O susto do bancário
– Camponês não é gente.
– Por que você diz isso?
– Porque são sujos e falam errado
Publicado 20/09/2014 17:43
Poucos dias depois de Sinésio Aroucha destilar sua repulsa aos mais pobres, foi demitido do banco onde trabalhava como auxiliar bancário. Pedira dinheiro emprestado ao chefe do Departamento de Empréstimos; não pedira à instituição, mas ao bolso pessoal do chefe. O chefe esperara três meses para ter o dinheiro de volta. Mesmo com o salário em dia, Aroucha urdia uma desculpa para rogar por novo adiamento. Ao fim do terceiro mês, antes que o chefe lhe fizesse a cobrança com a voz cava e sôfrega, inda que mirando-o com sentença nos olhos, Aroucha adiantou-se:
– Seu Neves, não passa do próximo mês. Eu lhe garanto!
Um banco vive de garantias. Aroucha nutrira-se da ideologia do crédito cobiçoso, e usou o jargão tão comum a todas as carteiras do banco. Neves Toledo, acostumado a enxergar nos olhos dos clientes, as chances de retorno ou não do dinheiro liberado, certificou-se de que na cintura do subalterno havia o meneio próprio da trapaça. Sem carecer do apoio ou ponderação de outra chefia, julgou Sinésio Aroucha incapaz de personificar o decoro da instituição. Dispensou-o da obrigação de restituir o dinheiro, com o tom seco, nunca mordaz, do bancário de carreira.
– Suba ao primeiro andar. Sua indenização já está sendo calculada pela carteira de Pessoal.
Aroucha nada disse. Subiu a escada helicoidal, sentou-se à frente do birô da chefia de Pessoal. Tinha os olhos nos cálculos de quanto receberia depois de dois anos de trabalho; mas o juízo, sem dar mostras de ressentimento, ocupou-se do pai, com o mesmo nome seu, e que por isso mesmo, por meio de amizades, conseguira a ocupação para o filho.
O pai repreendeu-o; não ao ponto de checá-lo com tisanas morais, realinhando-o para assumir outro trabalho; repreendeu-o porque tinha de repreendê-lo.
Semana seguinte, no gozo do desemprego, Aroucha foi ao Savoy, onde repetiu para mim, após ler a página de notícias internacionais do Diário de Pernambuco:
– Camponês não é gente.
– A propósito de quê, você está dizendo que camponês não é gente?
Reabriu o jornal e apontou para a manchete:
BOMBARDEIROS AMERICANOS NA OFENSIVA DO MEKONG
– Os guerrilheiros do Vietnam são camponeses magros e baixos. Fedem como os do nordeste. Não vão conseguir ganhar a guerra.
– Por que tem tanta certeza?
– Porque acredito em Kennedy e nos olhos azuis de Marilyn Monroe.
Em seguida, sorveu de uma vez toda a cerveja do copo; por certo prelibando-se do cerco vitorioso dos marines nos pés-rapados do Vietnam do Norte.
O Savoy, no centro do Recife, era frequentado pela boemia intelectual. Também o PCB, ou uma fração dos mais antigos militantes, ali montara uma célula onde discutia-se tudo, menos a mudança revisionista no programa do partido.
A célula do PCB, sentada ao lado, ouvira as imprecações de Sinésio Aroucha. Puseram-se a rir, fazendo pouco das impressões do ex-bancário. Convinha a eles, em que pese a docilidade à pressão revisionista, mostrarem-se confiantes na resistência vietnamita.
Mostraram-se mais confiantes com a chegada de outro conviva. O recém-chegado se livrara do paletó, pondo-o sobre o encosto da cadeira, e afrouxara a gravata. Era sexta-feira gorda, mesmo não sendo da semana pré-. Logo deu conta do chope trazido pelo garçom. Sinésio Aroucha percebeu-o, estacou quase perdendo o interesse pela cerveja. Rijo, demorou a tirar os olhos de Neves Toledo com o riso solto na mesa vizinha.