União Soviética: Algumas notas sobre Domenico Losurdo

Carlos Lopes – Hora do Povo

URSS

O primeiro de maio em Odessa (quadro de Sergey Luppov, final da década de 20)

Quando apareceu, em português, “Stalin: História crítica de uma lenda negra”, de Domenico Losurdo, publicamos a resenha de um dos nossos redatores, em que eram ressaltadas as qualidades (todas reais) do livro.

Mais tarde, escrevi um brevíssimo comentário, de passagem, em “A debacle da pseudo-esquerda e o renascer da humanidade”, que não era tão favorável (“Hoje, após a queda da URSS, é mais fácil de perceber o que significou o ataque a Stalin – na verdade, um ataque ao marxismo. Até mesmo um neo-hegeliano na tradição de Benedetto Croce, como Domenico Losurdo, escreveu um livro interessante sobre Stalin e o anti-stalinismo”, etc.).

Há um mês, ao procurar alguns materiais sobre a crise no partido bolchevique, quando da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, em março de 1918, topei com o livro de Losurdo – e acabei relendo-o.

O que vem a seguir são algumas observações sobre as dificuldades do livro – isto é, sobre aquilo que, a meu ver, são suas debilidades principais – sem nenhuma pretensão (até porque seria inútil) de esgotar uma discussão que pode ser bastante profícua.

Mas, antes, é preciso dizer que o livro de Losurdo, provavelmente, foi (e ainda é) bastante útil em certos meios – sobretudo o meio acadêmico – cuja ideia sobre a personalidade (aqui, uso propositalmente esta palavra) de Stalin é tão fantasiosa que se assemelha àquela do falecido Carlos Penna Boto, apenas com alguma tintura, supostamente, “de esquerda”.

O livro de Losurdo é tardio. Quando surgiu na Itália, em 2008, uma série de obras sobre o mesmo tema já haviam sido publicadas, algumas anteriores ao colapso do revisionismo na URSS, e, sobretudo, posteriores. Somente para registro, como amostra, Maurice Hartmann publicou “Staline” em 1979; Claudio Campos, “A História Continua”, em 1992; Harpal Brar, “Trotskyism or Leninism?”, em 1993; Ludo Martens, “Un Autre Regard Sur Staline”, 1994.

É possível ir mais atrás, até mesmo através de um autor anticomunista (um russo “branco”, naturalizado inglês) como Alexander Werth, correspondente da BBC na URSS durante a II Guerra Mundial, que publicou “Russia At War, 1941-1945: A History” em 1964.

Werth detestava Stalin, mas seu relato sobre a guerra deixa muito mal Kruschev – e não Stalin. Inclusive pela menção à segunda batalha de Kharkov, em que a atuação de Kruschev foi desastrosa, algo confirmado depois pelo chefe de Estado Maior do Exército Vermelho durante a guerra, marechal Aleksandr Vasilevsky (v. suas memórias, “La Causa de Toda Mi Vida”, Progreso, Moscou, 1979).

É verdade, a menção de Werth é sutil. Mas está no livro.

Menos sutil é sua referência a como Kruschev, em 1961, deu a Kiev o título de Cidade Herói da URSS.

Stalin concedera o título apenas a Leningrado, Sebastopol, Odessa e Stalingrado, pelo heroísmo em massa da população dessas cidades na luta contra o invasor nazista. Werth registra a reação dos militares soviéticos ao acrescentamento de Kiev: “Nos quartéis essa decisão foi duramente criticada, um coronel, que tinha lutado durante toda a guerra, disse-me: ‘Cidade herói é o cacete! Foi uma das nossas piores debandadas’ (Hero city, my foot! It was one of our worst skedaddles)”.

Os dois acontecimentos – a derrota na segunda batalha de Kharkov, que abriu o caminho do 6º Exército alemão para Stalingrado, e a queda de Kiev, principal cidade da Ucrânia, onde Kruschev era o principal dirigente – são descarregados, no “relatório secreto” ao XX Congresso do PCUS, em fevereiro de 1956, exclusivamente na conta de Stalin.

No primeiro caso, Vasilevsky, em 1978 (trad. esp.: 1979), esclareceu as responsabilidades; no segundo, como disse Stalin a Zhukov – que propunha o abandono de Kiev, por indefensável, e a passagem do Exército Vermelho para a outra margem do Dnieper – a questão decisiva era ganhar tempo.

Apesar de todo o sofrimento humano (ou por causa dele), isso foi conseguido – a tal ponto que “na opinião de alguns dos principais generais alemães, o tempo desperdiçado na operação de Kiev perturbou em grande parte os planos do Alto Comando Alemão de chegar a Moscou antes que o inverno se instalasse. Assim, Halder considerou que a Batalha de Kiev foi o maior erro estratégico na campanha do Leste, uma opinião compartilhada por Guderian, que falou da Batalha de Kiev como uma grande vitória tática, mas duvidava que grandes vantagens estratégicas tenham derivado dela” (Werth, op. cit.; sobre a discussão, a respeito de Kiev, entre Stalin e Zhukov, v. as memórias deste: “Memorias y Reflexiones”, Progreso, Moscou, 1990).

Além de “Russia at War”, Alexander Werth também é autor de “Moscow 41”, livro importante, entre outras razões, pelas evidências da conspiração de Tukhachevsky dentro do Exército Vermelho – uma das que, segundo Kruschev, foram inventadas por Stalin (ou pela paranoia de Stalin).

Mas, por que nos detivemos nos livros de Werth?

Por duas razões.

A primeira é que até mesmo um homem tão avesso ao socialismo, à URSS, e, especialmente, a Stalin, foi capaz de enxergar, já em 1964 (e mesmo antes, pois “Moscow 41” foi publicado em 1942), algumas coisas importantes, que a reação kruschevista passou a negar.

A outra é que Alexander Werth é o pai de Nicolas Werth, um dos autores do “Livro Negro do Comunismo”, obra que, entre outras coisas, concluiu que o comunismo matou 85 milhões de pessoas, enquanto o nazismo “apenas” 25 milhões.

Não se trata da prova de que a honestidade (e a inteligência) não é genética; esse segundo Werth é um dos autores mais citados por Domenico Losurdo – e já veremos o que isso significa.

PRINCÍPIO

Losurdo não é um autor preciso. Em seu livro existem algumas coisas – por exemplo, Kerensky, um social-revolucionário, é chamado, repetidamente, “líder menchevique” – que mostram pouca preocupação com a exatidão em detalhe dos fatos.

Mas isso são defeitos no varejo.

A principal debilidade de “Stalin: História crítica de uma lenda negra” é o uso – a nosso ver, tão abusivo quanto desnecessário – do que ele chama, em empréstimo à literatura jurídica, “princípio do tu quoque”.

O nome é derivado da frase que Júlio César teria dito, ao ver entre seus assassinos o jovem Marcus Junius Brutus – “tu quoque Brutus filie mi!” (você também, Brutus filho meu!) -, segundo algumas testemunhas (cf. Suetônio, As Vidas dos Doze Césares).

Em Direito, o “tu quoque” significa que uma parte que desrespeitou os termos de um contrato não pode exigir de outra o respeito aos termos do contrato.

Mais sinteticamente: para exigir boa-fé de outra pessoa é necessário que quem exige também esteja de boa-fé.

Ou, ainda de outra forma: não é possível usar dois pesos e duas medidas em uma relação contratual.

Quando esse princípio não é respeitado, instala-se um evidente “desequilíbrio contratual” entre as partes (para o leitor interessado no assunto, v. Teresa Negreiros, O princípio da boa-fé contratual, in Maria Celina Bodin de Moraes (org.), Princípios do Direito Civil Contemporâneo, Renovar, Rio, 2006, pp. 221 a 253).

O problema desse princípio, quando transferido para a luta política, é que ele é, exatamente, um desdobramento ou consequência do “princípio da boa-fé”, pelo qual “o contrato há de ser interpretado sob o pressuposto de que foi celebrado por ambas as partes com boa-fé” (Teresa Negreiros, op. cit, p. 229).

Infelizmente, na luta política não se pode esperar tanta boa-fé de ambas as partes.

Aliás, muito menos nos negócios, como diz a mesma jurista brasileira que citamos: “Se no mundo dos negócios fossem as pessoas, em geral, honestas, confiáveis e leais, a consagração expressa do princípio da boa-fé contratual no Código Civil de 2002 teria passado despercebida. Lamentavelmente, porém, o agir com boa-fé, hoje um comando normativo expressamente consagrado em um dos dispositivos de maior ressonância do Código Civil de 2002 (art. 422), revela-se cada vez menos frequente, tanto na esfera dos negócios exclusivamente privados, como no trato da coisa pública. A extraordinária simpatia alcançada nos últimos tempos pelo caráter potencialmente transformador do princípio da boa-fé aparece, por isso e antes de mais nada, como um índice da escassez de comportamentos e atitudes que, na prática contratual, expressem concretamente o ideal da boa-fé” (idem, pp. 221-222).

Se assim é na prática cotidiana dos negócios em uma sociedade capitalista, imaginemos sua amplificação, na política mundial – que gira, precisamente, enquanto exista o capitalismo, em função dos grandes negócios (e até dos pequenos, que giram em torno dos grandes).

SISTEMA

Seguindo Losurdo, se transferido para o nosso tema, o “princípio tu quoque” tornaria inválidas as acusações de crime contra Stalin e os comunistas, porque os acusadores – capitalistas e imperialistas, incluindo os nazistas – cometeram esses crimes.

Logo, não podem exigir que Stalin e os comunistas não os cometessem….

Diz Losurdo:

“Não poucas vozes se elevaram no campo dos vencedores a recomendar ou a exigir uma espécie de Nuremberg anticomunista; e é essa orientação que inspira a ideologia e a historiografia dominantes. É sabido que, durante o processo de Nuremberg, foi negada aos réus nazistas a possibilidade de valer-se do princípio do tu quoque, ou seja, de partir dos crimes contestados para chamar a atenção para os crimes semelhantes cometidos pelos seus acusadores. Do mesmo modo se desenrola o processo de Tóquio. Certamente, é a justiça do vencedor” (Losurdo, op. cit., p. 315).

E, logo adiante:

“É evidente que um juízo histórico é impensável sem a reconstrução do clima do tempo: comparatística e recurso ao princípio do tu quoque são absolutamente inevitáveis. É à luz desses critérios que pretendo analisar a costumeira criminalização dos acontecimentos iniciada com a Revolução de Outubro e em particular de Stalin” (idem, ibidem, grifo nosso).

A seguir, Losurdo tenta aplicar esse princípio:

“Não há dúvida de que, a partir sobretudo da coletivização forçada da agricultura, o universo concentracionário, que já tinha começado a tomar forma logo depois da Revolução de Outubro, conheceu um desenvolvimento medonho. Mas também nesse caso façamos valer o princípio do tu quoque”.

Vêm, então, menções ao “universo concentracionário” no sul dos EUA, aos massacres e torturas dos ingleses no Quênia, durante a revolta mau-mau, ao massacre dos comunistas na Indonésia, ao genocídio dos maias na Guatemala, etc.

Diz Losurdo, quase como uma queixa, que “também no que diz respeito às práticas genocidas, mais do que nunca desenvoltas, a acusação não faz valer o princípio do tu quoque” (grifo nosso).

É verdade. Mas toda essa aplicação do “princípio do tu quoque” serve apenas para chegar à conclusão de que:

“… a costumeira oposição entre movimento comunista, de um lado, e Ocidente liberal, do outro, faz abstração, no que diz respeito a este último, da sorte reservada aos povos coloniais ou de origem colonial e das medidas aprovadas em situações de crise mais ou menos aguda” (p. 321).

Não é uma conclusão brilhante. Nem original. Embora seja, evidentemente, correta.

Mas o problema está no que se concedeu, para chegar a ela.

Pois, para isso, passou-se por cima de indagar se os “crimes” de que Stalin e os comunistas são acusados constituem uma verdade – ou são mero material de repugnante propaganda para enganar as pessoas através do horror.

Por exemplo, a expressão “universo concentracionário” (que é como Losurdo denomina o sistema de prisões e campos de trabalho na URSS), repetida 32 vezes no livro, remete mais a “campo de concentração” do que a uma realidade da época de Stalin.

No entanto, para seu mérito, é o próprio Losurdo quem escreve:

“O sistema carcerário reproduz as relações da sociedade que o exprime. Na URSS, dentro e fora do Gulag, vemos fundamentalmente em ação uma ditadura desenvolvimentista que procura mobilizar e ‘reeducar’ todas as forças em função da superação do atraso secular, tornada mais urgente ainda pela proximidade de uma guerra que, por declaração explicita do Mein Kampf, quer ser de escravização e de aniquilamento. Nesse quadro, o terror na URSS se entrelaça com a emancipação de nacionalidades oprimidas, bem como com uma forte mobilidade social e com o acesso à instrução, à cultura e até a postos de responsabilidade e de direção por parte de estratos sociais até aquele momento totalmente marginalizados. A preocupação produtivista e pedagógica e a mobilidade conexa se fazem notar, para bem e para mal, até dentro do Gulag. (…) O detido no Gulag é um potencial ‘camarada’ obrigado a participar em condições de particular dureza no esforço produtivo dentro do pais e, depois de 1937, é um potencial ‘cidadão’, embora se tenha tornado sutil a linha de demarcação do inimigo do povo e do membro da quinta coluna, que a guerra total no horizonte, ou já em curso, impõe que se neutralize (…)” (cf. op. cit., pp. 166-167).

Em 2008, quando apareceu o livro de Losurdo, os arquivos soviéticos já estavam abertos desde 1989 – portanto, havia 19 anos – e desde 1993 já se sabia que os números sobre presos e fuzilados na época de Stalin, que a propaganda imperialista martelara durante décadas, eram fantasiosos.

Mas disso não há sinal no livro de Losurdo, que, ao repetir quase infinitamente a expressão “universo concentracionário”, acaba por reiterar essa fantasia.

Detenhamo-nos um pouco nessa questão.

NÚMEROS

Em 1989, Gorbachev encarregou a Academia de Ciências da URSS de estabelecer números definitivos sobre a repressão durante a época de Stalin. Esperava-se, evidentemente, um escândalo, pois era sabido que os registros eram rigorosos.

A equipe de historiadores que se encarregou da tarefa foi coordenada por Víktor Nikoláievitch Zemskov, com a participação de A. N. Dougin e O. V. Khlévniuk – todos eles historiadores importantes, e, também, todos com aversão à figura de Stalin (no caso do coordenador, Zemskov, a aversão era extensiva ao socialismo).

O resultado desse trabalho começou a ser publicado em 1990 e terminou em 1993, tomando cerca de nove mil páginas.

“A sovietologia ocidental”, lembrou depois Víktor Zemskov, entrevistado por um jornal direitista espanhol, “afirmava que 50 ou 60 milhões haviam sido vítimas da repressão, da coletivização, da fome, etc. Em 1976, Soljenítsin disse que entre 1917 e 1959 tinham morrido 110 milhões de pessoas” (cf. La Vanguardia, 03/06/2001).

“A realidade é que a população do país continuou aumentando mais de um por cento ao ano, superando o crescimento demográfico da Inglaterra ou da França. Em 1926 a URSS tinha 147 milhões de habitantes, em 1937, 162 milhões, em 1939, 170,5 milhões. Os censos são confiáveis – e os seus números são incompatíveis com matanças de dezenas de milhões.”

O historiador aponta o rigor dos registros soviéticos:

“Um só caso de um preso desaparecido durante um naufrágio ou afogado (as fugas dos campos eram muito frequentes, quase 400 mil presos fugiram entre 1934 e 1953, dos quais 38% não puderam ser recapturados) dava origem a todo um dossiê de documentos e correspondência. De tudo isto se informava regularmente a Stalin.”

Quais foram, então, os resultados da comissão da Academia de Ciências?

Segundo apuraram os historiadores, entre 1921 e 1953 – um intervalo de 32 anos – foram “reprimidas” (isto é, condenadas pelo artigo 58 do Código Penal: “atividade contrarrevolucionária e outros crimes graves contra o Estado”) cerca de 4 milhões de pessoas – uma média de 125 mil por ano.

As condenações à morte, incluídas nesses 4 milhões, no mesmo período de 32 anos, foram 799 mil e 455.

Entre 1934 e 1953, a população carcerária máxima que o sistema correcional soviético atingiu foram cerca de 2 milhões e 500 mil pessoas.

Mas, nesse caso, esse número inclui, também, os presos comuns.

Os presos por atividades contrarrevolucionárias variaram entre 104.826 (1937) e 578.912 (1950) – não se trata aqui dos que foram condenados nesses anos ou presos nesses anos, mas do total que permanecia preso nesses anos.

Isso, para um país sob cerco e com uma acirrada luta de classes em seu interior.

Não vamos, aqui, usar alguma variante do “princípio tu quoque” e comparar esses números com, por exemplo, os números penitenciários dos EUA.

Em vez disso, comparemos esses números com aqueles apresentados na literatura dita “sovietológica” – isto é, na propaganda anticomunista travestida de trabalho acadêmico.

Aqui, o principal autor a considerar, como apontou Cláudio Campos, é Robert Conquest.

“Segundo Robert Conquest (numa avaliação feita em 1961), tinham morrido 6 milhões de pessoas de fome na União Soviética no início dos anos 30.

“Esse número foi aumentado por Conquest para 14 milhões em 1986.

“No que diz respeito aos campos de trabalho Gulag, estavam ali detidos, segundo Conquest, 5 milhões de presos em 1937, antes das depurações no partido, no exército e no estado terem começado.

“Depois das depurações começarem, vieram segundo Conquest, durante 1937-38, mais 7 milhões de presos, o que faz um resultado de 12 milhões de presos nos campos de trabalho em 1939!

“E não esqueça o leitor que estes 12 milhões de Conquest são SOMENTE os presos políticos!

(…)

“Isto significa que, segundo Conquest, havia cerca de 25-30 milhões de presos nos campos de trabalho na União Soviética.

“Também segundo Conquest, foram executados, em 1937-39, um milhão de presos políticos, enquanto que 2 milhões morreram de fome.

“Resultado final das depurações de 1937-39 segundo Conquest: 9 milhões de presos políticos e 3 milhões de mortos!

“Esses números foram em seguida submetidos a ‘apreciações estatísticas’ por Conquest, para concluir que os bolcheviques tinham morto nada menos que 12 milhões de presos políticos entre 1930 e 1953.

“Juntando esses números aos mortos de fome nos anos 30, chega Conquest à conclusão de que os bolcheviques haviam morto 26 milhões de pessoas.

“Numa última apreciação estatística diz Conquest que em 1950 havia 12 milhões de presos políticos na União Soviética!” (cf. Mario Sousa, Mentiras sobre a história da União Soviética, 15/6/1998).

Não faremos a comparação com os números de outros heróis da canalha – por exemplo, Soljenytisin – pois correríamos o risco de descobrir que Stalin matou toda a população soviética, sem que se saiba quem sumiu com os cadáveres…

Como dizem três historiadores, escrevendo em outubro de 1993 na “The American Historical Review” – um deles o coordenador da comissão da Academia de Ciências da URSS que primeiro examinou os arquivos soviéticos:

“As bases para essas avaliações não são claras na maioria dos casos e parecem ter vindo de suposições, rumores ou extrapolações de observações locais isoladas. (…) o número documentável de vítimas é muito menor” (cf. J. Arch Getty, Gábor T. Rittersporn and Viktor N. Zemskov, Victims of the Soviet Penal System in the Pre-war Years: A First Approach on the Basis of Archival Evidence, The American Historical Review, Vol. 98, Issue 4, 1 October 1993, p. 1021).

Assim:

“No ano de 1939 havia em todos os campos, colônias e prisões cerca de 2 milhões de presos. Desses eram 454 mil condenados por crimes políticos e não 9 milhões como Conquest afirma.

“Os mortos nos campos de trabalho de 1937 a 1939 foram cerca de 160 mil e não 3 milhões como diz Conquest.

“No ano de 1950 havia nos campos de trabalho 578 mil presos por crimes políticos e não 12 milhões” (cf. Mario Sousa, op. cit.).

COMPARAÇÕES

Voltemos ao “princípio tu quoque”.

A História – a luta política – não acontece em um tribunal, onde há “paridade de armas”.

A aplicação do “princípio tu quoque” à luta política, depois de certo limite, redunda em uma confissão, em maior ou menor grau, inclusive falsa, dos supostos crimes de que os comunistas são acusados – aqueles que são, como acabamos de ver, invenções do inimigo.

Os acusadores não se sentem “desautorizados” porque são eles que cometeram esses crimes. Infelizmente, nesse campo, não há um juiz, isento e imparcial, que os coloque na linha.

A consequência do método de Losurdo é admitir, em maior ou menor grau, as acusações, exatamente o que necessita ser provado ou contestado – e que, como vimos, desde 1989 está sendo contestado pelos próprios arquivos soviéticos.

Assim, escreve Losurdo:

“Está, enfim, fora de discussão o caráter desapiedado da ditadura exercida primeiro por Lênin e depois, ainda mais, por Stalin” (cf. Stalin: História crítica de uma lenda negra, Revan, 2010, p. 326, grifos nossos).

Ou:

“Está fora de discussão o horror da punição coletiva, da deportação imposta a populações suspeitas de escassa lealdade patriótica” (idem, p. 36, grifo nosso).

Por que “fora de discussão”?

Isso é, exatamente, o que está – e foi colocado, há muito – em discussão.

Entretanto, Losurdo, estribando-se sobretudo no “princípio do tu quoque”, prefere considerar tais questões “fora de discussão”.

O contexto em que aparecem essas frases é, a esse respeito, esclarecedor:

“Um eminente historiador da revolução dos escravos negros em Santo Domingo [isto é, no Haiti] polemiza contra ‘a lenda corrente segundo a qual a abolição da escravatura se teria traduzido no extermínio dos brancos’; mas é incontestável que os massacres se verificaram de um lado e do outro. Tampouco há dúvidas sobre a brutalidade até aquele momento inaudita com que a guerra civil estadunidense foi travada pelo Norte, e em particular por Sherman, o qual se propõe explicitamente a atingir a população civil e ‘fazer a Geórgia ladrar’, e para o qual não por acaso Hitler parece olhar como para um modelo. Está, enfim, fora de discussão o caráter desapiedado da ditadura exercida primeiro por Lenin e depois, ainda mais, por Stalin” (grifos nossos).

Os “massacres” no Haiti necessitam prova. Não é possível resolver o problema apenas dizendo que “é incontestável”. Porém, além disso, há outro problema: não se pode igualar a violência do opressor – daquele que recorre à violência para manter a opressão – com a violência do oprimido – daquele que recorre à violência para se libertar da opressão.

Da mesma forma, por mais destruidora que tenha sido a campanha de Sherman contra os escravagistas na Geórgia, não há dúvida que:

“Quando uma oligarquia de 300.000 proprietários de escravos ousou inscrever, pela primeira vez nos anais do mundo, ‘escravatura’ na bandeira da Revolta Armada, quando nos precisos lugares onde há quase um século pela primeira vez tinha brotado a ideia de uma grande República Democrática, de onde saiu a primeira Declaração dos Direitos do Homem e de onde foi dado o primeiro impulso para a revolução europeia do século XVIII; quando, nesses precisos lugares, a contrarrevolução, com sistemática pertinácia, se vangloriou de prescindir das ‘ideias vigentes ao tempo da formação da velha constituição’ e sustentou que ‘a escravatura é uma instituição beneficente’, na verdade, a única solução para o grande problema da ‘relação do capital com o trabalho’ e cinicamente proclamou a propriedade sobre o homem como ‘a pedra angular do novo edifício’ — então, as classes operárias da Europa compreenderam imediatamente, mesmo antes da fanática tomada de partido das classes superiores pela aristocracia confederada ter dado o seu funesto aviso, que a rebelião dos proprietários de escravos havia de tocar a rebate para uma santa cruzada geral da propriedade contra o trabalho e que, para os homens de trabalho, [juntamente] com as suas esperanças para o futuro, mesmo as suas conquistas passadas estavam em causa nesse tremendo conflito do outro lado do Atlântico.

(…)

“Enquanto os operários, as verdadeiras forças políticas do Norte, permitiram que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto perante o Negro — dominado e vendido sem o seu consentimento — se gabaram da elevada prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e de escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade do trabalho ou de apoiar os seus irmãos europeus na sua luta pela emancipação; mas esta barreira ao progresso foi varrida pelo mar vermelho da guerra civil” (Karl Marx, Carta a Abraham Lincoln, novembro/1864).

Portanto, se Hitler olhava para Sherman como modelo, apenas expunha a perversão do nazismo – e não o conteúdo da guerra da União contra os confederados escravagistas.

Quanto à outra frase, ela é um comentário a um trecho do “relatório secreto”, em que Kruschev acusa Stalin de deportar populações “sem outra causa que a vingança por algum delito perpetrado por indivíduos ou grupos isolados”:

“Está fora de discussão o horror da punição coletiva, da deportação imposta a populações suspeitas de escassa lealdade patriótica. Infelizmente, bem longe de referir-se à loucura de um único indivíduo, esta prática caracteriza profundamente a segunda Guerra dos Trinta Anos, a começar pela Rússia czarista que, embora aliada do Ocidente liberal, durante o primeiro conflito mundial conhece ‘uma onda de deportações’ de ‘dimensões desconhecidas na Europa’, em que estão envolvidas cerca de um milhão de pessoas (sobretudo de origem judia ou germânica). De dimensões mais reduzidas, mas muito mais significativa, é a medida que durante o segundo conflito mundial atinge os americanos de origem japonesa, deportados e encerrados em campos de concentração” (Losurdo, p. 36, grifo nosso).

Este é, portanto, o uso do “princípio do tu quoque”, isto é, do “você também”.

Losurdo não se preocupa com o fato – em 2008, quando lançou o livro, já demonstrado – de que a acusação de Kruschev é falsa. Não houve deportações “sem outra causa que a vingança por algum delito perpetrado por indivíduos ou grupos isolados”.

Ao invés de, simplesmente, demonstrar a falsidade da acusação, Losurdo comenta que, se Stalin deportou populações, “esta prática caracteriza profundamente a segunda Guerra dos Trinta Anos” – que é como Losurdo chama o período das duas guerras mundiais.

De qualquer forma, a comparação com a revolução do Haiti e com a campanha militar da União – isto é, de Lincoln – contra os escravagistas, apenas prova que houve violência em outros países.

Os fatos da época de Stalin escapam de análise.

Mas é justo frisar que existe uma exceção: Losurdo desmonta brilhantemente as acusações de antissemitismo contra Stalin – e sem necessitar do recurso ao “tu quoque”.

ENTENDIMENTO

Uma segunda questão é como Losurdo vê a obra de Marx.

Por exemplo, quando aborda a situação logo após a Revolução de Outubro:

“A onda longa do messianismo, certamente implícita já nos aspectos mais utópicos do pensamento de Marx, mas pavorosamente aumentados como reação ao horror da I Guerra Mundial, continua a fazer-se sentir” (p. 62, grifo nosso).

“Tudo isso não podia não reforçar a tendência já muito presente no partido bolchevique, em consequência também do clima espiritual suscitado pela guerra, a radicalizar ulteriormente os temas utópicos do pensamento de Marx” (pp. 113-114, grifo nosso).

“Nas três décadas em que administrou o poder, vemos Stalin se esforçar em elaborar e pôr em prática um programa de governo, tomando nota do desaparecimento da perspectiva do triunfo planetário da revolução socialista e esclarecendo a diferença entre a utopia (que é o legado, por um lado, da teoria de Marx e, por outro lado, da expectativa messiânica de um mundo totalmente novo suscitada pelo horror da I Guerra Mundial) e o estado de exceção (que na Rússia assume uma duração e uma agudeza excepcionais por causa da convergência de duas crises gigantescas, o segundo período de desordens e a II Guerra dos Trinta Anos)” (p. 282).

Ou seja, Stalin teria combatido as “tendências utópicas” do pensamento de Marx – ou que tinham origem no pensamento de Marx.

Quais são essas tendências “utópicas”?

Ainda que ele não aborde, no livro, uma questão de tal modo crucial, considerando-a tácita, mais adiante escreve Losurdo:

“Não faltam aqueles que leem a história do país nascido da Revolução de Outubro lamentando a progressiva ‘traição’ das ideias elaboradas por Marx e Engels; na realidade, sob certos aspectos, são exatamente essas ideias ‘originais’ (a espera messiânica de uma sociedade sem Estado e sem normas jurídicas, sem fronteiras nacionais e sem mercado e sem dinheiro, onde, em ultima análise, não há qualquer conflito real) que desempenharam um papel nefasto, impedindo a passagem para uma condição de normalidade e prolongando e agudizando o estado de exceção (provocado pela crise do antigo regime, pela guerra e pelas sucessivas agressões)” (p. 332, grifo nosso).

Ou seja, o que ele considera “utópico” é a “espera messiânica de uma sociedade sem Estado e sem normas jurídicas, sem fronteiras nacionais e sem mercado e sem dinheiro, onde, em ultima análise, não há qualquer conflito real”.

A maneira de colocar tais questões revela o entendimento muito parco sobre elas, ou seja, sobre o pensamento de Marx – e de Stalin.

Utópico era Kruschev, que prometeu, em 1961, no XXII Congresso do PCUS, que a URSS passaria do socialismo ao comunismo até 1980 – com Estado, com dinheiro, com mercado e com fronteiras nacionais…

Sucintamente:

1) Não se trata de uma “espera”, muito menos “messiânica”, por uma sociedade sem Estado, mas da extinção progressiva do Estado na transição do socialismo ao comunismo.

2) Não se trata de uma sociedade “sem normas jurídicas”, mas da substituição de uma regulação social pelo Direito burguês – baseada, portanto, na troca de equivalentes (“a cada um segundo o seu trabalho”) -, por outra regulação, baseada nas necessidades reais dos indivíduos (“a cada um segundo a sua necessidade”).

3) A extinção das fronteiras nacionais é uma consequência da transição do socialismo para o comunismo em nível mundial.

4) A extinção do mercado – que só é necessário em uma sociedade de produtores isolados – é uma consequência do avanço da planificação econômica, ou seja, da socialização cada vez maior da produção.

5) O dinheiro, como as outras mercadorias, deixa de existir quando a sociedade supera a lei do valor; não havendo “valor”, os produtos não são mais mercadorias, nem existe necessidade de uma mercadoria que condense o valor delas, para ser usada como equivalente geral de valor. Pode-se dizer que a moeda transforma-se em um “bônus de trabalho”, representando tal ou qual quantidade de trabalho, a ser trocada por produtos, na transição socialista. No comunismo, até isso é dispensável, pois os produtos não serão trocados, mas distribuídos.

6) Quanto a que na sociedade comunista não haverá “qualquer conflito real”, é bobagem. Nem Marx nem marxista algum jamais disse tal coisa. Apenas, não haverá conflitos de classe, pois as classes não existirão.

Pode-se dizer que sem esses “objetivos” a teoria de Marx não existe – ou transforma-se em seu oposto, uma garapa liberal.

Nada disso é “utópico” – e Marx, Engels, Lenin, Stalin se esforçaram extraordinariamente para estabelecer os fundamentos a partir dos quais eles são possíveis. No terceiro livro de “O Capital”:

“O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; portanto, pela própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção material propriamente dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas, que as satisfazem. Nesse terreno, a liberdade só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a Natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas este sempre continua a ser um reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental” (Karl Marx, O Capital, Livro III, t. 2, trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, Nova Cultural, 2ª ed., p. 273).

Toda a atividade de Stalin esteve voltada para descobrir os caminhos para se chegar a esses objetivos, ou seja, ao comunismo.

A prova são suas últimas obras, em especial, “Problemas Econômicos do Socialismo na U.R.S.S” (1952), mas, também, “O Marxismo e a Linguística” (1950).

Portanto, contrapor Stalin a supostas “tendências utópicas” do marxismo é demonstrar pouco entendimento do marxismo – e da obra de Stalin.

Quanto ao “papel nefasto” dessas questões na História da URSS – na construção do socialismo – isso equivale a dizer que o socialismo científico (isto é, o marxismo) teve um papel nefasto na construção do socialismo na URSS.

Logo, era melhor não empreender essa construção.

Para que, se seu objetivo era utópico e se a teoria que a guiava era nefasta?

ESTADO

Retomemos, então, a questão do Estado. Escreve Losurdo:

“Certamente, em vez de extinguir-se, nos países governados pelos comunistas o Estado se apresentava desmedidamente dilatado; muito longe de desaparecer, as identidades nacionais desempenhavam um papel sempre mais importante nos conflitos que teriam levado à divisão e, enfim, ao solapamento do campo socialista; não se divisava qualquer sinal de superação do dinheiro ou do mercado, que, eventualmente, com o desenvolvimento econômico tendiam a expandir-se”.

Em relação às últimas duas questões, com certeza, não é verdade.

O mercado, antes que Kruschev e seus sucessores o liberassem – e o cevassem – estava rigorosamente limitado pela planificação econômica. Tanto assim que ninguém jamais disse que a economia da URSS, na época de Stalin, era uma “economia de mercado”. Aliás, nem depois, apesar da frouxidão e dos apelos ao “mercado”.

Mas, realmente, o mercado existia na URSS.

Nas palavras do próprio Stalin:

“Atualmente, em nosso país, existem duas formas fundamentais de produção socialista: a estatal, que é de todo o povo e a kolkhosiana, que não se pode dizer que é de todo o povo. Nas empresas estatais, os meios de produção e a produção são de propriedade de todo o povo. Nas empresas kolkhosianas, porém, embora os meios de produção (a terra e as máquinas) também pertençam ao Estado, os produtos obtidos, contudo, pertencem aos diversos kolkhoses, uma vez que o trabalho, como também as sementes, são de propriedade dos kolkhoses. Quanto à terra entregue aos kolkhoses em usufruto perpétuo, os kolkhosianos dispõem dela, de fato, como sua propriedade, apesar de não poderem vendê-la, comprá-la, arrendá-la ou hipotecá-la. Esta circunstância determina que o Estado pode dispor somente da produção das empresas estatais, enquanto os kolkhoses dispõem da produção kolkhosiana como de sua propriedade. Os kolkhoses, porém, não querem alienar seus produtos senão em forma de mercadorias, em cuja troca eles querem receber as mercadorias de que necessitam. Atualmente os kolkhoses não admitem outros vínculos econômicos com a cidade que não sejam os vínculos mercantis, o intercâmbio através da compra e venda. Por isso, a produção mercantil e sua circulação, em nosso país, são hoje da mesma forma necessárias, como o foram, digamos, há trinta anos passados, quando Lenin proclamou a necessidade de desenvolver, por todos os meios, a troca de mercadorias. Naturalmente, quando, ao invés de dois setores fundamentais de produção, estatal e kolkhosiano, surgir um único setor de produção, com o direito de dispor de toda a produção destinada ao consumo do país, a circulação das mercadorias com sua ‘economia monetária’ desaparecerá, como elemento desnecessário da economia nacional” (Stalin, Problemas Econômicos do Socialismo na U.R.S.S, grifo nosso).

Também não é exato que “as identidades nacionais desempenhavam um papel sempre mais importante nos conflitos que teriam levado à divisão e, enfim, ao solapamento do campo socialista”.

Isso somente aconteceu na medida em que o revisionismo, depois de Stalin, abriu a guarda para que o imperialismo e os reacionários locais manipulassem as questões nacionais.

Que exemplo maior é possível existir de convivência civilizada entre nacionalidades, do que um país, com população de maioria russa, ter um dirigente georgiano?

Na questão do Estado é onde Losurdo revela maior debilidade quanto ao pensamento filosófico. Acima, em referência a outro texto, chamamo-lo de “neo-hegeliano” – e não o fizemos de modo pejorativo. Os italianos têm uma rica tradição neo-hegeliana, da qual o melhor exemplo é Benedetto Croce.

Porém, na questão do Estado, Losurdo se revela menos que hegeliano.

O Estado – o Estado como máquina especial de opressão de uma classe sobre outra – no socialismo, já é um Estado em extinção.

Mas isso implica em que ele se torna menor, até desaparecer?

Pelo contrário, isso implica em que ele incorpora cada vez mais parcelas da população, até que deixa de existir, pela simples razão de que uma máquina estatal em que todos participam deixa de ser uma máquina estatal, deixa de ser um Estado, deixa de ser uma “máquina especial de opressão de uma classe sobre outra”.

No entanto, essa é uma questão que Losurdo, realmente, não entende:

“(…) quando e com quais modalidades inicia o processo de extinção do Estado previsto por Marx, depois da superação do capitalismo? (…) no entanto, pondo em movimento uma gigantesca onda de nacionalizações, o novo poder [na Rússia] dá um impulso sem precedentes à extensão do aparelho estatal. (…) Surge imediatamente a novidade das palavras de ordem: ‘melhorar o nosso aparelho estatal’, empenhar-se seriamente na ‘edificação do Estado’, ‘construir um aparato verdadeiramente novo que mereça verdadeiramente o nome de socialista, de soviético’, melhorar o ‘trabalho administrativo’ (…).

“… estender de modo maciço o aparelho estatal e colocar com força o problema de seu melhoramento não significa renunciar de fato ao ideal da extinção do Estado?”

Não, não significa.

Ao contrário.

REGRA E EXCEÇÃO

Em uma das citações acima, Losurdo usa a expressão “estado de exceção” – que é repetida 26 vezes no livro.

No entanto, não existe nenhuma definição do que ele entende por “estado de exceção”.

A rigor, as revoluções podem ser, também, caracterizadas como fenômenos históricos “de exceção” – elas não acontecem a todo momento e definem, quando vitoriosas, toda uma era posterior.

Losurdo não usa, habitualmente, a expressão “estado de exceção” para se referir ao Estado, à máquina estatal, mas como sinônimo de uma “situação de exceção” que se estende no tempo. Por exemplo: “No que diz respeito à revolução bolchevique, não se deve perder de vista o estado de exceção permanente provocado pela intervenção e pelo cerco imperialista” (op. cit., p. 121, grifo nosso).

Mas, às vezes, isso é dúbio. Por exemplo:

“Nas três décadas de história da Rússia soviética dirigida por Stalin, o aspecto principal não é constituído pelo de a ditadura do partido desembocar numa autocracia, mas por repetidas tentativas de passar do estado de exceção para uma condição de relativa normalidade”, etc.

Aqui, quando se menciona “ditadura do partido” (aliás, a fórmula, que Lenin demoliu, usada por Kautsky para atacar a Revolução Russa), claramente está se falando não da situação em geral, mas do Estado soviético.

Existe, além disso, implicitamente, uma confusão entre os conceitos de “ditadura” e “democracia” (supondo que seja essa a condição política de um estado “de relativa normalidade”), há muito elucidada por Lenin (O Estado e a Revolução e A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky) e outros autores:

“… a ditadura do proletariado é a concretização mais perfeita dos princípios democráticos gerais. (…) Os princípios democráticos gerais nada têm a ver com a ideia de, ainda durante a existência de classes antagônicas na sociedade, garantir a liberdade em “geral” no sentido de para todos, indistintamente, pois estes princípios implicam também e necessariamente, como veremos, na ideia de submissão e dominação. Esta deformação liberal dos princípios democráticos gerais atende aos interesses da burguesia que, necessitando encobrir os antagonismos de classe, pretende que a sua democracia, isto é, a democracia burguesa, represente indistinta e imparcialmente os interesses de toda a sociedade” (cf. Cláudio Campos, Socialismo e Liberdades Democráticas, 1976, itálicos no original).

Sob esse ângulo, é mais fácil entender o que é um “estado de exceção” no capitalismo – ou seja, tomando como referência a democracia burguesa – do que no socialismo.

Pode-se dizer, por exemplo, que o Estado na Alemanha nazista era um “estado de exceção”, depois que Hitler rasgou a Constituição de Weimar – apesar de, como nota seu ministro dos Armamentos, Albert Speer, não ter fechado, formalmente, nenhuma das instituições dessa Constituição, nem mesmo o parlamento, o Reichstag, que continuou se reunindo, mas apenas com caráter homologatório – isto é, para aprovar o que Hitler queria que ele aprovasse (cf. Albert Speer, Inside The Third Reich, trad. Richard and Clara Winston, Avon Books, NY, 1971).

Mas como é possível dizer que fosse de exceção o Estado durante a construção do socialismo na URSS?

Formulando a questão (na verdade, é outra questão) do ponto de vista do “estado de exceção” considerado como “situação de exceção”: o que seria a “normalidade”, ainda que “relativa” (v. acima: “repetidas tentativas de passar do estado de exceção para uma condição de relativa normalidade”), o que poderia ser a “regra”, na Rússia e na URSS, entre 1917 e 1953?

Um “estado” – uma situação – sem guerras, ou ameaça de guerras, sem bloqueio ou conflito com as potências imperialistas?

Um “estado” em que não houvesse um acirrado conflito de classes dentro do país?

Mas isso era impossível, pela própria natureza do Estado e do processo revolucionário.

Então, por que chamar essa situação de “estado de exceção”, e, mais, “estado de exceção permanente”?

Mas – o que é esclarecedor – Losurdo também usa a mesma expressão para se referir ao governo de Franklin Delano Roosevelt nos EUA.

A citação é longa, mas importante, para o significado que o autor atribui a essa expressão:

“Dão o que pensar sobretudo os processos políticos que se verificam nos Estados Unidos no período que vai da Grande Crise até a II Guerra Mundial. Tendo chegado à presidência com a promessa de remediar uma situação econômico-social bastante preocupante, F. D. Roosevelt é eleito por quatro mandatos consecutivos (embora tenha morrido no início do quarto mandato), um caso único na história do seu país. Além da longa duração dessa presidência, são fora do comum as expectativas e as esperanças que a cercam. Personalidades autorizadas invocam um ‘ditador nacional’ e convidam o neo-presidente a dar prova de toda a sua energia: ‘Torna-se um tirano, um déspota, um verdadeiro monarca. Durante a Guerra Mundial aprisionamos a nossa Constituição, a pusemos de lado até o fim da guerra’. A permanência do estado de exceção exige que não nos deixemos impedir por excessivos escrúpulos legais. O novo líder da nação é chamado a ser e já é definido como ‘uma pessoa providencial’, ou, segundo as palavras do cardeal O’Connell, ‘um homem mandado por Deus’. As pessoas comuns escrevem e se dirigem a F. D. Roosevelt em termos ainda mais enfáticos, declarando olhar para ele ‘quase como se olha para Deus’ e esperar poder um dia colocá-lo ‘no Panteão dos imortais, ao lado de Jesus’. Convidado a comportar-se como ditador e homem da Providência, o novo presidente faz uso muito amplo do seu poder executivo já no primeiro dia e na primeira hora do seu mandato. Na sua mensagem inaugural ele exige ‘um amplo poder do Executivo […] tão grande como seria aquele concedido a mim se fôssemos realmente invadidos por um inimigo estrangeiro’. Com o início das hostilidades na Europa, antes ainda de Pearl Harbor, F. D. Roosevelt começa, por sua iniciativa, a arrastar o país para a guerra ao lado da Inglaterra; em seguida, com uma ordem executiva emanada de modo soberano, impõe a reclusão em campos de concentração de todos os cidadãos americanos de origem japonesa, inclusive mulheres e crianças. É uma presidência que, se por um lado goza de uma difundida devoção popular, por outro lado faz gritar o perigo ‘totalitário’: isso acontece por ocasião da Grande Crise (quando é particularmente o ex-presidente Hoover que faz a acusação) e sobretudo nos meses que precedem a intervenção no segundo conflito mundial (quando o senador Burton K. Wheeler acusa F. D. Roosevelt de exercer um ‘poder ditatorial’ e de promover uma ‘forma totalitária de governo’). Pelo menos do ponto de vista dos adversários do presidente, totalitarismo e culto da personalidade tinham atravessado o Atlântico” (Losurdo, op. cit., pp. 42-43).

Pode-se dizer muito sobre o que dizem os “adversários” de Roosevelt.

Mas que importância isso tem?

Ou o “estado de não exceção” – portanto, a regra – seria algo como a situação do governo Hoover, com milhões de desempregados sem qualquer perspectiva, exceto a morte pela fome, inclusive de seus filhos?

Losurdo, evidentemente, não disse isso. O que é, aqui, chamado de “estado de exceção” é a própria crise iniciada em 1929.

No entanto, as crises são inevitáveis no capitalismo monopolista – são rigorosamente produzidas pelo domínio sem peias dos cartéis, dos monopólios financeiros – e, ao contrário das crises no capitalismo concorrencial, deixadas à solta elas levam, no máximo, à estagnação, ao “equilíbrio do desemprego” afirmado por Keynes:

“… a situação de equilíbrio em regime de laissez-faire será aquela em que o emprego seja bastante baixo e o nível de vida suficientemente miserável para levar as poupanças a zero. O mais provável é que haja um movimento cíclico em redor desta posição de equilíbrio” (cf. J.M. Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, trad. Mário R. da Cruz, Nova Cultural, 1996, p. 214).

Então, por que chamar a situação dos EUA na década de 30 de “estado de exceção”?

E por que a carga sobre Roosevelt, cuja medida mais radical – o programa estatal anti-monopolista, o National Recovery Act (NRA) -, apesar de aprovada no Congresso, foi barrada pela Suprema Corte?

O que isso “dá o que pensar” é que a “regra”, a “não exceção”, para Losurdo, é o marasmo habitual das democracias burguesas nos países centrais.

LEGALIDADE

Porém, voltemos à URSS.

Do outro ponto de vista em que se pode examinar a expressão “estado de exceção – o ponto de vista do Estado – não se pode dizer que haja um “estado de exceção” na URSS: a primeira Constituição Soviética foi aprovada já em 1918, a segunda em 1936.

Entretanto, Kruschev, no “relatório secreto”, espargiu acusações de que a “legalidade socialista” fora infringida por Stalin.

O caso não foi provado – para usar uma expressão do direito anglo-saxônico que está na moda.

Pelo contrário, a destituição de Nikolai Ejov do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD), exatamente por infrações à legalidade, partiu do próprio Stalin, assim como foi ele – com Molotov – que assinou a seguinte ordem, a 11 de novembro de 1938:

“O Conselho dos Comissários do Povo e o Comitê Central do PC(b) da URSS decidem:

“Proibir aos órgãos do NKVD e da Procuradoria de efetuar quaisquer operações maciças de prisão e deportação.

“O CCP e o CC do PC(b) previnem todos os funcionários do NKVD e da Procuradoria que, pela menor infração às leis soviéticas e às diretivas do Partido e do Governo, cada funcionário, fora de qualquer consideração pessoal, será objeto de procedimentos judiciais severos.

“V. Molotov, J. Stalin” (cit. in Ludo Martens, Un Autre Regard Sur Staline, EPO, deuxieme impression, 2003, p. 207).

Além disso, desde 2006 foram publicados os depoimentos de Ejov e seu segundo no NKVD, Mikhail Frinovsky (ambos foram julgados e condenados à pena de morte por violações à lei da URSS).

Em 2010, o professor norte-americano Grover Furr realizou uma tradução para o inglês dos depoimentos de Ejov: Interrogations of Nikolai Ezhov, former People’s Commissar for Internal Affairs, e, também, Transcript of the interrogation of the arrested person Ezhov, Nikolai Ivanovich, of April 26 1939).

Grover Furr resumiu o conteúdo desses interrogatórios em seu livro Khrushchev Lied (Erythros Press and Media, 2011, sobretudo pp. 53-56).

Temos ainda o testemunho do próprio Stalin, nas memórias de Alexander Sergueievich Yakovlev, o projetista de aeronaves (cf. A.S. Yakovlev, Цель жизни, Politizdat, Moscou, 1973, p. 264), sobre as ilegalidades cometidas por Ejov.

Mas, certamente, a alguns parecerá suspeito o testemunho de Stalin, principalmente pela proximidade dos acontecimentos e de sua conversa com Yakovlev.

Mas existe, também, o relato de Molotov, em 1973 – portanto, 36 anos após os acontecimentos a que Kruschev se refere em suas acusações (cf. Molotov Remembers – Conversations with Felix Chuev, Ivan R. Dee Inc., Chicago, 1993, pp. 291-294).

Todos são concordantes em que – e Molotov diz isso explicitamente – o erro que pode ser imputado a Stalin e à direção do PCUS foi a excessiva confiança na cúpula do NKVD.

Não foi um erro pequeno (que foi reconhecido publicamente na decisão de novembro de 1938, quando se diz que a simplificação dos procedimentos investigatórios e judiciais somente poderia conduzir “à aparição de numerosos e graves erros no trabalho do NKVD e da Procuradoria”).

O próprio Stalin disse isso a Yakovlev.

Mas deixar intocada a contrarrevolução, a quinta-coluna, dentro da URSS, às vésperas da mais feroz das guerras, teria sido um erro imensamente maior, provavelmente irreparável.

CAMPO

Losurdo não parece interessado em entrar nesses problemas.

Nem naquilo que houve durante a coletivização da agricultura.

Por exemplo, diz ele:

“… o universo concentracionário alcança o seu ápice na onda da coletivização forçada da agricultura e do punho de ferro contra as tendências burguesas e pequeno-burguesas dos camponeses” (grifo nosso).

A coletivização da agricultura foi a eliminação, enquanto classe, do “kulak”, a burguesia agrária. Portanto, não foram as tendências pequeno-burguesas dos camponeses (inevitáveis, pois os camponeses parcelares, os pequenos proprietários ou arrendatários, são pequeno-burgueses) que foram tratadas com “punho de ferro”.

Em um país com 160 milhões de camponeses, havia, na URSS, cerca de 10 milhões de kulaks, ou seja, patrões agrários, burgueses agrários.

Josf Stálin

Muito depois, Winston Churchill descreveria, sobre sua primeira viagem a Moscou, durante a II Guerra:

“Já passava da meia-noite e Cadogan [Sir Alexander Cadogan, do Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra] não havia aparecido com o rascunho do communiqué.

“Diga-me”, perguntei [para Stalin], “as tensões desta guerra têm sido para o senhor, pessoalmente, tão ruins quanto a execução da política das fazendas coletivas?”

Esse assunto despertou imediatamente o marechal. “Oh, não!”, disse ele. “A política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.”

“Achei que o senhor a teria achado ruim, porque não lidava com uns poucos milhares de aristocratas ou grandes latifundiários, mas com milhões de homens do povo.”

“Dez milhões”, disse ele, erguendo as mãos. “Foi assustador. Durou quatro anos. Era absolutamente necessário para a Rússia, para evitarmos os ciclos periódicos de fome, que a terra fosse arada com tratores. Precisávamos mecanizar nossa agricultura. Quando demos tratores aos camponeses, todos se estragaram em poucos meses. Só as fazendas coletivas, que tinham oficinas, conseguiam lidar com tratores. Tivemos o maior cuidado de explicar isso aos camponeses. Mas não adianta discutir com eles. Depois que você diz tudo o que pode a um camponês, ele diz que tem de ir em casa e conversar com a mulher, e que precisa consultar seu cão pastor.” (Essa expressão era nova para mim nesse contexto.) “Depois de conversar com eles, ele vem e sempre responde que não quer a fazenda coletiva e prefere ficar sem os tratores.”

“Isso era o que vocês chamam de kulaks?”

“É”, disse ele, sem repetir a palavra. E, depois de uma pausa: “Foi tudo muito ruim e difícil; mas necessário.”

“Que aconteceu?”, perguntei.

“Ah, bem, muitos deles concordaram em se associar conosco. Alguns receberam sua própria terra para cultivar, na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais ao norte, mas a grande maioria era muito impopular e foi liquidada por seus trabalhadores.”

Houve uma pausa considerável. E então: “Não só aumentamos largamente o abastecimento de alimentos, como também melhoramos incomparavelmente a qualidade dos grãos. Costumava-se plantar toda sorte de grãos. Agora, ninguém tem permissão de semear nada senão o grão soviético padrão, de uma ponta a outra deste país. Se não plantarem, serão tratados com severidade. Isso significa outro grande aumento no abastecimento de alimentos.”

O comentário de Churchill também é interessante:

“Vou registrando estas lembranças tal como me vêm à mente, bem como a vívida impressão que tive, naquele momento, de milhões de homens e mulheres sendo eliminados ou deslocados para sempre. Por certo viria uma geração para a qual seus sofrimentos seriam desconhecidos, mas ela com certeza teria mais o que comer e bendiria o nome de Stalin. Não repeti o dito de Burke — ‘Se eu não puder fazer uma reforma sem injustiça, não farei reforma alguma’. Com a Guerra Mundial grassando a nossa volta, pareceu-me inútil recitar moralismos” (cf. Winston S. Churchill, Memórias da Segunda Guerra Mundial, trad. Vera Ribeiro, Nova Fronteira, 1995, pp. 722-724).

Churchill não é, exatamente, o autor mais preciso do mundo quando seu assunto são os comunistas – ou mesmo Stalin, de quem, parece, gostava pessoalmente. Muito menos quando o assunto é a coletivização do campo soviético, ou seja, a expropriação dos “kulaks”.

Mas, aqui, queremos destacar apenas um trecho.

Segundo Churchill, ao responder sobre o que ocorreu, Stalin disse:

“Ah, bem, muitos deles concordaram em se associar conosco. Alguns receberam sua própria terra para cultivar, na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais ao norte, mas a grande maioria era muito impopular e foi liquidada por seus trabalhadores.”

Ainda que Churchill possa ter entendido errado ou esteja deformando, o que fica disso é que a maioria dos camponeses revoltou-se contra os “kulaks”.

É algo plenamente comprovado pelos contemporâneos. Por exemplo:

“Viajei através do país naqueles anos e sei como tudo isso se passou. (…) Vi como a coletivização eclodiu, qual tempestade, no Baixo Volga, no outono de 1929. Foi uma revolução que fez mudanças mais profundas que a Revolução de 1917, da qual foi o fruto maduro. Os assalariados agrícolas e os pobres assumiram a iniciativa na esperança de melhorar a sua situação com a ajuda do Estado. Os kulaks combatiam ferozmente o movimento dos kolkhozes [cooperativas agrícolas] por todos os meios possíveis, incluindo incêndios e assassinatos. Os camponeses médios, que compunham o grosso do campesinato, no começo vacilaram entre a esperança de se tornarem kulaks e o desejo de receber máquinas do Estado. Mas quando viram que o plano quinquenal lhes assegurava tratores, essa imensa massa de camponeses começou a ingressar nos kolkhozes: aldeias, distritos e regiões inteiras aderiram ao movimento” (cf. Anna Louise Strong, The Stalin Era, Mainstream Publishers, New York, 1956, pp. 35-36).

O primeiro trator (1927)

Por isso, dizer que “o universo concentracionário alcança o seu ápice na onda da coletivização forçada da agricultura” ou falar “do punho de ferro contra as tendências burguesas e pequeno-burguesas dos camponeses” é um falseamento da realidade.

SITUAÇÕES

Houve época em que a única fonte possível para os que queriam chegar à verdade – pois a verdade existe – era o material divulgado por aqueles que se propunham a mentir ou não se preocupavam, em nada, com a verdade.

Como escreveu, em 1992, Cláudio Campos:

“Já que, desde a década de 50, os arquivos secretos de todo o mundo tomaram-se muito mais acessíveis à direita do que à esquerda, o remédio é esquadrinhar essas patranhas, e extrair delas o que for possível. Confrontadas com o que sabemos de outras fontes, elas sempre nos fornecem alguns elementos interessantes…” (cf. Cláudio Campos, A constelação dos falsificadores da História, in A História Continua, 1ª ed., 1992, p. 5).

Essa situação já mudara – começara a mudar desde 1993, quando acabou a primeira publicação sobre os arquivos soviéticos, abertos em 1989 – quando Losurdo, em 2008, publicou o seu livro.

Nessa época, praticamente todo o conteúdo – ou, pelo menos, o mais importante – dos arquivos soviéticos já era público.

Por isso, é estranho que Losurdo recorra a tantos autores do tipo Robert Conquest, Nicolas Werth ou Simon Montefiore – sujeitos que pretendem ganhar dinheiro às custas da campanha anticomunista, aquela que sempre mata o marxismo duas vezes por ano…

Ao mesmo tempo, ele parece ignorar completamente os autores de esquerda que desbravaram esse terreno – e as informações oriundas dos arquivos soviéticos.

Entretanto, pode existir uma justificativa para esse uso preferencial de autores reacionários, ainda que seja, precisamente, o que outros já fizeram: mostrar sua incoerência.

Especialmente em relação a Trotsky, Losurdo consegue fazer isso bastante bem. Em relação a outros, nem tanto. Mas como Trotsky é a fonte original da maioria da “argumentação” dos ataques anticomunistas – dos ataques contra Stalin – o trabalho de Losurdo, nesse sentido, é importante.

O problema, como já vimos, consiste naquilo que Losurdo absorve ou aceita desses autores reacionários (inclusive o que considera “fora de discussão”, como mencionamos).

Por fim, anotemos que o recurso de Losurdo a certos clichês (por exemplo, à “dialética” de Saturno – o deus que devorava os filhos – como inerente à revolução), expressa sua dificuldade em admitir a realidade da luta de classes.

O período 1914-1945 não é uma “nova Guerra dos Trinta Anos” – pois a heterogeneidade da luta nesse período impede essa comparação ou assimilação com a série de guerras que assolaram a Europa entre 1618 e 1648.

Não por acaso, o uso desse termo, aplicado ao período das duas guerras mundiais, teve origem em historiadores reacionários.

Da mesma forma, chamar o período que vai de 1914 a 1937 de “segundo período das desordens”, em referência ao Período das Desordens – que se seguiu à morte do czar Ivã IV (também conhecido por Ivã, o Terrível) até a consolidação da dinastia dos Romanov, em 1613 – não nos ajuda a entender, em nada, as lutas políticas dentro da URSS.

Quanto à suposta “dialética de Saturno”, depois de vitoriosa uma revolução, mas não completamente consolidada, é esperável que parte da luta contra o inimigo seja internalizada, ou seja, passe a ser uma luta entre os que antes estiveram unidos para realizar a revolução.

E não apenas porque, no momento da revolução, uniram-se representantes de vários projetos para o país e para a sociedade.

A questão mais importante é que o inimigo derrotado, por algum tempo, conserva mais força – inclusive a terrível força dos hábitos – do que o lado revolucionário recém vitorioso.

Além disso, existe a pressão externa – e não é fácil, para alguns, manter a serenidade e evitar o pânico, diante do conjunto de dificuldades, internas e externas, com que se depara a revolução depois de sua vitória.

Se isso foi verdade no caso da Revolução Francesa, com os jacobinos predominando sobre os girondinos – e, depois, sobre a ala de Danton e Desmoulins –, mais verdade ainda no caso da Revolução Russa, em que a luta, depois da vitória, se instala abertamente, dentro do partido bolchevique, com a polêmica sobre o Tratado de Brest-Litovski, isto é, a paz com os alemães na I Guerra Mundial, em 1918.

Mas isso demandaria outro trabalho.

Por enquanto essas observações – embora haja outras – são as que nos pareceram mais importantes.

Domenico Losurdo faleceu em junho de 2018.

Registremos que, apesar de nossas observações, ele tem o mérito de, em um meio adverso, haver tocado em um assunto envolto em dogmas, histeria e reações persecutórias.

Foram raros os acadêmicos com essa coragem.

9 de maio de 1945: após a rendição dos nazistas, a multidão toma a Praça Vermelha, em Moscou