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Mazé Leite: A força de Artemísia 

Quando se estuda a história da arte, percebe-se que a presença feminina é quase rara. E por que isso acontece? Numa sociedade onde, ao longo de séculos de história, predomina o patriarcado que impõe suas regras, para uma mulher se tornar artista era muitíssimo dificultado. Aquelas que se destacaram, como Artemísia Gentileschi (entre tantas outras), foram verdadeiras heroínas da resistência como mulheres e como artistas.

Por Mazé Leite*

"Autorretrato como Alegoria da Pintura", Artemísia Gentileschi, 1639

Artemísia é uma dessas pintoras, que viveu no Barroco italiano, uma das únicas mulheres artistas conhecidas desse período. Ela nasceu em Roma no dia 8 de julho de 1593. Ela era a filha mais velha do pintor toscano Orazio Gentileschi. A menina foi se destacando dos irmãos pelo talento para a pintura, e tinha facilidade especialmente em misturar a palheta de cores de uma forma que dava brilho às pinturas. Desde cedo, aprendeu a desenhar sob a orientação paterna, demonstrando um talento precoce que foi bastante estimulado pelo ambiente artístico que girava em torno de sua casa, frequentada por outros artistas, amigos e colegas de seu pai.

Em Roma havia uma grande concentração de artistas e artesãos, e Artemísia cresceu em um bairro habitado por muitos deles. Roma vivia em plena efervescência cultural e a igreja católica atraía muitos artistas para lá, vindos de todos os lugares. Caravaggio trabalhava na Basílica de Santa Maria do Povo, assim como, em outras igrejas, trabalhavam Guido Reni e Domenichino, além dos irmãos Carracci, que pintavam seus afrescos na Galeria Farnese. Nesse ambiente, foi crescendo a artista Artemísia.

Seu pai, Orazio, já pintava segundo o estilo de Caravaggio, com quem tinha mantido contato. Por isso a jovem Artemísia também era influenciada pelo mestre do Barroco, que costumava ir à sua casa pedir emprestadas as ferramentas de trabalho de Orazio.

A discriminação contra as mulheres era imensa e somente foi possível que ela aprendesse a pintar, porque o fez diretamente com seu pai. Naquela época, e por muitos séculos, as mulheres não tinham acesso a muitos ramos da atividade econômica e social. Seu papel era basicamente de procriadoras e trabalhadoras domésticas, trabalho este não reconhecido como tal. Não recebiam reconhecimento nem mesmo quando tinham que sustentar sua própria família. Além disso, às mulheres sempre era impedido o acesso ao estudo, à educação intelectual, ao aprendizado da pintura, mais especificamente.

Mas Artemísia Gentileschi escreveu uma outra história para si.

A primeira pintura atribuída a ela data de quando ela tinha apenas 17 anos de idade (“Susana e os velhos”, 1610 ). Seu pai, impressionado com a qualidade da pintura da filha e sabendo dos impedimentos que haviam para a educação das mulheres nas artes, resolveu escrever uma carta à Grã-Duquesa da Toscana, Christina de Lorena, no dia 6 de julho de 1612, intercedendo pela filha, pedindo que ela pudesse ser autorizada a aperfeiçoar sua educação artística. Orazio dizia, entre outras coisas, que Artemísia havia atingido a habilidade e maturidade de artistas experientes.

Susana e os Velhos, Artemísia Gentileschi, 1649

E, mais do que o domínio técnico, ela já demonstrava um potencial expressivo muito rico. Esta tela com temática religiosa (“Susana e os velhos”) já indicava o ponto de vista de uma mulher vivendo em uma sociedade profundamente machista: a história que ela ilustra é a de uma moça nua, tomando banho, sendo observada por dois velhos que a ameaçavam, se ela não se entregasse a eles. Não era um tema original, pois outros artistas do sexo masculino já a tinham pintado. Mas somente na versão de Artemísia é que podemos ver a repulsa com que uma Susana nua ouve as cantadas dos dois velhos. A artista voltou a fazer outra versão dessa pintura, em 1640, mais amadurecida. E mais sofrida.

Mas a carta de Orazio Gentileschi intercedendo pelo aprimoramento da educação artística da filha, foi seguida de uma tragédia que se abateu sobre a jovem: um dos amigos de seu pai, a quem ele teria pedido que ajudasse na formação dela, a violentou. Agostino Tassi era um dos mestres do ensino do desenho de perspectiva. Depois de alguns meses abusando sexualmente de Artemísia, prometendo que ia se casar com ela, Agostino revelou que já era casado. Isso enfureceu Orazio, que levou o caso a julgamento. Mas se já não bastasse – além da violência do ato – toda a humilhação que foi descarregada sobre ela tanto pelo réu, quanto pelos julgadores, Artemísia ainda foi torturada para que narrasse a cena do estupro em detalhes, sendo submetida a exames ginecológicos na frente de vários homens… Mesmo com a tortura, ela se manteve firme, e o réu foi condenado a cinco anos de prisão, ou o exílio de Roma.

Após esse fato, era impossível para ela continuar na cidade. Humilhada pelas regras sociais católicas, que tratavam mulheres violentadas como se fossem prostitutas, Artemísia se mudou para Florença. Seu pai foi obrigado a arranjar-lhe um casamento de conveniência, para que ela pudesse ser tratada com algum respeito. A filha casou-se com Pierantonio Stiattesi, um artista modesto de Florença, em cerimônia realizada no dia 29 de novembro de 1612. Desse casamento, Artemísia gerou quatro filhos. Prudenzia, a única filha que sobreviveu, acompanhou a mãe em seu retorno a Roma, nove anos depois.

Em Florença, cidade onde o ambiente artístico favorecia, Artemísia se dedicou ainda mais à pintura, abordando temas trágicos, em que figuras femininas sempre aparecem como heroínas. O crítico de arte italiano, Roberto Longhi, atribui ao estupro e a esse processo humilhante que ela sofreu, os traços dramáticos que surgem em sua pintura, especialmente no quadro “Judith decapitando Holofernes”. Artemísia pintou diversos quadros em que coloca a mulher em posição de heroína.

Judith e a Serva, Artemísia, Gentileschi, 1619


O alto nível da pintora foi logo reconhecido. Florença era uma cidade mais aberta do que Roma, e ela foi a primeira mulher a entrar para a Academia de Artes de Florença. Logo se aproximou dos artistas mais respeitados da época, e soube batalhar para ganhar o favor e a proteção das pessoas influentes da época, começando com o grão-duque Cosimo de Médici, e, mais especialmente, com a grã-duquesa Christina de Médici (a família Médici de Florença foi muito importante para o desenvolvimento das artes, tornando-se patronos de muitos grandes artistas italianos). Artemísia teria conhecido inclusive Galileu Galilei, que havia chegado a Florença em setembro de 1610. Ou seja, ela participava ativamente da vida artística e intelectual da cidade.

Mas Artemísia resolveu se separar do marido e voltar para Roma em 1621. Na cidade natal se estabeleceu de forma independente, cuidando sozinha de Prudenzia, sua única filha sobrevivente. Algum tempo depois ficou grávida e teve uma outra filha, provavelmente nascida em 1627. Artemísia tentou ensinar as duas meninas a pintar, mas sem muito êxito.

Com sua exemplar determinação, e enfrentando todos os preconceitos da época, ela resolveu se impor e defender seu direito de viver como artista nessa Roma que era o local de atração e de passagem obrigatória para artistas de toda a Europa. Tanto lutou que se tornou membro da Academia dos Desiosi. Também iniciou relações de amizade com Cassiano dal Pozzo, um importante colecionador de arte, humanista e mecenas.

Mas apesar da sua reputação artística, de sua personalidade forte e de uma rede de boas relações, sua estadia em Roma não lhe rendeu muitas encomendas. Em 1627 partiu para Veneza, com as duas filhas, em busca de trabalho e de maior reconhecimento. Em 1630 viajou em outra direção, indo para Nápoles, pensando que naquela próspera cidade, cheia de estaleiros e de entusiastas das artes plásticas, novas oportunidades de boas encomendas e de emprego se abririam. Com essa mesma intenção também tinham vivido em Nápoles diversos artistas, entre os quais Caravaggio, Annibale Carracci, Simon Vouet, o espanhol José de Ribera, entre outros.

Em Nápoles, suas duas filhas se casaram. Artemísia tinha boas relações com o vice-rei Duque de Alacala, assim como com os principais artistas que lá viviam, especialmente Massimo Stanzione, com quem ela teve uma imensa colaboração artística e desenvolveu uma amizade sólida. Naquela cidade, pela primeira vez, foi convidada a pintar telas em uma catedral.

Enquanto isso, seu pai, Orazio Gentileschi, havia se tornado pintor da corte do rei Carlos I da Inglaterra, que a ele tinha confiado a decoração de um teto na Casa das Delícias, em Greenwich. Em 1638, Artemísia viajou até Londres, para visitar seu pai. Orazio morreu repentinamente, na presença da filha, em 1639.

Essa artista, de vida tão trágica quanto exemplar, voltou para Nápoles, onde viveu até os 60 anos de idade. Artemísia Gentileschi morreu em 1653.

* Mazé Leite, pintora e ilustradora, é bacharel em Letras pela USP. Está à frente do Ateliê Contraponto de Arte Figurativa