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Patativa do Assaré: o universo pelas lentes do sertão

A serra de Santana é um minúsculo ponto no mapa, nos sertões do Assaré, beiradas do Cariri, confins do Ceará. Um fim de mundo, como se diz por aquelas brenhas. Ou o contrário, o começo do mundo, o berço da poesia. Ali é a caatinga, o sertão brabo, as serras secas irmãs da de Santana, a das Pombas, da Ema, do Pilar, da Quaresma, do Pelado, todas elas mirando com certo despeito a verdejante Chapada do Araripe.

Por Joan Edesson de Oliveira*

Patativa do Assaré

De águas, pouco se sabe, riachinhos como o São Miguel, o Madeira, o Quincorê, e o principal de todos, o Bastiões, que deu nome à ribeira, a antiga Freguesia de Nossa Senhora das Dores da Ribeira dos Bastiões. Tudo rio miúdo, de águas econômicas, avarentas feito a terra áspera, apenas de muito em muito oferecendo enchente de levar tudo pela frente. A duras penas, há séculos os homens arrancam do solo o milho, o feijão, um arroz nas terras mais baixas, a mirrada subsistência. Lugar mais improvável para se ver o mundo não há.

Mas por capricho se deu que ali, em terra de tão pouca valença, nascesse a poesia, em 5 de março de 1909, e recebesse na pia o nome de Antônio, santo e soldado póstumo, e no registro cartorial o completo Antônio Gonçalves da Silva. Nome que assim, por completo, rara gente conhece, poucos identificando a ponto de saber quem é esse, julgando a maioria ser mero desconhecido, de menor importância.

Mas se lhe disserem o apelido, ou ali naqueles ermos de caatinga, ou em outro lugar qualquer, mais próximo ou mais distante que seja, difícil haja quem não saiba de quem se trata. Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, a poesia personificada em um homem, nasceu na Serra de Santana, em Assaré, no Ceará, há 110 anos, quando a folhinha marcava 5 de março.

Patativa não foi, como pensam alguns, apenas um poeta sertanejo. Sua poesia é universal. Mas Patativa sempre viu o universo através das lentes do sertão. O que ele cantou, em sua poesia, foi a humanidade, aqueles homens e mulheres da Serra de Santana, do cariri cearense, aqueles homens e mulheres que amam e sofrem e lutam e trabalham ali e em qualquer lugar do planeta.

Essa universalidade da sua poesia começou, muito provavelmente, com o convívio com os romeiros do padre Cícero, que dos quatro cantos da nação acorriam e acorrem aos lugares sagrados do Juazeiro do Norte, ali tão próximo ao Assaré. Patativa, feito aqueles romeiros, trazia na alma o sertão. Um sertão atemporal, um sertão que está em todos os lugares do mundo, maior que o mundo, por vezes. Virou, então, com a sua poesia, a voz daquele povo sofrido, bebeu as suas dores e os seus desencantos e devolveu versos de sofrimento pungente, alimentou-se das suas parcas alegrias e das suas teimosas esperanças e pariu a poesia em luta permanente.

Patativa correu o trecho no sertão, carregando a viola, pelejando até o norte do país, onde ganhou o seu apelido. Foi, ele próprio, o grande divulgador da sua obra, se apresentando ao povo, recitando, improvisando como poucos. Aquele povo sertanejo, por sua vez, se encarregou de também divulgar a sua lira, levando notícias da poesia e do poeta por aí afora. Suas idas constantes à feira do Crato, participando sempre dos programas de rádio, serviu para amplificar a sua voz, para torná-lo mais e mais conhecido, levando o povo a identificar a sua voz inconfundível e o seu nome.

Foi no Crato que outro artista do povo, soldado migrante, que nascera no outro lado da Chapada do Araripe, em Exu, no Pernambuco, e que voltava agora constantemente ao Cariri de que tanto gostava, montado em fama crescente e encantando o povo com a sua sanfona de cento e vinte baixos, foi no Crato que ele ouviu falar em Patativa. Luiz Gonzaga, o mestre Lua, encantou-se com A Triste Partida, composição de Patativa, e decidiu gravá-la, projetando assim nacionalmente o nome do poeta do Assaré.

A Triste Partida é mais que um poema, que uma toada. É um poema épico, a saga heroica de um povo. É uma espécie de Ilíada sertaneja, pungente, dorida, tocante, capaz de desembrutecer o mais duro dos viventes. O povo cantado por Patativa se reconhece naqueles versos. Eles narram, à perfeição, o calvário dos migrantes em busca do sul do país, aquele migrante que largou a sua terra para continuar na mesma miséria, “distante da terra, tão seca, mas boa, exposto à garoa, à lama e ao paul”. O migrante de Patativa, o nortista que arribou, continua a “viver como escravo, no norte e no sul”. Com aquela toada a poesia do passarinho de Assaré alçou um voo tão alto quanto os maiores nomes da nossa literatura. Patativa foi, ali, um Homero sertanejo.

O drama do nortista, do roceiro, do migrante, do órfão, da mulher sertaneja, retratados por Patativa, é o drama universal de todas as gentes, são as dores universais, os sofrimentos universais. Mas é também, a poesia dele, a resistência, a luta, a esperança, a teimosia, a rebeldia, presentes no sertão e em todos os lugares onde haja homens e onde haja a opressão. A poesia de Patativa é a velha peleja pela liberdade, é um canto social, um canto de denúncia, uma expressão bem acabada do povo brasileiro.

A avezinha do Assaré voou tão alto quanto os maiores da nossa língua. O menino que mal aprendeu as primeiras letras numa escola muito fraquinha, como ele mesmo dizia, leu muito. Autodidata, leu Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Jorge Amado, José Louzeiro, admirava Bilac, de quem leu o Tratado de Versificação que escreveu com Guimarães Passos. Mas tinha predileção pelo cego Camões e pelo coxo Castro Alves, e dizia se identificar muito com o primeiro, já que ambos eram cegos, e que considerava o segundo o maior poeta da língua. Perdeu uma vista quando criança, em consequência de uma “dor d’olhos”, uma espécie de conjuntivite grave. Um acidente quando adulto lhe comprometeu para sempre a perna. Cego como Camões, coxo feito Castro Alves, se fez poeta tão alto quanto os dois.

Se o vate baiano foi poeta dos escravos, o bardo de Assaré foi poeta do roceiro do norte, quase um escravo moderno. Em comum, além de serem Antônio os dois, além da grandeza da poesia, o lado que tomaram na vida, o lado dos deserdados, dos despossuídos, dos que nada têm e tão pouco almejam nessa existência. Patativa tomou o lado dos que sonham com um pouco de pão, um pedaço de terra e um mínimo de liberdade.

Patativa foi um poeta popular não no sentido reducionista que costuma se dar ao termo. Foi popular porque cantou o povo sertanejo, o povo do “Brasil de baixo”, porque traduziu a sua voz, porque se fez arauto desse povo, porque foi a sua voz combatente. Foi popular porque era homem do povo, ciente do seu lugar no mundo, ciente da sua missão e da importância da sua poesia. Foi, acima de tudo, universal, clássico. Sua poética se inscreve entre os clássicos da nossa literatura.

Quando a folhinha marcava 5 de março de 1909, ali na serra de Santana, sertões do Assaré, beiradas do Cariri, confins do Ceará; ali naquele fim de mundo, ali naquelas brenhas, nasceu o menino Antônio, cego da vista direita no período da dentição, órfão de pai aos oito anos, manco da perna depois de acidente quando adulto. Ali, naquele 5 de março de 1909, há 110 anos, nasceu a poesia em seu estado mais puro.

Ave, poeta! Ave, avezinha de Assaré!

* Joan Edesson de Oliveira, educador, é mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará