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Luís Nassif: Como a revolucionária Badi Assad virou a musa cult da MPB

Essa nossa música popular de todos os tempos é rica em divas, em musas, em cantoras, compositoras, um pouco menos em instrumentistas. Mas, se em um dia qualquer do futuro um historiador vier escarafunchar esses tempos e tentar garimpar o multitalento mais completo e genuíno, a mistura mais ampla de arte, técnica e beleza, a musa cult dos músicos e dos intelectuais, deverá procurar saber um pouco mais de Badi Assad.

Por Luis Nassif

Badi Assad

É a maior violonista brasileira, uma das cantoras mais completas, uma multiartista revolucionária. Badi nasceu com uma carga genética pesadíssima. Era dez anos mais nova que seus irmãos Sérgio e Odair Assad, considerados hoje em dia o melhor duo de violão do mundo.

O pai, seu Jorge Assad, é personagem de literatura. Nasceu em São João da Boa Vista e era profissional da sinuca e craque do bandolim quando conheceu dona Ica, de Andradas. Casado, com dona Ica grávida do filho mais velho, decidiu arrumar profissão. Conseguiu com um amigo relojoeiro aprender o ofício. A partir daí, passou a correr a região, indo de São João a Ribeirão, depois a Mococa, Casa Branca.

Em Mococa nasceram os irmãos Sérgio e Odair. Depois, voltou a São João, e lá nasceu Badi, hoje com 36 anos. Pouco tempo depois, mudou-se para Ribeirão e criou sua roda de choro. Mais tarde, resolveu voltar para São João para que os filhos Sérgio e Odair tivessem aulas com José Lopes, discípulo de José Lanzac – o maior violonista brasileiro dos anos 20 aos 40, e que nunca gravou.

Em pouco tempo, os irmãos ultrapassaram o mestre. Seu Jorge os levou ao Rio, para serem avaliados pela legendária Monina Távora, aluna de Segóvia, violonista excepcional, que já havia sido mestra de Sérgio e Eduardo Abreu – os jovens virtuoses que se tornaram o maior duo de violão no início dos anos 70 e logo depois abandonaram a carreira. Monina ouviu os irmãos Assad, decidiu dar aulas de graça e seu Jorge nem relutou: abandonou o sossego de São João da Boa Vista e mudou-se para São João do Meriti, sem emprego nem nada.

Badi tinha dois anos. Ficou até os 14 morando em Brás de Pinas, São João do Meriti, Campo Grande, frequentando os bailes de periferia, em que o rei era John Travolta. Aos 12 anos, tinha corpo de mulher. O pai suspeitou que a região não fosse mais segura para a filha adolescente e voltou para São João. Ali começou a ser criada a futura grande musa.

Os irmãos ficaram no Rio. Sem violão para acompanhá-lo, seu Jorge percebeu que a filha tinha talento. Badi foi ser mais uma aluna de José Lopes e passou a acompanhar o pai.

Em um Natal, reunidos em São João, os irmãos se surpreenderam com o talento de Badi. Sérgio a convenceu a se inscrever no Concurso Jovens Instrumentistas, na sala Cecília Meirelles. Enviou partituras detalhando toda a interpretação, explicando onde ralentar, onde usar a ênfase, qual dedo utilizar. E Badi saiu de São João aos 16 anos para vencer o concurso, empatada em primeiro lugar com Fábio Zanon – considerado recentemente pelo The Times um dos dez melhores violonistas do mundo no momento.

Aos 17 anos, Badi voltou para o Rio e matriculou-se no curso de violão da Unirio. Aos 18 anos, ganhou o prêmio de melhor intérprete brasileira no Concurso Villa-Lobos. Em uma viagem a Israel, para livrar os irmãos de uma festa enfadonha, Badi decidiu cantar, nada mais que Linha de Passe, de João Bosco. Mais uma vez surpreendeu Sérgio: “O que você está fazendo tocando só violão?”.

Dali em diante foi um processo doloroso de definir a vocação. Badi acabou somatizando a tensão antes de participar de um festival internacional no Chile: percebeu que sua vida não poderia se restringir ao violão clássico. Nascia ali a mais completa música brasileira, uma lenda em formação.

Fez curso de teatro, aula de canto e teve sua estreia no Free Jazz, em uma noite terrível. No festival, apresentaram-se o veterano Gerry Mulligan, em final de carreira, os irmãos Assad – numa interpretação magistral de Gershwin – e Badi, a essa altura misturando violão, canto, ritmos, dança, tirando sons percussivos do rosto. A crítica enalteceu um Mulligan que não tinha nada mais a oferecer, tratou com condescendência os irmãos Assad e crucificou Badi. A guerreira não se rendeu.

Manteve-se no mesmo estilo e conquistou a carreira internacional depois que decidiu ir para os EUA, na cara e na coragem. Deixou de ser a caçula dos Assad e ganhou luz própria. Foi contratada pela EI Musica, gravadora americana, morou quatro anos em Los Angeles, chegou a fazer 60 apresentações internacionais em um ano.

Quando a gravadora foi vendida e os novos dirigentes tentaram meter o bedelho em seu trabalho, a musa cult recusou, rescindiu o contrato, montou na Flórida um pequeno estúdio com o empresário e voltou ao Brasil.

Em breve, o país voltará a se encontrar com sua mais completa musicista.

* Luis Nassif, jornalista, é editor do portal GGN. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 30 de setembro de 2001.

– Conheça o site de Badi Assad: http://badiassad.com