Bolsonaro e a tentativa de reinvenção do fascismo no Brasil

O fascismo vai sendo reinventado pela ultra-direita no Brasil. Mas, acompanhando a denúncia desta realidade, surgem novos protagonistas no campo progressista. No próprio movimento evangélico se organizam reacções contra Bolsonaro, somando-se à Frente Ampla pela Democracia.

Por Alexandre Weffort, para O Lado Oculto

bolsonaro - Reprodução

As imagens de violência utilizadas pelo candidato do PSL Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, encontram-se amplamente reproduzidas nas imagens pela mídia. Crianças de classe média vestem camisetas estampadas com a face de Bolsonaro, enquadrada por armas de fogo (numa composição ambígua que sugere tanto a cruz de Cristo como a águia militar romana) – nos convida a reflectir sobre a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo.

Imaginários da ultra direita brasileira

Muitas são as correlações entre o posicionamento do atual líder da ultra-direita brasileira e o que há de mais negativo na história do século 20, nomeadamente, quando relembramos o execrando ideólogo do nazismo alemão Joseph Goebbels.

Uma daquelas correlações reside no uso de novas tecnologias para a propaganda política: Bolsonaro usa o WhatsApp, como ferramenta de marketing digital; Goebbels utilizou o cinema, arte que dava os seus primeiros passos, como ferramenta de propaganda ideológica. E, tal como fez Goebbels, Bolsonaro recorre a imagens (e seus apoiantes por elas estimulados a ações) violentas, por via da diabolização dos seus adversários, com frequente recurso a "fake news": atribui-se a Goebbels a frase "uma mentira, dita mil vezes, transforma-se em verdade" (1). Mas as correlações estendem-se a temáticas mais frequentes.

As armas – a liberalização do seu uso – assim como a homofobia, entre outros temas considerados sensíveis para o público religioso, foi explorado em profundidade na campanha de Bolsonaro. A imagem da "ordem e progresso" sustentados pela força violenta combinam-se no discurso (palavras, imagens e gestos) da direita brasileira. O poder exercido sem diálogo, de forma intolerante, afirma-se como escolha privilegiada nesse quadrante ideológico.

Cores evangélicas na cena política brasileira

Todas as religiões assumem uma certa forma de relação com a sua comunidade, de orientação espiritual e prática, em matérias relacionadas com o dia-a-dia. A função social da igreja (e tal é válido para as igrejas cristãs nas suas várias tendências e para as outras crenças – judaica, islâmica, budista, etc.) realiza-se por via dessa acção construtiva e constitui parte incontornável das próprias relações sociais, apontando tanto a um sentido de dominação como de libertação (2).

O momento político brasileiro está pejado de tensões e contradições. A polarização do combate político, que vinha se exacerbando desde o processo de impeachment, do golpe de 2016 e da entrega da presidência do governo federal a Michel Temer (hoje novamente indiciado por corrupção, como acontece com outros políticos do seu círculo mais próximo: Rodrigo Rocha Loures, Henrique Eduardo Alves, Geddel Vieira Lima, sem esquecer o inefável Eduardo Cunha).

A história recente do Brasil nos mostra o cruzamento entre religião, tecnologia e política, produzindo resultados para muitos surpreendentes. O ex-deputado Eduardo Cunha liderou o Congresso brasileiro, tendo assumido um papel determinante no Golpe de 2016. A sua actuação, vista pelo prisma político partidário, nos colocou perante a fractura do PMDB, então dominado por Sarney e Jucá (num mini-golpe interno em que decidiram o desembarque do governo, vencendo a facção progressista desse partido, liderada por Roberto Requião).

Não nos interessa aqui o papel de Eduardo Cunha, político partidário (nem o seu envolvimento em processos de corrupção), mas a sua actuação enquanto político religioso, ou seja, do Eduardo Cunha pentecostal e a sua actuação no âmbito da chamada "bancada evangélica", por vezes qualificada de bancada supra-partidária, mas que pode actuar como um verdadeiro "partido multi-legenda", quando os interesses defendidos pelos seus integrantes se definem em função dos valores religiosos ou dos interesses das suas congregações.

Não há, no comportamento dos integrantes da bancada evangélica, uma distinção clara entre o âmbito político e o religioso. A igreja é o seu palanque político; no congresso, reverberam os interesses sectários das suas igrejas. E, o cargo político para o qual foram eleitos irá subordinar-se aos valores que formam a sua identidade primária (que é de âmbito religioso).

Desenvolvimentos contraditórios

A realidade manifesta-se nas suas contradições. A legislação eleitoral brasileira foi modificada de forma a limitar a fragmentação do espectro partidário, criando cláusulas de desempenho, enquanto a nível das campanhas eleitorais se impôs uma redução dos montantes e regras de financiamento mais apertadas, além da exigência de maior equidade nos recursos de marketing, por exemplo, em relação aos outdoors.

A reforma eleitoral promovida por Eduardo Cunha colocou em risco os partidos com pouca expressão parlamentar. As cláusulas de barreira favoreceriam o chamado "centrão". Mas, o processo iniciado por Cunha (o impeachment de Dilma) havia mostrado como a direita mobilizada nas ruas também desprezava aqueles partidos tradicionais.

A forte polarização resultou em desastre para o PSBD (que sustentou Temer) e para muitos políticos do centro. Favoreceu a extrema-direita e o PSL, partido que estaria em risco na lógica anterior, mas que, sendo "alugado" por Bolsonaro para a sua ambição presidencial, cresceu vertiginosamente, passando da condição de "nanico" à de segunda força (em número de deputados o PT mantém o primeiro lugar).

Para o crescimento da extrema-direita concorrem, por um lado, os ganhos de imagem resultantes do envolvimento de algumas figuras na campanha do impeachment e, por outro, da aparente carência de recursos de propaganda imposta pela nova legislação. Mas, na realidade, a direita beneficiou de dois factores: por um lado, pela média etária dos candidatos e seu estrato sócio-económico, possuindo um domínio mais confortável das novas tecnologias de informação – derivado do uso assíduo das redes sociais, nomeadamente das plataformas Instagram e WhatsApp – garantiram melhor desempenho nas redes de comunicação e, por outro lado, beneficiou da relação da extrema-direita com as principais lideranças da bancada evangélica, potenciando o fenómeno da comunicação virtual e o seu papel no terreno político.

Rupturas tecnológicas no processo de comunicação

A historia da religião nos mostra como o movimento protestante recorreu à publicação em pequeno formato dos textos da Bíblia. Os princípios de sola fide (justificação pela fé) e sola scriptura (somente aceitando a autoridade da Bíblia), juntamente com o sacerdócio de todos os crentes (ou sacerdócio universal, colocando à responsabilidade de todos os crentes a preservação e propagação dos evangelhos) marcam, no essencial, a diferença da prática protestante face à prática católica. Daí que a possibilidade de se editar o Novo Testamento em formato de bolso (que os Gideões Internacionais iniciaram em 1899, no Wisconsin, nos Estados Unidos) se pode considerar um momento de ruptura tecnológica equivalente à actual publicação da Bíblia em formato digital, acessível aos aparelhos de comunicação portátil, tablets e smartphones.

O uso de aplicativos digitais pelas igrejas evangélicas tem como figura determinante o pastor Billy Graham, que promove, em finais da década de 1990, o surgimento da IEC (Internet Evangelism Coalition), movimento de evangelização on-line. Vemos como as igrejas pentecostais, nascidas no bojo do movimento evangelista norte-americano, agilmente se adaptam às novas tecnologias e protagonizam uma nova prática de ruptura, desta feita, aproveitando duas potencialidades dos meios de comunicação pessoal multimídia na rede virtual.

As redes de contactos do movimento evangélico

O smartphone possibilita a apresentação de clipes de imagem e som, juntamente com mensagens em texto, emitidas ponto a ponto (isto é, são formas de comunicação pessoal, como o antigo telefone), mas os meios informáticos utilizados pelas igrejas evangélicas (como a plataforma inChurch) permitem a articulação daquela forma de mensagem pessoal com um sistema de gestão de contactos podendo atingir assim um largo público (milhares de igrejas locais de uma determinada obediência).

Tal sistema não se enquadrará directamente no conceito de marketing cibernético, visto constituir uma operação interna à estrutura religiosa, mas poderá constituir uma poderosa ferramenta de marketing político, se as igrejas (como acontece no Brasil) se constituírem em força política organizada. E, sendo os seus candidatos vinculados a partidos ou a chapas partidárias, deveria o uso das suas bases de dados considerar-se vedado para efeitos de propaganda eleitoral. A hipótese de tal não ter acontecido é forte.

Ao promover a evangelização pela internet, a Billy Graham Evagelistic Association solicita os dados pessoais a quem responda aos seus inquéritos, dizendo:

Recolhemos as informações que nos forneces, incluindo dados de opinião ou afiliação religiosa, para te oferecer acompanhamento no âmbito deste ministério. Mantemos esses dados em servidores localizados em Portugal e nos EUA, e podemos partilhá-los com os nossos parceiros de ministério no teu país para te proporcionar acompanhamento de proximidade. Ao enviares as tuas informações, concordas com estes termos.

Os condimentos estão à vista: recolha, uso e partilha de informações pessoais a nível internacional, com a concordância expressa do utilizador. Mas, não se trata apenas de emitir mensagens políticas. Trata-se de utilizar, para essas mensagens, o mesmo canal de comunicação que serve à doutrinação sistemática. A associação passa para o plano subliminar. A voz, as imagens e o veículo utilizado são os mesmos que fazem o cotidiano dos crentes. E, surgindo a mensagem de apologia a um determinado candidato (assumido pela igreja evangélica, na forma do ditado: "irmão apoia irmão"), o condicionamento operado a nível da prática religiosa desencadeará o comportamento previsto, concretizado através do voto.

A mesma pessoa que incute em cada crente os princípios atrás referidos (de sola fide e sola scriptura) reclama a obediência a uma mensagem política, por via do mesmo suporte físico em que são agora apresentados os Evangelhos: o pequeno ecrã do smartphone. Não se trata de um mero condicionamento psicológico. Trata-se do uso político da lógica da doutrinação: a palavra fixada no ecrã que apresenta o Evangelho é tomada como verdade, sendo reforçada pelo estatuto de veracidade fornecido pelas imagens, muitas delas, todavia, manipuladas – as célebres fake news.

Em outras, surgem os comportamentos simbólicos mais obtusos, como o gesto de marca de Bolsonaro, imitando uma pistola com os dedos, que vemos reproduzido por apoiantes de qualquer idade, em qualquer lugar (até em plena arquidiocese do Rio de Janeiro).

As redes de comunicação evangélicas não são, é certo, as únicas que poderão ter sido engajadas nestes processos de manipulação. O segmento empresarial que apoia Bolsonaro e que recorre costumeiramente ao marketing on-line, assim como apoiantes políticos que, desde o processo de impeachment, se articulam nestes mecanismos de condicionamento da opinião pública, alguns que viram recentemente as suas actividades nas redes sociais (como o Facebook) suspensas por prática de spam político , surgem nas notícias em, em face disso, tornam-se alvo da atenção das autoridades competentes.

A ameaça fascista explicitada

E será, por fim, em antecipação às possíveis consequências dos abusos praticados, que se revelará à evidência face fascista do discurso de Bolsonaro, desta feita em discurso proferido não pelo candidato Jair, mas pelo seu filho, Eduardo Bolsonaro, quem se achou no momento de proferir ameaças ao Supremo Tribunal Federal, ameaças estas consideradas sérias a ponto de motivar uma reacção do STF, qualificando o deputado Federal de "inconsequente e golpista" .

Tais ameaças mereceram, que são lidas no quadro de uma presença significativa de militares no processo político, como o candidato a vice de Bolsonaro, o General Hamiltom Mourão, que, diga-se, também criticou o filho do candidato, provocaram amplo repúdio da sociedade brasileira (retirando do silêncio até a FHC).

O fascismo vai, assim, sendo reinventado pela ultra-direita no Brasil. Mas, acompanhando a denúncia desta realidade, surgem novos protagonistas no campo progressista. No próprio movimento evangélico se somam reacções contra Bolsonaro, somando-se à Frente Ampla pela Democracia (8). Assim, reagindo ao "ethos fascista", como justamente assinala o governador do Maranhão, Flávio Dino, na reta final de luta pela democracia, pastores evangélicos progressistas se manifestam contra o fascismo e asseguram o seu apoio a Haddad na 2ª volta das eleições presidenciais.

Referências:

(1) David Duke, ex-lider da Ku Klux Kan diga sobre Bolsonaro: "Ele soa como nós". O candidato, entretanto, recusou o apoio do grupo supremacista norte-americano. Todavia, as várias alucoções de Bolsonaro e seus filhos, em tom racista e homofóbico, remetem essa recusa para o âmbito do pudor eleitoral.
(2) Sobre esta temática, ver o texto publicado em 2016, ainda no decurso do Golpe contra Dilma Rousseff.