Manuela sobre maternidade e trabalho: Minha meta não é ser um novo homem

Em entrevista ao jornal O Globo, a ex-deputada gaúcha, liderança nacional do PCdoB, Manuela d'Ávila fala sobre maternidade, militância e trabalho, recortes do seu livro "Revolução Laura" que está sendo lançado em diversas cidades do país. Na obra, Manuela revela seus sentimentos e histórias sobre as viagens que fez pelo país em campanha presidencial acompanhada de sua filha pequena Laura e o que representou esse ato.

Manuela dÁvila e sua companheira e filha, Laura - Foto:Ilustração Lari Arantes sobre reprodução Instagram

Leia a íntegra da publicação a seguir:

Viajar o Brasil com uma menininha a tiracolo não é tarefa fácil. Ainda mais em uma campanha eleitoral polarizada. Mas o que uma mãe candidata deveria fazer? Deixar a criança de três anos em casa, abrir mão do trabalho ou levar a filha com ela? Manuela D’Ávila levou a pequena Laura em suas andanças. Recebeu olhares de reprovação e agressões, mas muito mais gestos de sororidade e apoio. Acredita que serviu de inspiração para outras mães e mulheres ocuparem o espaço público.

Essa empreitada é contada no livro "Revolução Laura", que a ex-deputada federal, estadual e vereadora gaúcha do PCdoB está lançando. Nele, ela recorda sua experiência com a filha quando foi candidata à vice-presidência na chapa de Fernando Haddad (PT).

O Globo: Como surgiu a ideia do livro?

Manuela d'Ávila: Eu já compartilhava coisas no Instagram, escrevia textos. Só que, durante o processo eleitoral, o fato de eu ser uma candidata com uma filha fez com que a Laura existisse para o mundo. Eu tenho uma amiga editora que me disse que seria difícil que essa história voltasse a se repetir: uma mulher jovem e ainda amamentando a filha. Ela me convenceu a escrever. Tentei retratar histórias que tinha anotado e retomar as partes mais memoráveis. Como o livro não tem a pretensão de ser um diário, ele vai e volta no tempo, principalmente sobre o período de campanha, mas com reflexões anteriores.

Você abriu mão de sonhos profissionais por causa da maternidade?

Sim, neguei uma candidatura à prefeitura de Porto Alegre em primeiro lugar para ser mãe. As pessoas diziam que na hora H eu mudaria de ideia, que eu ia, sim, concorrer, mas desde que ela nasceu eu sabia que não ia. Bebezinho é uma relação diferente de uma criança de dois anos. As necessidades biológicas, a amamentação exclusiva… Depois ela é mais independente, você pode conversar.

Como foi viajar com a Laura durante a campanha? Quem te ajudava?

Eu organizava toda a minha agenda a partir da nossa vontade compartilhada. Se ficava mais de duas noites fora, a levava comigo. Nunca tive babá. As pessoas do entorno, do partido, que estavam ali na campanha, me ajudavam a cuidar dela. Meu marido (o cantor, guitarrista e compositor Duca Leindecker) não viajava junto. Ele me apoiava, foi presente o tempo todo desde sempre. Já o conheci sendo pai (Duca é pai de Guilherme, do casamento anterior) , ele já veio com test-drive (risos) .

O que a presença de Laura representava no meio de uma campanha?

Mudei a forma de fazer a agenda. Não é a mesma coisa que um candidato que viaja sozinho. Por exemplo, eu tinha que fazer um intervalo de almoço ao meio-dia, não dava para comer qualquer coisa mais tarde, ela tinha que almoçar. Se eu saía cedo, tinha que chegar cedo. Era tudo organizado a partir dela. O carro em que andávamos tinha que ter a cadeirinha, fruta e iogurte. Viver com uma criança foi uma mudança de cultura para quem trabalhava na campanha. Para a maioria das pessoas, a questão é se a criança tem com quem ficar ou não tem. É isso, mas não é só. São relações de afeto. E os homens que abandonam suas casas, que ficam dez, 15 dias sem cuidar de um filho? Isso chama abandono afetivo.

Você sentia mais apoio ou mais preconceito?

Eu não sei. Deve existir muita gente que ficou acovardada de dizer as coisas no decorrer do processo. Essa foi a parte que valeu para mim. Um dia, um homem começou a dizer: "Será que não tá demais?" E eu respondi: "Olha, acho melhor não puxar esse assunto. Não aceito mais que debatam isso, eu não discuto a vida privada de ninguém." Os homens têm que respeitar esse espaço, nosso corpo é político.

Geralmente, mesmo que tenha um filho recém-nascido, os homens não costumam ser cobrados por se candidatar, trabalhar e viajar. Com as mães é diferente. Você sentiu isso?

Eu fui cobrada por não ser candidata a prefeita. Mas eu dizia que os homens tinham que ser cobrados pela ausência deles. Minha meta não é ser um novo homem. Como diz um ditado lá do Sul, "não me mede pela sua régua". A régua que mede os homens na política não é a régua pela qual me meço. A paternidade ausente significa também uma mulher ausente do espaço público, porque ela está dentro de casa. Não é esse o feminismo que eu busco. A minha viagem eram duas passagens aéreas. Se fosse a primeira-dama de um candidato, alguém contestaria a presença dela? Mas com uma criança não. O que deveria ser natural era estranho, mas ao mesmo tempo foi muito lindo. A Laura me salvou. Acho que não teria sobrevivido emocionalmente a essa eleição se não fosse ela. Mas eu só consegui me manter com a minha filha porque milhares de mulheres me apoiaram.

Como foi a recepção das pessoas à presença da Laura?

Foi muito bonito porque foi a maior transformação. No início me olhavam com uma cara horrorosa. Lembro de uma mulher dizer: "Ela vem com criança?" Várias vezes eu chegava no hotel exausta, dizendo a mim mesma que estava louca, porque tinha que dar banho na Laura, ver desenho, ter meu tempo com ela. Mas, no meio da campanha, tudo começou a mudar. As mulheres passaram a trazer suas crianças. Essas mulheres iam aos debates, levavam brinquedos e comida para a Laura. Lembro de uma deputada de Minas Gerais que organizou uma comitiva para que mulheres levassem suas crianças. E todas ficaram brincando no fim do auditório. Levaram glitter, massinha de modelar, livros… Eu estava no Nordeste, e uma menina de nove anos trouxe uma Barbie negra. Mudou tudo, foi a coisa mais linda da minha vida.

Você acha que houve uma onda de sororidade?

Sim, gigantesca. Eu faço política desde os 17 anos e nunca imaginei que pudesse criar laços tão profundos com quem não conheço. Cheguei em Recife, e uma pessoa tinha viajado 150 quilômetros para levar massinha de modelar porque sabia que eu ia estar com a Laura! Ainda hoje as pessoas se preocupam em achar um livro para que ela comece a gostar do cabelo. Sou abençoada. Recebi o oposto do processo eleitoral, das fake news, essa loucura. Eu acabei vivendo uma outra parada, de acolhimento e de afeto.

Você teve medo que o ódio visto na campanha eleitoral afetasse a Laura?

Minha vida é assim há muito tempo. Quando a Laura tinha 45 dias, estava enrolada no sling, e uma mulher começou a bater nela porque achava que o sling tinha sido comprado em Miami e não em Cuba (na época, circulou uma notícia falsa dizendo que Manuela havia ido aos Estados Unidos para fazer o enxoval da menina) . Depois que a Laura parou de mamar, eu achava que ela estava mais segura comigo, porque tinha seguranças e gente em volta. Comecei a acreditar que eu a protegia mais da violência física, que ser um rosto conhecido a protegia. Agora, com três anos e meio, seria mais seguro para ela ficar em casa e na escolinha? Não existe não saber quem ela é. Tem gente que me reconhece por causa da Laura.

E a Laura? O que ela acha dessas viagens com a mãe?

Sempre me disseram que criança tem que ter rotina. Viajar faz parte da rotina dela. Um dia, Laura me disse que não queria ir, mas na manhã seguinte fez uma malinha e falou: "quero ir". Fui construindo uma rotina com a minha filha, e as viagens são parte de uma rotina nossa. Fiz um esforço grande para que a gente tivesse uma vida só dela. Nunca viajei sem ter um programa meu com a Laura. Em Aracaju, fomos ao projeto Tamar. Em Salvador, parte da agenda era ficar na praia com ela. A gente combinou que pode pular na cama de hotel, que o café da manhã é programa nosso e que ela sempre pode levar uma mochila de brinquedo. Laura continua viajando comigo para divulgar o livro.

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, vem sendo apontada como um novo exemplo de liderança. Ela teve uma filha durante o exercício do cargo e proibiu a venda de armas semiautomáticas no país após o atentado terrorista que deixou cinco mortos. Você acredita nessa mudança?

Eu acho que existem duas coisas acontecendo no mundo. Uma são essas masculinidades tóxicas, o tipo mais grosseiro e menos empático surgindo com força. E há o oposto disso: mulheres que exercem o poder com o exercício do feminino, não reproduzindo a lógica masculina, como fazem a Jacinda e a prefeita de Barcelona, Ada Colau. Isso é como a luz no fim do túnel. Tenho esperança nesse levante de mulheres percebendo a força que nós temos, o nosso exercício do poder a partir do que temos de único, de melhor. É uma denúncia a um sistema em crise: é possível ocupar o espaço púbico com doçura e com afeto. Jacinda chamou atenção não só porque é jovem, mulher e mãe. Mas porque conseguiu olhar para os filhos dos outros com dignidade e acolhê-los. O olhar dela é o de quem consegue ser empática.