O samba da Mangueira e o perigo da história única de Chimamanda Ngozi

Dentre os belos sambas deste ano, destaco de modo muito singular o samba-enredo da Estação Primeira.

Por Padre Gegê

Mangueira

Para além dos binarismos de oposição do tipo “esquerda x direita”, a Mangueira oferece um caminho de revolução histórica a partir do legado africano ancestral que, necessariamente, implica na oralidade; logo, no saber/poder de “contar”. E contar é fazer memória; contar é não esquecer; contar é disputar narrativas; contar é transgressão; contar é assumir protagonismos! Nesse horizonte, a Mangueira oferece uma ferramenta potente na ordem da resistência e do enfrentamento porque “no som do seu tamborim e no rufar do seu tambor” ensina que a história do negro tem que ser contada pelos negros, a história dos indígenas pelos indígenas, das mulheres pelas mulheres, etc.

Contar a própria história é um ato político por excelência. Nesse sentido, a Mangueira dialoga com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi que fala do “Perigo de uma história unica”. Diz a escritora: “É impossível falar de uma única história sem falar sobre poder”. Não permitir que o outro conte sua própria história é destruir o outro enquanto sujeito. Chimamanda termina assim sua fala: “Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso”. Acredito que o samba da Mangueira propõe exatamente isto: reconquistar “um tipo de paraíso”. E esse paraíso passa pela memória feita pelos seus protagonistas. E não há história neutra. Marielle, por exemplo, lida por um lugar de poder é considerada defensora de bandidos, mas por outro lugar de poder é considerada defensora dos direitos humanos; Lula da mesma forma tanto pode ser lido como bandido preso quanto preso político. A libertação da escravatura, na mesma perspectiva, pode ser lida como fruto da bondade da princesa branca ou como processo de luta da população negra. A Mangueira, então, provoca perguntas seríssimas para a atualidade: de que lugar de poder você lê a história? A história que você ouve e conta é a versão do caçador ou a versão do leão. A propósito, adverte um provérbio africano: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”.

Parabéns e obrigado, Estação Primeira de Mangueira. Só o Samba poderia com afroternura chamar um Brasil tão regredido em suas potencialidades civilizatórias de “meu nego” e “ meu dengo”. E desse jeito carinhoso e familiar o samba o chama a rever sua história a partir dos que o sistema de poder quer ocultar e silenciar. A mangueira insiste: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahis, Marielles, Malês”. É isso é revolucionário… O samba tem dessas coisas… O samba tem muito a ensinar, inclusive, à esquerda.

O samba tem uma afropotência extraordinária de, muitas vezes, falar de revolução sem falar de revolução!!!

Contemos, pois, nossas histórias; resgatemos nossos heróis e heroínas, reconquistemos nossos paraísos, assumamos, de fato, coletivamente, o nosso Brasil com nome de Dandara e rosto de Cariri.

E que possamos, assumindo nossos compromissos históricos, com alegria democrática de um carnaval sem fim, poder chamar todos os dias esse Brasil pluriversal de “meu nego” e “meu dengo”. O Brasil, como disse Caetano Veloso no contexto do assassinato de Moa do Katendê, “não pode ser reduzido a essa coisa bárbara”.

Sob as lentes da ancestralidade africana, não se faz política tampouco revolução sem cafuné, sem dengo e sem chamego. E o Brasil carece de cheiro no cangote!

Mais uma vez, parabéns Mangueira!

Como uma Preta-Velha, a Estação Primeira de Mangueira bota o Brasil no colo, o chama de “dengo” e o ajuda a ouvir “histórias que os livros não contam”.

Da minha parte, nunca vi Jesus na goiabeira, mas, certamente, o vi desfilando sorridente na Mangueira!