Por que não uso antirretrovirais: uma discussão sobre ética e direitos

Depois de ser diagnosticada como HIV positiva, Violeta (nome fictício) criou um blog para contar sobre sua experiência. A página foi batizada de Violeta Positiva – Diário Inconstante de uma Soropositiva Pensante. Reproduzimos abaixo um dos posts mais lidos – e mais polêmicos – do blog. Nele, Violeta alerta para os riscos do tratamento com antirretrovirais e explica por que optou por se tratar de outras maneiras. Confira.

Violeta Positiva
Por que não uso ARVs – e de quebra uma discussão sobre ética e direitos

Por Violeta*, no blog Violeta Positiva

Já falei sobre isso rapidamente em outros posts, mas como é um assunto delicado e que inclui uma série de fatores, achei melhor explicar tudo direitinho.

Eu optei por não entrar com o tratamento com antiretrovirais (ARVs) em primeiro lugar porque tive tempo para pensar. Por questões de SUS os meus comprimidos levariam um mês e meio para chegar. Nesse meio tempo fiquei sabendo pelo farmacêutico que entrar em tratamento não era a única opção no meu caso. (Descobri ser soropositiva por um exame de rotina, em ótimas condições de saúde.) Fui me informar melhor e resolvi esperar. Falei com a infectologista em 4 meses para pensar melhor. Com isso pudemos analisar os resultados dos mil exames feitos após o diagnóstico e refeitos 3 meses depois. Pude conversar com três médicos de diferentes linhas, com outros soropositivos, tomar conhecimento de experiências várias. (Inclusive a de um médico com um caso clínico igual ao meu, soropositivo há 12 anos e sem ARVs, que me contou tudo que fazia para se manter bem – alimentação, terapia, fitoterapia.) E só então fiz a minha opção, consciente de tudo, com a cabeça no lugar.

Em geral as pessoas não têm esse tempo que a burocracia me ofereceu. O novo protocolo faz com que os médicos orientem seus pacientes a começar a tomar os remédios imediatamente após o diagnóstico. O que muita gente ainda não sabe é que há um grupo de pessoas, os progressores lentos (em inglês, língua em que encontrei mais estudos sobre, long-term nonprogressors), cujo organismo é capaz de controlar sozinho o vírus por muitos anos, até décadas, mantendo a carga viral abaixo de 5 mil e bons níveis de anticorpos. Alguns conseguem até alcançar o indetectável sem tratamento. Esse grupo constitui algo entre 5 e 15% dos soropositivos (clique aqui para ler um estudo).

Eu dei muito azar em ser contaminada apesar de sempre ter usado camisinha… mas dei a sorte de ser progressora lenta. E de ter descoberto isso antes de entrar com os ARVs. (Para quem não sabe, uma vez iniciado o tratamento não pode ser interrompido.)

Esse é então o segundo motivo pelo qual optei por não usar ARVs ainda: posso fazer isso sem riscos consideráveis para minha saúde ou de parceiros. E tenho total consciência de que para as coisas funcionarem bem dessa forma preciso me cuidar bastante (alimentação, exercícios, emocional), ter absoluta responsabilidade se for transar com alguém (camisinha sempre, sexo oral só depois de exames do parceiro para não correr risco de pegar outras DSTs) e fazer o acompanhamento semestral. Se algum dia as taxas começarem a ficar “perigosas”, será minha hora de começar o tratamento.

O protocolo atual não finge que os progressores lentos não existem. Ele nos inclui na política. Diz que mesmo para nós — e até para os controladores de elite, esses sortudos maiores, 1% dos soropositivos que podem dominar o vírus pelo resto da vida — é vantagem entrar com os ARVs de imediato. E é disso que eu discordo. Quando falam isso eles pensam nos pacientes mas também (e acho que principalmente) em reduzir o contágio. Por essas e outras defendo o caso a caso, sempre. Se eu tivesse 20 anos, toda uma vida sexual a ser bem desfrutada pela frente, talvez optasse pelo tratamento para alcançar logo o nível indetectável e poder transar mais livremente, sem nenhum medo de contaminar alguém. Mas já passei dos 40, sou super responsável, não tenho problema algum com camisinha, aviso os parceiros sobre o HIV antes de rolar qualquer coisa… e minha vida sexual não anda das mais animadas. (Essa parte bem pretendo reverter assim que valer a pena.)

Para ter uma ideia do que a progressão do vírus faz com o CD4 em cada grupo e em quanto tempo, sem uso de ARVs. Fonte: i-base 

Os antiretrovirais são uma conquista enorme, sim. Graças a eles hoje os soropositivos podem levar uma vida muito mais longa, com qualidade, saúde, sem definhar e morrer como víamos nas notícias antigamente. Ótimo. Mas eles também significam uma química pesada no organismo. (E eu tomo antidepressivos há muitos anos, desde bem antes do diagnóstico, eles já são uma química pesada no meu corpo…) Podem causar vários efeitos colaterais a curto, médio e longo prazos. Alguns sérios. Mas isso os médicos quase não informam aos pacientes quando os orientam a começar de imediato com os ARVs.

Essa pressa na entrada dos remédios me incomoda muito, dos pontos de vista ético e de direitos humanos. Eu explico. Qualquer soropositivo sabe que o período pós-diagnóstico é de uma fragilidade emocional enorme. De pânico. Não temos condições psicológicas de decidir nada. Vamos fazer o que o médico falar. Porque estamos mergulhados em MEDO, ainda quase sem informações atuais, assombrados por fantasmas. Insistir nessa hora no início imediato de um tratamento pesado e que terá de ser seguido pelo resto da vida, mesmo nos casos em que o quadro clínico geral é aceitável e seria possível aguardar um período sem risco para nossa vida (e bastante alertados sobre como não arriscar a de outros)… me parece atentar contra o direito de escolha. E há legislação médica sobre isso:

“(…) o atual Código de Ética Médica — no capítulo que disciplina a relação médico-paciente intitulado 'Direitos Humanos' — impõe ao profissional de saúde o dever de prestar todas as informações ao enfermo para que ele possa decidir livremente [grifo meu] sobre si e seu bem-estar, ou seja, para que ele tenha o direito de consentir ou recusar os procedimentos propostos (artigos 46, 48, 56 e 59).” (Ler mais aqui.)  

Por que seria diferente com soropositivos? Que tal nos enxergar como seres humanos, capazes de raciocínio, responsabilidade, assimilação de informações etc, e não apenas como um bloco de “possíveis agentes contaminantes”?

Isso tudo explicado, o que eu defendo inicialmente é que quem

* se descobre soropositivo antes de o vírus se tornar AIDS
* está com a carga viral abaixo do limite de 100 mil indicado pelo protocolo anterior
* e está com os anticorpos (CD4 e CD8) em níveis aceitáveis

não seja pressionado a entrar imediatamente com os ARVs como se essa fosse a única possibilidade e emergencial. Que essas pessoas sejam informadas de que podem aguardar alguns meses para fazer e repetir exames de sangue que apontem qual o seu quadro clínico geral, passado o abalo emocional e físico causado pelo diagnóstico, pois têm condições de saúde para poder avaliar tudo sem tanta pressa.

A menos em casos realmente emergenciais, acredito que todo soropositivo deveria ter garantido o seu direito de poder buscar informação ampla antes de se decidir, outras opiniões médicas. Ter calma para estudar os prós e contras e confrontá-los com suas características pessoais, suas especificidades. Idade, relacionamentos, nível de responsabilidade, problemas ou não com camisinha, condições de saúde, qualidade da alimentação etc.

Talvez nesse período de acompanhamento, sem início “compulsório” do tratamento com ARVs (mas já encaminhando para nutricionista, psicólogo e o que mais for necessário para ajudar a melhorar o quadro), fique claro que a pessoa se mantém em boas condições de saúde, carga viral baixa, CD4 ok… então pode pensar em esperar alguns anos. Ou que é progressora lenta como eu, e pode esperar muitos anos. Haverá tempo para buscar informação, analisar sua situação de vida, suas especificidades, se considera o uso de camisinha e outras precauções necessárias grandes problemas ou não… e decidir por si mesma o que quer ou não fazer naquele momento.

Esses são alguns de nossos direitos. Os deveres?

* não entrar em negações do problema e das suas implicações
* fazer o monitoramento direitinho e assumindo conosco mesmos o compromisso de não deixar o vírus ficar meses nas alturas antes iniciar o tratamento, porque isso é perigoso e porque aí os ARVs levarão mais tempo para estabilizar as coisas
* ter total consciência da responsabilidade que estamos assumindo conosco mesmos e com possíveis parceiros/as
* nos cuidar muito bem – alimentação saudável em especial.

Para terminar, boas notícias: segunda-feira tive consulta e entrega de exames. E estou toda feliz aqui. Quem acompanha o blog sabe que uns dois anos atrás (depois de voltar a viver em São Paulo, passar meses sem conseguir ser aceita em um centro de tratamento e no meio de um colapso emocional e mental que me abalou por muito tempo) o exame semestral mostrou que a minha carga viral havia mais quase triplicado. Na época isso me assustou demais. Ela nunca havia sido superior a mil e de repente estava em mais de 3.700 cópias. Pânico básico. Mas conversei com meu médico de família — gratidão eterna a essa linha tão mais humana — e ele me acalmou explicando que era uma oscilação muito pequena dentro dos milhões que o vírus pode alcançar. Realmente ficou tudo bem. Quando me testei seis meses depois já havia caído pela metade.

(Mesmo assim a infecto voltou a insistir nos ARVs. Postura comum, mas que não coloca na balança o emocional do paciente, fundamental para a manutenção de sua saúde.)

A boa nova é que neste último exame minha carga viral voltou ao seu normal, abaixo de mil cópias, viva! E CD4 e CD8 (referentes aos anticorpos) ótimos, hemograma completo, vitaminas etc que sempre temos de fazer também perfeitos, como sempre tudo dentro dos parâmetros. Fotografei a página referente ao HIV, para quem não conhece esse universo ter uma ideia de como é o acompanhamento.

 

Hoje, passado o medo fruto da ignorância, olho para esse 3.742 que me deixou tão nervosa… e fico feliz demais. Porque ele me mostra que mesmo em meio a um colapso nervoso meu organismo consegue controlar o vírus dentro de uma taxa bem baixa. E com isso vejo que estou certa em minha posição. ARVs? Não, não preciso deles por enquanto. E espero não precisar por muitos anos, até que chegue a cura.

Gratidão, meu corpo lindo!!!

Beijos a todos,

Violeta

* Violeta é blogueira. Sua página, Violeta Positiva, conta sobre sua experiência como “soropositiva pensante”