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Ana Prestes: o 8 de Março aos olhos de uma criança 

Desde 2017, a celebração do 8 de Março se tornou mais acessível e didática para as crianças brasileiras. Tudo por causa do livro infantil Mirela e o Dia Internacional da Mulher, da socióloga e doutora em Ciência Política Ana Prestes. Nesta entrevista ao Prosa, Poesia e Arte, Ana faz uma retrospectiva e um balanço do projeto – que envolveu a co-participação de sua filha Helena. Neste ano, Mirela será lançada no Uruguai, em versão adaptada. Confira a entrevista.

Por André Cintra

Mirela (Ana Prestes)

Prosa, Poesia e Arte: Por que falar para crianças do 8 de Março e da luta das mulheres?
Ana Prestes: Acredito que deveria fazer parte da formação social, histórica e cultural de qualquer criança conhecer a condição das mulheres na sociedade em que está inserida. Essas mulheres são a mãe, a irmã, a avó, a colega de escola, a professora, a caixa do supermercado, a feirante, a motorista do Uber, a enfermeira do posto de saúde, a médica… São as mulheres com as quais qualquer criança convive no seu cotidiano.

Mas essas mulheres não estampam um rótulo na testa dizendo: “Sou mulher, sofro violência doméstica, ganho salários mais baixos que os homens, tenho dupla jornada”. Se quisermos uma sociedade que realmente tenha justiça e igualdade no futuro, essas coisas precisam ser explicadas, contextualizadas, trabalhadas com as crianças.

É muito fácil mostrar para uma criança que os livros de história estão cheios de heróis majoritariamente – quando não completamente – homens. Por isso perguntamos no nosso poema da Mirela: “será que mulher se esconde das páginas da história? / ou será que são os homens, que não dividem a vitória?”.

Também é fácil mostrar para uma criança que não adianta o marido dar flores no Dia da Mulher e no outro dia voltar a agredi-la fisicamente. E é justamente porque é fácil dialogar com crianças e fazê-las perceber esses contrastes e conflitos que temos hoje essa verdadeira cruzada contra o que os conservadores chamam de “ideologia de gênero” e que nada mais é do que a busca pela igualdade de gênero.

PPA: Nas atividades das quais você participou com estudantes, dá para sentir diferenças na percepção de meninos e meninas, independentemente da idade? Os meninos tendem a resistir mais a essa abordagem?
AP: Não percebi muita diferença, felizmente. Meninos e meninas sempre interagem muito com nossa apresentação do livro e a performance do poema através da nossa personagem Mirela. Muitas vezes as meninas, por identificação, ao final das apresentações querem nos abraçar, tirar foto com a Mirela, vestir a roupa dela, tocar a personagem.

Por sua vez, os meninos, muitas vezes querem falar mais do que as meninas, ousam mais a falar alto e diante de todos, são bem participativos. E isso é fruto de uma educação e de uma sociedade patriarcal que empodera meninos. O homem é o dono da palavra, da vocalização da experiência e da opinião. À mulher cabe a escuta, a ponderação, a discrição.

Isso sim nós percebemos. Fazemos dinâmicas para que as meninas se coloquem, perguntamos sobre suas experiências e criamos as condições para a partilha. Meninos não resistem à nossa abordagem, pelo contrário, meninos acham que sabem mais do que as meninas sobre desigualdade de gênero. E isso nós vemos também entre os adultos, não é?

PPA: Como se deu o envolvimento de sua filha no livro? Quais motivações a levaram a aderir ao projeto?
AP: O projeto do livro nasceu a partir de um dever de casa escolar da minha filha mais velha, a Helena. Ela tinha 8 anos e precisava fazer uma pesquisa sobre a origem do 8 de Março para apresentar na escola. Ela ficou muito angustiada com a pesquisa e percebi que era porque não havia material específico para crianças e jovens sobre o tema. Todo material que encontramos era de linguagem muito adulta e abordava o tema de uma forma muito dura, como ao contar a história das mulheres queimadas em uma fábrica em Nova Iorque ao final do século 19.

No ano seguinte, ela já com 9 anos, novamente a escola pediu o trabalho. Foi daí que começamos em casa a conversar sobre a construção de um livro que falasse do 8 de Março para crianças. Inventamos uma personagem e demos um nome para ela. Eu redigi um poema para colocarmos na boca da personagem. Helena e a irmã Gabriela me ajudaram a ajustar o poema para uma linguagem mais próxima do entendimento delas.

Buscamos, então, uma editora parceira e uma ilustradora que usou nossas fotos para dar cara à personagem – que é uma mistura das nossas feições. Fizemos uma vaquinha virtual e arrecadamos R$ 10 mil na época (2016) para conseguirmos rodar o livro, que não foi nada barato por ser muito colorido. Lançamos o livro no Rio, na tradicional Livraria da Travessa em Botafogo. Foi uma experiência muito rica para as meninas essa trajetória percorrida desde a ideia do livro até a tarde de autógrafos com a livraria cheia.

PPA: É provável que, antes de levar o livro adiante, você já tivesse expectativas em relação aos desdobramentos. Como você avalia a experiência até aqui? O que estava previsto e se confirmou – e o que a surpreendeu?
AMP: Sinceramente, não tinha tantas expectativas. Uma expectativa forte era poder trabalhar com as minhas meninas a ideia de que, muitas vezes, nos angustiamos por não conseguirmos uma solução rápida para algo – no caso, minha Helena queria resolver o “para casa” em um estalar de dedos. Mas na construção da solução fazemos algo bonito, criativo e profundo. Acho que consegui passar isso para elas.

Uma vez o livro pronto, começamos a divulgá-lo e tem sido muito rica essa experiência. Viajamos para vários estados, como Maranhão, Ceará, Rio e Minas. Estivemos em diferentes espaços, livrarias, bibliotecas, escolas, centros comunitários, feiras de livro, prefeituras – e com diferentes públicos: crianças, jovens, adultos, professores, administradores públicos, movimento sociais.

Algo que me surpreendeu foi a facilidade de entrar nas escolas, a receptividade das comunidades escolares, desde as direções, professoras e crianças. Mesmo as famílias. Em tempos de combate à “ideologia de gênero”, isso é uma surpresa positiva, no sentido de que o ambiente escolar quer, sim, discutir a desigualdade de gênero e os direitos das mulheres.

Muitas vezes, ao final das apresentações, mães e professoras chegam para conversar e fazer seus relatos pessoais muito sofridos, pois a violência de gênero é uma realidade que não se poderá seguir escondida por muito tempo. A última e feliz surpresa para este ano de 2019 foi a edição do nosso livro no Uruguai, em versão para o espanhol e homenageando uma lutadora uruguaia. Ele que deve ser lançado por lá ainda nesse primeiro semestre.

Uma coisa linda que vão fazer por lá é que a prefeitura de Montevidéu deve distribuir o livro, como uma forma de trabalho social com crianças e famílias sobre o Dia Internacional da Mulher. Nossas crianças merecem, por nossas meninas, nossas mulheres.

SERVIÇO
Mirela e o Dia Internacional da Mulher
Editora: Lacre
Autora: Ana Prestes
Ilustradora: Vanja Freitas
Ano: 2017

* O livro pode ser adquirido na Lacre Livraria Virtual e na Editora Anita Garibaldi