro a assinar a lista de votantes. Na fila longa, distinguiu à sua frente, não sem estorvo, eleitores mais moços, quase imberbes, todos de bermuda. Não demorou e atrás dele juntaram-se outros da mesma idade. Ninguém se deu conta do perfil marcial do militar, sequer desconfiaram do propósito de declarar o voto sem confessar o nome do candidato escolhido.

Deixou a identidade de militar com a mesária, antes de entrar na cabine. Ao voltar para reaver o documento, viu que estava misturado com os de outros; não de militares, mas de civis comuns. Quando cruzou o limiar da sala, a cintura, do lado onde pendurara o espadim, chocou-se com a quina da porta. O espadim desprendeu-se, caiu. Todos olharam para o coronel.

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