“O Homem das Multidões”, ser consumível

Em filme sobre operador de metrô que foge à relação social, cineastas Cao Guimarães e Marcelo Gomes discutem os limites da autoexclusão

O espectador assiste a este “O Homem nas Multidões” à espera de uma reação do operador de metrô, Juvenal (Paulo André), e da entrega da controladora de metrô, Margô (Silvia Lourenço). Eles vivem numa espécie de espaço virtual, que os colocam em capsulas compartimentadas, onde se deslocam sem, aparentemente, se relacionar com outras pessoas. Trata-se de espaço criado, que lhes permite escapar à agitação cotidiana, do consumismo e dos selfies que supostamente lhes integrariam aos outros.

Daí o estranhamento provocado pelas opções estéticas, estruturação dos entrechos e deslocamento dos personagens feitos pela dupla de roteiristas/diretores Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Em ritmo lento, de enquadramentos fixos, eles mesclam a atividade de Juvenal e Margô com seus cotidianos. Ele, introspectivo, de poucas palavras, ela contida, mas cheia de vigor e iniciativa, fogem ao padrões dos habitantes das megalópoles modernas, configuradas numa Belo Horizonte do século 21.

Esta caracterização pode dar ao espectador a falsa impressão de estar diante de dois solitários se deslocando na capsula belorizontina. Logo descobre que, além de serem condicionados a tal, terminam sendo suas próprias escolhas. Juvenal se desloca por ela em completa liberdade, escondendo-se na multidão, ou observando a paisagem marmórea, fria, dura, sem diferenciá-la, ou estacando-se na plataforma da estação do metrô, assistindo o fluxo contínuo de milhares de passageiros.

Juvenal é protótipo do “Zé Ninguém”

Sua vida pessoal, por doutro lado, é recorrente à dos solitários entregues a si mesmos. Vive num minúsculo apartamento, com poucos móveis e eletrodomésticos, alimenta-se frugalmente e se exercita na sacada, sob os acordes de buzinas e barulho do metrô. Sua vida sexual se restringe à descarga orgástica com as profsexes (profissionais do sexo). É o protótipo brechtiano do “Zé Ninguém”, ou do indivíduo massacrado pela sociedade de consumo, ou mesmo do “cidadão invisível”.

No entanto, outra leitura deste operador de metrô é vê-lo como o trabalhador condicionado por sua atividade: o de operador de metrô. Obrigado a olhar sempre para os trilhos, as estações e os vultos dos passageiros nas plataformas, ele jamais tem contato com eles. Não ouve vozes, frases, vê faces ou semblantes. Ignora o humor, reclames e sofrimento deles. Assim, não pode avaliar, apenas ir em frente, cumprimento as normas da empresa, sem qualquer questionamento.

Este chapliniano condicionamento o leva a ter uma vida de indivíduo, não de cidadão, sem exigências. Vive com pouco, sem atenção do outro, portanto sem contraponto. Daí estranhar a deferência de Margô ao convidá-lo para ser padrinho do casamento dela. “Imagine, diz ele, eu ser padrinho de casamento, vestir terno”. Ele perdeu, além disto, o sentido do diálogo, da troca, como na sequência em que o pai de Margô (Jean-Claude Bernardet) conversa com ele e termina num sintomático monólogo.

Margô precisa de quem a ampare

Margô, pelo contrário, criou um espaço no qual se desloca sem constrangimento, embora às vezes se apoie nele, por tê-lo como contraponto. Carece de quem a escute, ou fique ao seu lado, trocando calor humano, sem que haja qualquer palavra ou som de parte a parte. Não se pode falar em solidão, mas de necessidade de amparo e companheirismo. Nenhum deles indaga o que o outro sente ou quais são suas perspectivas de vida. A relação deles se limita à troca de energia e do mútuo silêncio.

É com ela que Guimarães e Gomes fogem aos planos fixos, os planos sequências; se valem de flashes para, com economia de meios, mostrar os preparativos de seu casamento. Ela surge em variados estilos de penteados, loira, morena, gruge, mutando-se em cada um deles. Porém, tem suas carências, instantes de alheamento, de distanciamento familiar, por viver com o pai. E Juvenal torna-se seu vértice: dele nada se sabe, além do vivenciado na tela. Inexiste no passado, nem se projeta no futuro.

De qualquer forma, ambos são criaturas da megalópole, filmados numa BH como espaço futurístico, onde podem se isolar na multidão. Podia ser Nova York ou Tóquio. Difícil diferenciar nesta concepção as preocupações dos diretores/roteiristas. De Cao pode-se identificar o indivíduo deslocado de seu meio, mas preso às teias do sistema, como em “Andarilho” (2006); de Gomes o lutar contra o que o prende, de “Era Uma Vez Eu, Verônica” (2012), e com ele conviver, como se fosse apenas isto.

Não são, portanto, personagens reativos, que se insurgem contra sua situação, a ela se acomodam. Nem se reconstroem, apenas se submetem às regras que os moldam. Impressão dada pelos diretores, num filme sem choques, nem narrativa hollywoodiana, construído por entrechos que lhes dão sentido. Trata-se de agudo olhar sobre o indivíduo cujo papel na estrutura da sociedade capitalista o consome como uma peça descartável.

“O Homem das Multidões”. Drama. Brasil. 2013. 95 minutos. Trilha sonora: O Grivo. Edição: Cao Guimarães, Marcelo Gomes, Lucas Sander. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Roteiro/direção: Cao Guimarães/Marcelo Gomes. Elenco: Paulo André, Silvia Lourenço, Jean-Claude Bernardet.

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