Crime político de Marielle é um marco irreparável na história do Rio

 Debate essencial na cidade, à luz da execução de Marielle, é sem dúvida o desmantelamento das redes da milícia.

Por Tainá de Paula*

Rio de janeiro intervencao

Estamos em 14 de março, um ano desde a execução da vereadora Marielle Franco. Após um ano de intervenção militar federal, que inclusive era acompanhada pela vereadora em seu exercício parlamentar, cabe uma retrospectiva sobre o histórico da violência de Estado e sua relação com os territórios na cidade do Rio de Janeiro. E fica a pergunta: por que o Rio de Janeiro foi a cidade que executou uma parlamentar negra defensora dos direitos humanos?
A primeira reflexão a ser feita é como a violência e a promoção de uma cultura punitivista e militarizada perpetuaram a leniência por parte da população fluminense, sob a justificativa que existiria uma guerra em curso contra determinados sujeitos e territórios, que estariam em “áreas do crime”. Os esquadrões da morte originados na época do Regime Militar no Brasil e que se enraizaram no interior do Estado e mais substancialmente nos anos 70 na Baixada Fluminense, foram o laboratório do controle social paramilitarizado de determinados territórios.

Historicamente, o Rio de Janeiro assistiu a extermínios e chacinas em periferias e a institucionalização do crime tem origem na violência policial e na impunidade no período da ditadura militar, porque, dada a participação direta ou indireta de servidores ligados à Secretaria de Segurança Pública e ao Judiciário, os agentes do crime tinham certeza de que não seriam punidos.

Passados os anos e com a cultura da violência de Estado perpetuada em todo o sistema policial, paralelo a ampliação das fronteiras dos “negócios” que orbitavam a execução de indivíduos julgados pelo poder paralelo ao Estado: o que se inicia com a execução dos inimigos criminosos da sociedade passa a ser a venda de execuções a varejo, bem como a venda do poder político de benefício mútuo e de proteção por meio do corporativismo policial. A população e o Estado nada fizeram.

A exploração de atividades econômicas ilegais (tráfico de drogas e armas, roubo de carros, venda de proteção policial, exploração de jogos ilegais, prostituição, tráfico de influência e outros) foi o próximo passo, à medida que os criminosos “inimigos”, até então o tráfico de drogas, criou uma estrutura próxima aos cartéis, aumentando escala e “profissionalizando” sua própria proteção através de compra de armamento do próprio aparato armado do Estado (Exército, polícia militar, etc).

Os esquadrões da morte foram se reformulando, frente às novas dinâmicas territoriais e retroalimentando o tráfico de drogas, permitindo armamentos, recebendo propinas e crescendo a rede criminosa tráfico-milícia, indissociáveis na perspectiva de qualquer especialista em segurança pública.

A partir da CPI das milícias na Assembleia Legislativa do Rio em 2008, presidida por Marcelo Freixo e com relatoria de Gilberto Palmares, uma nova dimensão é descortinada no Rio, o aparelhamento do Estado por milicianos, associações de moradores e executivo do Rio de Janeiro. Tanto Câmara de Deputados quanto Câmara de Vereadores – dois locais de trabalho da vereadora – são alvo de denúncias envolvendo policiais da ativa, ex-policiais e políticos.

Nomes históricos da milícia carioca criam ao longo dos anos uma verdadeira bancada da bala, com lideranças como Geiso do Castelo e Nadinho de Rio das Pedras (ambos da zona oeste do Rio de Janeiro), Cristiano Girão, Jerominho e Carminha Gerominho se alinham com nomes mais novos na política, como o Major Elitseu Freitas, Marcelo Siciliano e Carlos Bolsonaro, todos vereadores exercendo mandato na cidade do Rio de Janeiro. Os dois primeiros investigados por associação à grupos de milicianos no Rio.

Nesse sentido, é possível traçar um mapeamento dos territórios paramilitarizados, relacionando as ocorrências das ações dos milicianos e cruzando com os territórios de atuação das figuras políticas da bancada da bala. Mas por que o interesse em assumir cargos legislativos? Além do aparato de cargos e benefícios do Estado, a milícia opera muito no mercado da construção civil irregular. É fundamental o controle, portanto, do uso do solo e as negociações acerca da regulação urbanística a ser aprovada pela Câmara. A milícia do Rio de Janeiro assumiu um papel de definidora da norma urbana e prova disso foi a aprovação unânime da bancada sobre a reformulação do Código de Obras, que atende prioritariamente o mercado imobiliário formal e informal do Rio (onde se inserem os milicianos).

De forma mais contundente a partir de 2011, quando do assassinato da juíza Patrícia Acioli, responsável pela prisão de mais 60 milicianos, é revelado o enraizamento do poder paramilitar no Estado do Rio de Janeiro e o então escritório do crime, assim como outros grupos de milicianos em atuação no Rio. Cria-se também um fato político que mudaria o cenário político local: a insegurança dos defensores de direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro.

Sem dúvida, o crime político de Marielle Franco se torna um novo marco irreparável na história da cidade, onde a militarização dos territórios se mostra ineficaz e inócua frente aos verdadeiros desafios: como quebrar a cadeia endêmica de corrupção do braço policial do Estado? Como estabelecer políticas públicas de segurança que foram forjadas na retirada de direitos e na construção de uma prática de extermínio institucionalizada?

Se formos analisar as ações policias do período da intervenção militar federal e os registros de ocorrências policiais no Disque Denúncia, veremos uma completa inversão na perspectiva do método empregado para a escolha dos territórios. O relatório da intervenção mapeou 490 ações policiais, todas em territórios dominados pelo tráfico de drogas.

Porém, se observamos o mapeamento das ocorrências a partir do Disque Denúncia estadual, veremos que quase 70% do território do Rio é dominado por ações de milicianos, que também gerenciam o tráfico de entorpecentes, roubo de cargas, etc. Por que foram alocados em um ano de intervenção o equivalente a 120 milhões de reais (o previsto era o equivalente a 1,2 bilhões) em 711 operações que miravam apenas 30% do problema?


Mapa publicado no relatório parcial do Observatório da Intervenção 2018


Mapa publicado no relatório parcial do Observatório da Intervenção 2019

O debate essencial no Rio de Janeiro, à luz da execução de Marielle, é sem dúvida o desmantelamento das redes da milícia. A intervenção militar peca em lidar com pressupostos metodológicos que já não representam a realidade do Rio de Janeiro. A milícia domina os territórios. E o enfrentamento à milícia não deve ser militarizado, mas através de uma grande reforma da prática e da administração das forças policiais, como bem apontou Luis Eduardo Soares e outros especialistas da área de segurança pública no Rio.

Num cenário de negação dos direitos por parte do aparato policial, é preciso entender como Marielle sintetiza o “novo inimigo comum”. Se em sua origem os milicianos se organizaram para vender uma falsa paz aos territórios, escolhendo quem vivia e morria e com a chancela da população, em sua nova fase a milícia assume um projeto de poder com recortes ainda mais violentos: decide também eliminar seus algozes políticos, formatando o seu projeto de poder. O mapa de figuras públicas executadas publicado em 2016 pelo El Pais Brasil retrata o cenário de violência e atuação da “nova” política fluminense. No período pré-eleitoral foram assassinadas 11 figuras políticas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Numa perspectiva de controle social e biopoder (técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações), a milícia do Rio se perpetua em sua impunidade e abre frentes no aparato do Estado, tentando eliminar vozes discordantes das suas práticas. Nesse sentido, Marielle é sem dúvida mais uma vítima do avanço em curso de um projeto de poder motivado por lógicas torpes, que maculam de forma irreversível em curto prazo as esferas de participação e democracia no Estado.

Temos que nos debruçar nos custos reais e nos custos simbólicos de uma perda de uma ativista dos direitos humanos em exercício parlamentar, mulher e negra. O recorte da violência de gênero, presentes tanto na execução de Marielle quando na execução de Patrícia Acioli, dão o caráter instrumental dessas mortes: os tiros no rosto e a forma de abordagem violenta reforçam a tentativa de eliminação dos limites simbólicos das duas figuras públicas em questão.

É fundamental garantirmos a resolução do caso, com o nome dos mandantes e motivação (mesmo que torpe) revelada. A partir desse caso, é fundamental redirecionarmos a lógica de enfrentamento nos territórios e encarar a modernização da estrutura arcaica das polícias no Rio e no Brasil. À luz da observação nos mapeamentos realizados, os “inimigos do Estado” deveriam ser prioritariamente o ingresso de armas e os grupos de extermínio. Por que até hoje não fizemos uma política de fronteiras e união de forças militares para impedir o armamento nos territórios? É necessária uma revisão completa na escolha dos territórios das operações policiais à luz dos reais inimigos.

É necessário corrigir a frase que ganhou o mundo, dita por Marielle Franco em vida: quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? Infelizmente não é guerra. É um projeto de poder em execução. É necessário o esclarecimento público das ligações do presidente e sua família com o Escritório do Crime no Rio de Janeiro e demais membros do crime organizado do Rio de Janeiro.