Juízes pela Democracia, juristas e ex-ministros atacam pacote de Moro 

Prestes a ser protocolado no Congresso Nacional, o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro é alvo de ampla rejeição nos meios jurídicos. Entre seus críticos estão os membros da Comissão Arns (formada por 20 personalidades, entre eles seis ex-ministros de Estado) e a Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Excludente de ilicitude

Nesta segunda-feira (18), a AJD manifestou oito críticas ao projeto (leia a íntegra da abaixo). Na avaliação dos juízes, o pacote evita “enfrentar os principais desafios para a superação da violência e do crime”. Em nota, a Associação disse que “rejeita veementemente o pacote, tal como lançado, pela ausência de exposição de seus pressupostos, pela falta de estudos técnicos que suportem as ideias fragilmente expostas e pela incapacidade de enfrentar os temas de acordo com os princípios que norteiam a preservação da dignidade humana no contexto do Estado Democrático de Direito”.

Um dos pontos atacados pela entidade a generalização do “excludente de ilicitude” – um trecho do projeto de Moro que possibilita uma redução ou mesmo isenção de pena de policiais que causarem morte durante sua atividade. A “licença para matar” é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro.

O texto da proposta permite ao juiz reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. As circunstâncias serão avaliadas e, se for o caso, o acusado ficará isento de pena. Para a Associação, “é inaceitável que um projeto que se autodenomina ‘anticrime’ tenha como um de seus principais pilares o aumento das hipóteses de excludente de ilicitude, especialmente para os casos de homicídios por agentes de segurança”.

“A proposta não só ignora o já avantajado índice de violência policial no país como desvela a premissa que sustenta uma política pública homicida: a ideia de que a morte possa ser estimulada como mecanismo de combate à criminalidade, ao arrepio das mais comezinhas normas internacionais de proteção aos direitos humanos”, afirmam os juízes.

Em 7 de fevereiro, durante encontro com mais de 300 advogados em São Paulo, Moro afirmou que, nesse trecho, “não existe de maneira nenhuma licença para matar ou um afrouxamento da legítima defesa”. Ainda assim, poucos pontos de seu pacote foram tão criticados.

Comissão Arns

A Comissão Arns, que será lançada nesta quarta-feira (20), em São Paulo, também endossas as críticas ao excludente de ilicitude, bem como ao agravamento das penas e a eliminação de alguns recursos processuais. O grupo quer monitorar as ameaças de retrocessos em conquistas nas áreas dos direitos humanos asseguradas pela Constituição de 1988.

Batizada em homenagem ao cardeal arcebispo d. Paulo Evaristo Arns – que em 1972, durante a ditadura militar, criou a Comissão Justiça e Paz de São Paulo –, o grupo será presidido pelo ex-ministro e cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. Entre os integrantes, estão o criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, o ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira e o ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi.

Sobre o pacote de Moro, a Comissão Arns não poupa críticas. “Há várias questões que vão agravar as penas e inchar mais ainda o sistema penitenciário”, afirma Paulo Sérgio Pinheiro. “O Brasil hoje tem mais de 700 mil presos, sendo que 270 mil deles não têm sentença. O Brasil tem a terceira maior população carcerária em termos absolutos.”

Para Mariz, o crime “não pode ser combatido exclusivamente pelos seus efeitos”. A seu ver, “a punição – que é a tônica desse projeto e do discurso [de Bolsonaro] – ataca os efeitos. Ela é pós-crime”. O jurista avalia que, no caso de crimes violentos, as causas são de caráter social – o que é ignorado pelo pacote de Moro. Em vez disso, o projeto contém mudanças em 19 áreas e endurece a legislação em relação ao cumprimento de penas de condenados em segunda instância.

Apesar do discurso crítico, o presidente da Comissão Arns é cuidadoso ao falar sobre a relação do grupo com o governo Jair Bolsonaro. “A Comissão não tem nenhuma posição política em relação ao presidente da República ou ao governo. Nós não seremos uma comissão de oposição”, disse Pinheiro.

Na semana passada, integrantes do grupo estiveram reunidos em Brasília com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para anunciar a iniciativa. O texto de convocação para o lançamento da comissão não cita o novo governo nem o presidente.

“O objetivo da iniciativa é dar visibilidade e acolhimento institucional a graves violações da integridade física, da liberdade e da dignidade humana, especialmente as cometidas por agentes do Estado contra pessoas e populações discriminadas”, diz o texto.

Leia abaixo íntegra da nota dos Juízes pela Democracia:

Crítica da AJD ao pacote “anti-crime” do Ministério da Justiça e Segurança Pública

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, vem a público oferecer suas fundadas críticas ao Pacote de Medidas apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública:

1) É inaceitável que um projeto que se autodenomina “anti-crime” tenha como um de seus principais pilares o aumento das hipóteses de excludente de ilicitude, especialmente para os casos de homicídios por agentes de segurança. A proposta não só ignora o já avantajado índice de violência policial no país como desvela a premissa que sustenta uma política pública homicida: a ideia de que a morte possa ser estimulada como mecanismo de combate à criminalidade, ao arrepio das mais comezinhas normas internacionais de proteção aos direitos humanos.

2) É incompreensível a negligência absoluta sobre políticas públicas destinadas a fortalecer a investigação, a partir da modernização e instrumentalização da inteligência policial. O país sofre de um gritante índice de homicídios não solucionados. E a tendência é de crescimento: a combinação da ampliação das hipóteses de posse de arma e legítima defesa ilustra o estímulo contínuo à violência, inclusive nas relações privadas.

3) O projeto aposta suas fichas em mais encarceramento, sem qualquer prévio estudo de sua viabilidade e de seu impacto social e financeiro, cujo ônus recairá aos estados, reconhecidamente tomados pela austeridade fiscal, com limitações constitucionais para emprego de recursos. O sistema carcerário já está colapsado, num calamitoso quadro de superlotação e precariedade, sendo justamente esse caos nos presídios que mais tem causado desassossego a todos. Beiram a irresponsabilidade projetos que visam assim o aumento da população prisional em caminho oposto à tranquilidade ou segurança da sociedade.

4) Além de não contar com uma técnica apurada, havendo embaralhamento de conceitos e acúmulo de equívocos de redação, o que é inusitado para projetos oriundos de um ministério cujas estruturas somente foram enrijecidas, o Pacote vem desacompanhado das tradicionais justificativas. Essas foram formalmente substituídas por rodadas controladas de entrevistas, evitando, de forma confessa, o diálogo aberto com a comunidade científica, com os profissionais das áreas afetadas e até mesmo com parlamentares responsáveis por sua discussão.

5) A previsão de incorporar acriticamente institutos estadunidenses como sinal provinciano de ode à modernidade ignora a circunstância de que a justiça penal negocial tem sido uma das principais contribuições ao incomparável volume prisional daquele país. O projeto prevê a supervalorização do Ministério Público como epicentro do sistema de justiça criminal, sem se proteger do excesso de discricionariedade e da falta de controle judicial, característicos destes institutos.

6) O pacote despreza a própria experiência que o país amealhou com a edição da Lei dos Crimes Hediondos, aprovada em 1990, com igual propósito de “endurecer as penas”. Ignora solenemente o fato de que não houve redução da violência e oculta a circunstância de que a legislação foi alavanca para a criação e o fortalecimento das facções criminosas – que, de uma forma até pueril são denominadas, reconhecidas e eternizadas no texto da lei. Imaginar que a repetição do erro produzirá resultados diversos e melhores é, para dizer o menos, uma grotesca imperícia.

7) Na área da execução penal, o desconhecimento técnico, que entre outras inconsistências chega a confundir saída temporária com permissão de saída, soma-se ao propósito inescondível de burlar decisões consolidadas do Supremo Tribunal Federal. O projeto se direciona inclusive a ressuscitar a proibição de progressão de regime, desastre legislativo da década de 1990, em bom tempo afastado pelo STF.

8) Em meio ainda às vinte medidas do projeto, graves agressões ao direito de defesa se distribuem, como a supressão dos embargos infringentes nas situações em que o recurso é justamente o mais empregado (ou seja, na discussão sobre penas); o controle e gravação do contato réu e advogado (como forma de criminalizar a defesa); a inconcebível extensão da prisão “em segundo grau” para sentenças condenatórias de crimes contra a vida (aproveitando-se equivocadamente da denominação de “Tribunal do Júri”). Enfim, estraçalha a presunção de inocência, antes mesmo que o STF possa julgar sua amplitude, definitivamente, no começo de abril.

Um projeto que se centra em experiências malsucedidas, aqui ou no exterior, e que evita, por incompetência ou falta de vontade, enfrentar os principais desafios para a superação da violência e do crime, não está à altura dos desafios que o momento exige. O povo brasileiro não merece ser ludibriado por soluções simbólicas, aparentemente mágicas, que, ao final, tendem a agravar os próprios problemas que prometeu resolver.

A Associação Juízes para a Democracia, desvelando as contradições e incoerências do texto, não se furtará ao debate e indicará, em seu devido tempo, uma a uma, as inconstitucionalidades, inconsistências e inconveniências de um conjunto de leis que procura oferecer tão-somente uma resposta demagógica e certamente ineficaz a problemas reais.

Nesta quadra, a AJD rejeita veementemente o pacote, tal como lançado, pela ausência de exposição de seus pressupostos, pela falta de estudos técnicos que suportem as ideias fragilmente expostas e pela incapacidade de enfrentar os temas de acordo com os princípios que norteiam a preservação da dignidade humana no contexto do Estado Democrático de Direito, ainda estampado na Constituição da República e pelo qual todos temos a obrigação de zelar.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2019.

Com informações do Estadão