Decreto sobre armas pode incentivar tragédias como a de Suzano

Especialistas consideram que qazer uma relação causal direta entre o decreto que facilita a aquisição de armas e discurso de incremento da violência do governo com massacre de Suzano é apressado; Entretanto, medidas podem funcionar alimentando crimes da mesma natureza.

Por Lilian Milena, do GGN

Suzano

O decreto que flexibiliza o porte de armas de fogo, assinado em janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro, aumenta o risco da ocorrência de novas tragédias, como o massacre na escola de Suzano. Essa é a avaliação de especialistas em segurança pública entrevistados pelo GGN.

“Vamos esperar nos próximos anos uma escalada da violência não só nas escolas, mas na sociedade em geral, ainda complementado com o pacote anti-crime do ministro da Justiça Sérgio Moro, desresponsabilizando policiais pelo crime de assassinato, se a ação for cometida por ‘violenta emoção’”, avalia Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e um dos coordenadores do Atlas da Violência.

Na manhã desta quarta-feira (13), um tiroteio praticado por dois ex-alunos deixou pelo menos 10 mortos e 23 feridos na Escola Estadual Professor Raul Brasil em Suzano, a 57 quilômetros de São Paulo.

Os dois jovens, identificados como Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, invadiram a escola encapuzados e se mataram após a ação. Ainda não há informações sobre antecedentes criminais dos dois suspeitos.

O comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, Marcelo Salles, se surpreendeu com a quantidade de armas encontradas no local: um revólver calibre 38, quatro Jet Loaders para recarregamento, uma besta e um arco e flecha tradicional. A polícia também encontrou coquetéis molotov e artefatos semelhantes a explosivos em uma mochila. Além disso, um dos autores do crime tinha uma espécie de machado na cintura.

“Não tinha visto ocorrência com um artefato medieval desses, que é a besta, nos meus 34 anos de polícia. É algo totalmente imponderável. Um atentado de alguém que não tem o domínio de suas melhores faculdades mentais”, declarou Salles à imprensa.

“Fazer uma relação causal direta entre o discurso de incremento da violência do governo a uma ação dessa natureza é muito apressado. Não sabemos ainda a causa e o motivo dessas pessoas para provocar a própria morte inclusive”, alerta Jacqueline Sinhoretto, coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar, membro da diretoria do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

O decreto e a cultura da violência

No dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou um decreto facilitando o acesso à posse de armas para toda a população ao estabelecer como um dos critérios que para ter o equipamento residir em áreas rurais ou em áreas urbanas em estados com índice de homicídios maior que 10 por 100 mil habitantes no Atlas da Violência de 2018 (que traz dados de 2016). Acontece que todos os estados brasileiros superam esse índice.

“Ações dessa natureza [massacre de Suzano] parecem inexplicáveis e se repetem. Já ocorrera no Brasil, nos Estados Unidos e recentemente na França”, pontua Jacqueline. Por outro lado, a pesquisadora pondera que o decreto presidencial pode sim incentivar crimes dessa natureza.

“A arma que foi utilizada é justamente essas que uma pessoa pode ter em casa, uma 38. Não sabemos se era legalizada, é uma pergunta que a polícia precisa responder. Independente disso, o decreto contribui para o aumento da circulação”, avalia a pesquisadora.



Daniel Cerqueira, completa que o massacre de Suzano não é reflexo exato do aumento de circulação de armas (que ainda não pode ser medido), mas da cultura da violência presente na medida e nos discursos do presidente Bolsonaro, muito antes de assumir o planalto, validando a resolução de conflitos pela brutalidade.

“O adolescente é um indivíduo que passa por uma transição severa na sua vida, são inúmeras transformações biológicas, psicossociais. Muitos se isolam. É um período difícil”, destaca lembrando que, nos países desenvolvidos, o acolhimento de adolescentes que passam por algum período psicossocial conturbado acontece a partir da implementação de políticas de apoio ao desenvolvimento juvenil.

“São programas educacionais que reconhecem essa diferença do indivíduo, que incentivam o estabelecimento de diálogo entre os próprios jovens para conviverem com as diferenças e respeitando-se mutuamente”, explica sobre um procedimento normal em uma sociedade civilizada.

“No Brasil o que temos visto nos últimos anos é a brutalidade aumentada nos discursos de ódio, o uso da violência para resolver problemas. O que se propõe é exterminar o outro quando pensa diferente de mim”, destaca o pesquisador.

“O segundo fator que temos que pontuar é o ambiente escolar. Toda a discussão do governo tem sido no sentido de fomentar o fechamento do debate de ideias nas escolas. A prevenção da violência também se faz no ambiente escolar. A ideia que o próprio presidente e o MEC veiculam de que as escolas são fontes de problema, de doutrinação ideológica desvaloriza a escola como um espaço importante ao contraditório”, completa Jacqueline.

Dessa forma, a especialista em segurança pública conclui que o discurso público do governo apoiando a violência, o aumento de armas em circulação e o desrespeito a escola como espaço de socialização, enfraquecendo a imagem do ambiente educacional, podem conjuntamente contribuir, em algum grau, para acontecimentos como o massacre de Suzano.

O presidente Bolsonaro faz sinalizações simbólicas sobre o uso da violência para resolver conflitos na sociedade muito antes de subir ao planalto. Durante a corrida eleitoral, surpreendeu ao segurar uma criança no colo e fazê-la representar uma arma de fogo com a mão.

A assinatura do decreto facilitando a posse de armas, segue a mesma sinalização, assim como o dispositivo do pacote de leis “anti-crime” do ministro da Justiça Sérgio Moro reduzindo pela metade ou até mesmo a não aplicação de condenação a alguém que matar em legítima defesa se o “excesso doloso” for causado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Leia também: Pacote anticrime de Moro poderá aumentar feminicídio no país, alertam pesquisadoras

Jacqueline lembra que um dos jovens, o de 17 anos, pelo decreto não poderia ter acesso a uma arma de fogo e que os criminosos também pretendiam usar outros tipos de armas (foi encontrado um arco e flecha e uma machadinha com os autores do massacre). Porém, o que mais preocupa a pesquisadora é o falta de um Plano Nacional de Segurança Pública, que deveria ter sido entregue pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro.

“O governo tem 70 dias e não temos conhecimento sobre quais são as propostas relacionadas à redução e prevenção da violência”.

Escalada

O massacre em Suzano segue um rito semelhante ao massacre de Realengo, de 7 de abril de 2011. Naquela data, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, entrou na Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro da capital do Rio de Janeiro portando dois revólveres calibre 38 e equipamento para recarregar rapidamente a arma.

O jovem matou 11 crianças (10 meninas e 1 menino) e deixou 13 feridas (10 meninas e 3 meninos). Todas tinham entre 12 e 14 anos. Em seguida, se suicidou.



Em 20 outubro de 2017, um adolescente de 14 anos entrou no Colégio Goyases, em Goiânia, e atirou contra colegas matando dois e ferindo quatro. Em depoimento à Polícia Civil o jovem disse que se inspirou nos massacres de Realengo e de Columbine, nos Estados Unidos.

Tiroteios nos Estados Unidos, onde a cultura do uso de armas é popularizada, são recorrentes. O Massacre de Columbine ficou marcado pelo planejamento dos autores do crime, Eric Harris e Dylan Klebold. Os jovens invadiram a escola que frequentavam portando armas, 99 dispositivos explosivos e, ainda, usaram carros-bomba. Ao todo, 12 alunos e um professor foram mortos e outros 21 ficaram feridos. Os autores do ataque se suicidaram.

Como se não bastasse o fato de facilitar a circulação de armas de fogo no país, no decreto Bolsonaro também estabeleceu que todos os brasileiros que possuíam armas legalizadas tivessem o registro renovado automaticamente pelos próximos dez anos (antes o prazo de renovação era de cinco anos). Portanto, na prática, a mudança favorece proprietários de armas que teriam a renovação negada porque passaram a responder a inquérito ou processo criminal ou têm condenação na Justiça.