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Dizer

Por Joana Rozowykwiat*

Deve ter alguma pré-estreia badalada. Um bololô de gente amontoada em pequenas rodas. Falam alto, gesticulam. Riem muito. Cada batom mais vermelho que o outro. Cada barba mais cuidada que a outra. E eu aqui, sem saber se você vai aparecer.

Dizer Joana - Ilustração: Eduardo Padrão

Eu acordei e você nem tava. Eu tinha ensaiado tanta coisa pra dizer. Ontem eu fiquei te olhando tanto, prestando atenção em cada gesto. Tu fazendo um rolinho com uma nota velha de supermercado, tu entortando a boca pra falar das notícias do jornal, tu espirrando três vezes seguidas, tu e essa tua mania de querer organizar tudo.

Tinha uma luz fraca e bem alaranjada que era só aconchego. Tinha um ventinho frio de outono, que balançou as folhas e o teu cabelo – foi aí que tu espirrasse as três vezes. Tinha uma Nana Caymmi cantando baixinho pra gente. Tinha a rede indo e vindo bem devagar, quase arrastando no chão.

A gente ficou só se tocando suave. Passando a mão um no outro, uns poucos beijos. Aquele cansaço da semana, aquele desânimo com esse mundo torto. E de repente a tua mansidão.

Mas eu acordei e você nem tava. Deixou esse buraco. Uma cratera igual àquela do metrô, bem aqui dentro. Porque eu tinha ensaiado tanta coisa pra dizer. Ia ter esses fiozinhos de sol escapando da cortina. Ia ter as crianças brincando no parquinho lá de baixo. Ia ter um monte de travesseiro entre nós. Ia ter você com o resto da maquiagem de ontem. Mas nem teve.

Nem quis ligar, achei exagerado. Mandar mensagem logo assim de manhã também podia ser muito grudento. Essas regras e tal. Eu ia ter um monte de prova pra corrigir, melhor mesmo mudar o foco. Tanta coisa pra resolver ainda hoje, o país derretendo, a economia esse desastre, né?

Devia nem ter começado o expediente bancário quando eu escrevi Ei, bora no cinema mais tarde? Lá pelas sete? Na Augusta mesmo. Mandei e fiquei esperando. Olhava a cada dois minutos para ver se tu tinha respondido. Nada.

A cada bip, aquela ansiedade, mas nem era. Parece que todo mundo tinha decidido falar comigo hoje, empurrando a conversa da gente lá pra baixo. Eu já tava medindo as horas pela quantidade de vezes que tinha que mover a tela pra enxergar esse não diálogo.

E aí no fim da tarde veio tua resposta pela metade Massa, vamo no cinema sim, mas E pronto. Tu queria era me matar com essa mensagem truncada? Até ligar, eu liguei, mas teu celular desligado. E eu assim, sem saber se era pra ir ou não.

Eu decidi vir, que pior ia ser tu aparecer e eu não estar. Pior ia ser tu aparecer e eu não poder dizer. Eu tinha ensaiado tanto. Já num tava mais aguentando, era tanta palavra acumulada. Era tanta vontade junta, um desmantelo.

Mas aí tá esse bololô de gente. Essa muvuca. Esse povo sorridente demais, que faz festa demais, que acha tudo incrível. Gente, tem uma recessão lá fora, tá todo mundo na merda, viu? Às vezes tenho paciência não, tu sabe.

Tu sabe tanto de mim. Aliás, tu sabe tudo. Tanto que eu fico pensando se preciso mesmo dizer as coisas pra ti. Porque pode ser que tu já saiba e esteja só desconversando, sei lá. E tem coisas que a gente nem precisa dizer, tá lá, na cara. Melhor talvez deixar como está.

Cadê? Tô aqui na bilheteria. Você veio. Tá linda. Com um vestidinho azul claro, um casaco marrom. Dá pra ver que tá meio afobada, fica mexendo o tempo todo na bolsa e fazendo cachinhos no cabelo. E já deve mesmo saber de tudo. Ah, com certeza sabe. Do jeito que eu te olho, tem como não. É, pra que ficar falando, né? Deixa pra lá.