O chanceler que tem a ilusão de falar “de igual para igual” com os EUA

Desde que tomou posse no Itamaraty, em 2 de janeiro, com um dos discursos mais prolixos e enfadonhos na história da República, Ernesto Araújo deixou clara a vocação para a retórica pretensiosa. Se a péssima repercussão de sua estreia como ministro de Relações Exteriores do governo Bolsonaro o inibiu, foi temporariamente.

Ilustração: Aroeira

Na entrevista coletiva com a qual encerrou uma visita de quatro dias aos Estados Unidos, na última quinta-feira, o chanceler se permitiu um autoelogio: “O Brasil não tem medo de se relacionar com os EUA de igual para igual”, disse. “Em outros momentos, o Brasil não acreditava em si mesmo e, então, não podia se relacionar com os EUA. Temia-se que o relacionamento seria de subserviência e alinhamento automático. Essa é a diferença da nossa política atual. Não temos nada a temer.”

Em sua face mais evidente, a declaração do Araújo é uma resposta aos que o criticam não tanto por defender uma aproximação maior com os Estados Unidos – mas pelo alinhamento quase canino às posições do governo de Donald Trump. Um governo que foi vergonhosamente chamado de “salvador das tradições judaico-cristãs ocidentais”, no famoso ensaio que aproximou o hoje ministro da família Bolsonaro e de Olavo de Carvalho.

O outro aspecto, mais relevante, é que as declarações públicas de Araújo em sua passagem pelos Estados Unidos, oficialmente para tratar da visita do presidente Jair Bolsonaro em data ainda indefinida, não permitiram esclarecer se ele de fato fala de igual para igual com as autoridades americanas. Seria no sentido mais comumente usado nas relações internacionais – de aliados e parceiros que se respeitam e veem complementaridade em suas ações, apesar, e às vezes até por causa, de suas diferenças?

O que, sim, é possível saber é que ele falou igual aos porta-vozes do governo Trump. Na mesma entrevista coletiva, por exemplo, Araújo voltou a criticar a iniciativa da União Europeia de formar um Grupo de Contato Internacional sobre a Venezuela.

O objetivo declarado do grupo era facilitar uma solução pacífica para o impasse que hoje opõe o governo legítimo de Nicolás Maduro à alternativa golpista representada pelo presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó. Segundo o chanceler, a iniciativa europeia não parece útil nem produtiva, e serve apenas para “retardar o fim do regime ditatorial e dar espaço de respiração a Nicolás Maduro e seu grupo”.

A crítica padeceu de certo anacronismo. Pouco antes, o mesmo grupo de contato, em seu primeiro encontro em Montevidéu, divulgou um comunicado em que pedia “eleições presidenciais livres e transparentes na Venezuela”, como parte de uma solução supostamente “democrática e eleitoral”. O mesmo comunicado fazia menção à necessidade de se respeitar “a Assembleia Nacional eleita democraticamente”. Portanto, diferentemente do que disse o ministro, o grupo de contato não incorreu no “pressuposto de uma igualdade” entre Guaidó e Maduro. Era igualmente pró-golpe.

Acontece que, também pouco antes da entrevista de Araújo, o recém-nomeado emissário especial do governo Trump para a Venezuela, Elliot Abrams, havia criticado o grupo de contato. “Em vez de tentar falar com Maduro por meio de grupos de contato ou diálogo, fazemos um chamado aos países para que reconheçam Juan Guaidó e se unam a nós para responder a seu apelo por ajuda humanitária imediata”, disse Abrams, figura marcada pelo envolvimento em operações criminosas na América Central nos estertores da Guerra Fria.

Na manhã da entrevista, o chanceler esteve com o senador republicano de origem cubana Marco Rubio. De acordo com o “New York Times”, Rubio é o principal estrategista da política dos Estados Unidos para a Venezuela. Como integrante da linha-dura da comunidade cubana no exílio, ele está de olho no efeito que uma eventual queda do chavismo poderia ter na ilha.

Rubio e parte dos opositores venezuelanos que vivem exilados gostam de salientar o papel que Cuba teria na sustentação do regime de Maduro, por meio da vigilância e do controle dos militares venezuelanos. Porém, a própria diplomacia profissional norte-americana considera essa ênfase excessiva – para não dizer descabida ou mesmo implausível.

Pois Araújo, o ministro mais americanófilo do governo Bolsonaro, fez a mesma coisa na entrevista coletiva. Disse que “provavelmente Maduro não estaria mais no poder se não tivesse apoio das forças cubanas na Venezuela”. Por quem, então, fala o chanceler?

No tema Venezuela – que dominou a visita do ministro –, só uma coisa distinguiu as palavras de Araújo dos interlocutores com os quais se reuniu, incluindo o conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, e o secretário de Estado, Mike Pompeo. É que Rubio, Bolton e Pompeu sempre dizem que a opção militar não está descartada – o que impediu que uma resolução de apoio a Guaidó fosse aprovada nesta semana no Senado em Washington. Já o chanceler disse que não conversou sobre isso: “Acreditamos que o processo democrático irá adiante por meios políticos e diplomáticos.”

O que Araújo não disse é se o Brasil pretende recuperar alguma voz própria se a enorme e inédita sabotagem econômica e diplomática atual não provocar a queda rápida de Maduro. O americano Robert Malley, presidente do centro de estudos e prevenção de conflitos International Crisis Group, publicou nesta sexta-feira um relato do que viu e ouviu em uma visita de trabalho a Caracas. “Mesmo políticos pró-Guaidó admitem ter pouca confiança de que isso vai acabar pacificamente ou de acordo com o plano”, resumiu.

O texto de Malley descreve dois lados aferrados a suas posições, enquanto “vozes mais pragmáticas” nem sequer ousam se pronunciar publicamente. “É uma situação que clama pela mediação externa”, diz ele, mesmo considerando que, vista de Caracas, essa possibilidade pareça hoje distante da realidade. “Não há nenhuma garantia de que possa surgir um compromisso (…), mas vale a pena tentar, e o melhor teste viria se um pequeno grupo de países, alguns de confiança da oposição e outros do regime, assuma esta tarefa.”

Com informações da Época