O Abutre”, imagens contaminadas

O submundo de noticiário mundo cão, a construção da imagem mórbida e a luta pelo espaço na TV são os temas deste filme do cineasta Dan Gilroy

Nada mais enganoso do que a imagem perfeita. Ela pode estar eivada de edições que distorcem sua veracidade. Em “O Abutre” o cineasta estadunidense Dan Gilroy percorre o submundo dos cinegrafistas independentes e a ilha de edição de noticiário mundo cão para mostrar como ela é construída. O que se vê faz jus à máxima de Nina (Rene Russo), editora do jornal da noite da fictícia KWLA: “Nosso telespectador gosta de ver o que acontece aos ricos caucasianos”, ou seja corpos estraçalhados.

Gilroy centra a narrativa no câmera Louis Bloom (Jake Gyllenhaal), valendo-se das construções do filme noir: sombras, solidão, carência afetiva, decadência, morbidez. O cenário é a Los Angeles povoada de seres furtivos, choque de veículos, quedas de avião, acerto de contas entre traficantes. Mas ao invés do detetive particular e a mocinha de vida dupla, os personagens pertencem ao universo dos noticiários mundo cão.

Através de pequenos golpes, o obsessivo Bloom salta para o mundo das imagens, captadas pela pequena filmadora, que manuseia sem técnica alguma. Mas é o bastante para obter as graças de Nina e a ojeriza do concorrente (Bill Paxton), acostumado a disputar com a grande mídia a primazia da cobertura dos grandes acidentes. E logo percebe o que fazer para sobreviver num meio de feroz e desleal concorrência.

Bloom une teoria aos negócios

Aos poucos, ele refina sua técnica, a ponto de cunhar, perante Nina, sua teoria da imagem perfeita.” Um enquadramento adequado não só cativa a nossa visão, como a faz permanecer mais tempo nessa imagem, dissolvendo a barreira entre o sujeito e a realidade”. Parece frase de teórico, mas Bloom transforma seu trabalho em negócio lucrativo. O faz pressionando e chantageando Nina, até criar a agência Vídeo Prodution News e contratar como assistente o aturdido Eric (Riz Ahmed).

Quando, na intrigante sequência do restaurante, ele a convence a tornar-se sua parceira, ela sente que está diante de quem busca escapar às sombras. Ele é incisivo ao apontar os pontos fracos e negligenciar as virtudes dela. Embora ela adiante tente escapar, ele lhe mostra o quanto se tornou dependente dele. “Você trabalha numa emissora que é a última em audiência e seu contrato de dois anos está para acabar. Sou a sua única salvação”. Eles se tornam mais que parceiros, são cúmplices em tudo.

Nina, porém, foge ao estereótipo da jornalista espertalhona, dividida entre paixões e carreira. Introvertida, não permite intimidades ou que se desvende sua vida particular, Sua existência se resume à sala de edição, onde concentra poder através das imagens que vão ao ar. Bloom o percebe desde o início. O embate entre eles não é pela cama, o interesse está no que um tira, ao máximo, do outro: imagens fortes, dinheiro e influência.

Nina torna o material o reflexo de tragédia

No entanto, as disputas entre eles são consequências das construções que borram os limites entre o ilegal e o ético, o aceitável e o manipulável. Numa delas, Bloom chega atrasado ao assassinato de um rico casal e o concorrente faz troça dele. Sem imagens das vítimas, ele se vale de velhas fotos para fazer a matéria. Impossível usar tais imagens. Nina o salva ao editá-las como reflexo de tragédia familiar. O que só faz aumentar a cumplicidade deles.

Bloom aprende, assim, a trabalhar cenários para tornar o fato “corriqueiro” uma intrigante notícia. Seu ápice é o tiroteio entre traficantes numa mansão. Para tornar as imagens reais e o caso estarrecedor, ele muda as vítimas de lugar, influindo no trabalho dos peritos e dificultando a investigação dos detetives. Desta forma, Nina, a polícia e o telespectador se tornam reféns de sua obsessão por dinheiro e notoriedade.

Cabe a Nina, mais uma vez, atenuar a violência das imagens, para burlar a lei estadunidense que a impede mostrar cenas chocantes. Editadas, elas surgem maquiadas, com o cenário e as vítimas dissimuladas. Para completar a manipulação, ela orienta entonações e ênfases dos apresentadores do jornal. E a notícia, em si, forte, é repetida ao longo do dia, numa expansão do fato como espetáculo de grande audiência.

A dupla Bloom/Nina ao agir desta forma canibaliza os fatos e agride os telespectadores, que acreditam estar diante de fatos reais, não de técnicas só permitidas à ficção, ou seja ao cinema, a filmes e séries televisivas e ao tratro. Tornam falsas imagens de vítimas de tiroteios, de assassinatos, de acidentes de trânsito e aéreos gravados in loco. Desta forma, acabam interferindo no fato e ditando suas indesejáveis consequências.

Mais do que isto, terminam criando imagens contaminadas pelos arranjos que atendem a interesses econômico-financeiros. Bloom, ao ser procurado em seu apartamento pela detetive Frontieri (Michal Hyatt) e o parceiro dela, o faz com largo sorriso pela notoriedade conquistada. Assim, imagens contaminadas só provocam catarse, sem revoltar o telespectador contra a violência e a impunidade, ou lutar por seu direito à informação sem retoques. Gilroy vai direto ao ponto.


“O Abutre”. (NightCrawler). Drama. EUA. 2014. 117 minutos. Música: James Newton Howard. Edição: John Gilroy. Fotografia: Robert Elswit. Roteiro/direção: Dan Gilroy. Elenco: Jake Gyllenhaal. Rene Russo. Bill Paxton. Riz Ahmed.

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