Bajulação e subserviência pautam a atual diplomacia brasileira

O governo Bolsonaro apressa-se em submeter a política externa exclusivamente aos interesses de Washington.

Por Celso Amorim*

Entidade denuncia a submissão de Bolsonaro à Donal Trump I Foto: Alan Santos/PR/Agência Brasil

É tentador não ver nas manifestações de certos atores políticos nada mais que um exotismo sem sentido, um conjunto de bizarrices de alguém que digeriu mal teorias sobre ascensão e queda das civilizações e que alia a essa característica uma obstinada tendência à bajulação e à subserviência.
Não se trata só de ignorância histórica, bizarrice, exotismo ou pendor à subserviência

E é verdade que esses elementos estão presentes na diplomacia do atual governo brasileiro e nas declarações desencontradas e incoerentes de ministros, gurus e familiares. Muitas delas vêm logo seguidas de desmentidos ou reinterpretações que amenizariam um pouco seu sentido mais pernicioso. Tem sido o caso em relação ao uso da força para a mudança de regime na Venezuela.

Quando se olha para as ações e os fatos, logo se percebe, porém, que não cabe aqui nenhuma leitura inocente do rumo infeliz que a nossa política externa tem tomado. Para além do alinhamento automático, ou como partes dele, as atitudes que o Brasil vem tomando, além de irracionais e incompatíveis com nossa tradição diplomática, têm buscado, de forma sistemática, contribuir para um projeto consistente do “Estado profundo” de Washington em relação à ordem internacional.

Mudança de posição quanto ao conflito Israel-Palestina, vitupérios à China, ameaças à Venezuela e destruição da Unasul, substituída por um vago projeto de fórum conservador, o Prosul, são peças de uma estratégia para remodelar a estrutura de poder que se vinha formando em nível mundial.

Passada a Guerra Fria, depois de um período relativamente curto, em que a hegemonia dos Estados Unidos não era contestada, foi-se configurando, no fim do século passado e início deste, um mundo multipolar, sem uma potência claramente dominante. A Europa, sobretudo antes do Brexit, aparecia como um competidor econômico de primeira grandeza em relação aos EUA. A Rússia reerguia-se depois do cambaleante período de Boris Yeltsin. Países em desenvolvimento como Índia, Brasil e África do Sul articulavam novas alianças. Em nossa região se sucediam intentos de organização política sem tutela externa, como a Unasul e a Celac.

A tudo isso se somava a espetacular ascensão econômica da China, que alterou profundamente o tabuleiro global. Mais recentemente, Pequim começou a dar forma política à sua crescente influência e o tem feito de maneira cuidadosa, buscando pragmaticamente defender seus interesses, sem confrontações, evitando impor seu próprio modelo político e econômico (e, muito menos, sua ideologia) aos países com quem desenvolve parcerias. Exemplo disso é a grande aproximação, recentemente selada com a visita de Xi Jinping a Roma, entre a China e a Itália, país membro do G-7 governado por uma coligação populista conservadora.

O Brasil percebeu que lhe seria vantajosa uma ordem mundial que não estivesse sob o comando de uma única potência. Nesse contexto, contribuiu com iniciativas como o Ibas, a Aspa, a Unasul e os BRICS para fortalecer a multipolaridade. Isso permitiu ao nosso país atuar com desenvoltura em foros como o G-8 ampliado e, posteriormente, o G-20, bem como nos foros econômicos tradicionais.

Alguns presidentes norte-americanos compreenderam a importância dessas transformações e até viram vantagens em uma liderança compartilhada. O presidente Barack Obama cunhou a expressão “leading from behind”. E muitos analistas norte-americanos defenderam uma estrutura de poder diversificada, em que os Estados Unidos continuariam a ser o “sócio maior”, mas não hegemônico.

Estrategistas dos setores militares e de inteligência, bem como parte importante dos detentores do capital financeiro, não apreciaram essa perda relativa de poder. Uma contraofensiva foi lançada, buscando restaurar a hegemonia de Washington, ao mesmo passo em que, com a chegada de Donald Trump, se desvalorizou a normatividade internacional, vista como entrave à busca agressiva de interesses nacionais específicos e duvidosos.

Trump encontrou no atual presidente brasileiro um parceiro nessa empreitada. O Brasil, admita ou não a nossa elite, tem, por suas dimensões e características do seu povo, peso na região e no mundo. A desconstrução da Unasul, ao debilitar a integração da América do Sul, é um passo na reafirmação da dominação norte-americana. O controle dos recursos naturais (sobretudo energéticos) do continente nunca deixou de ser um objetivo da superpotência. Não à toa, volta-se a proclamar com fanfarra a velha doutrina de Monroe. Uma América do Sul e América Latina subordinadas ao controle de Washington é um aspecto essencial da reconstrução de uma ordem mundial mais submissa ao “America First”.

Qual será o próximo alvo dessa desconstrução, naquilo que nos concerne mais de perto? Para mim, está claro que fóruns e alianças que acentuam a multipolaridade não são compatíveis com uma visão de mundo baseada na afirmação agressiva e não cooperativa do interesse próprio. O ataque aos BRICS, cuja próxima cúpula está agendada para se realizar no Brasil, em novembro, na verdade começou. É, aliás, neste contexto que a concessão do status especial de aliado extra-Otan ao Brasil deve ser vista. Mas até novembro muita água pode rolar. A conferir.