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Em Liberdade, de Silviano Santiago: a literatura enfrenta a ditadura

 No livro Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago, o escritor monta um texto complexo para juntar, num só enredo, ele mesmo, Silviano Santiago, Graciliano Ramos e o poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa, tornados personagens de uma ficção que terá como pano de fundo o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, na década de 1970.

Por Jeosafá Fernandez Gonçalves*

Silviano - Foto: Divulgação

Autópsia de um estranho enredo acima de qualquer suspeita

No romance Em liberdade, Silviano Santiago torna-se personagem depositária de um hipotético diário de Graciliano Ramos. Esse diário é composto de reflexões da personagem Graciliano Ramos sobre a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas (que encarcerou o verdadeiro Graciliano Ramos), de pensamentos íntimos, de apontamentos sobre literatura, sobre relações com outros escritores e editores, e de um projeto de pesquisa que, em resumo, visa estabelecer se o poeta Cláudio Manuel da Costa suicidou-se, como a história oficial da Inconfidência Mineira registra, ou foi se assassinado no cárcere, como muitos historiadores sustentam.

Na ocasião em que a personagem Silviano Santiago decide publicar o “diário”, a personagem Graciliano Ramos está morta há 20 anos – portanto o “diário” é um espólio.

Vamos organizar essa confusão para situar-nos corretamente. Para tanto, não podemos confundir pessoa, autor e personagem.

Silviano Santiago, pessoa, nasceu 1936, em Formiga, Estado de Minas Gerais; aprendeu a ler e a escrever, tornou-se professor, romancista, poeta, contista, ensaísta, crítico etc., tem uma biografia e, como todo humano, é mortal, adoece e, às vezes, precisa ir ao médico. Hoje, vive na cidade do Rio de Janeiro, onde é, também, professor universitário.

Graciliano Ramos, pessoa, nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 1892, e faleceu no Rio de janeiro, em 1953. Contam que era um tanto bravo, sério e não gostava de bajulação.

Cláudio Manuel da Costa, pessoa, nasceu em Vargem do Itacolomi, Minas Gerais, em 1729 e morreu em Ouro Preto, também Minas, em 1789. Foi poeta e membro do governo colonial. O envolvimento com a Inconfidência Mineira resultou em sua prisão. Sua biografia tem um ponto obscuro: foi assassinado a mando do governo ou suicidou-se?

Silviano Santiago é autor não apenas de ficção (contos e romances), mas também de ensaios, críticas, poesia etc. É eternamente autor dos textos que escreveu – sob esse aspecto é imortal.
No romance Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago, o Silviano Santiago em questão não é nem a pessoa, nem o autor: é uma invenção, uma personagem de ficção, que poderia, inclusive, ter outro nome. Como personagem inventada, Silviano Santiago será, nesse romance específico, o editor do, também inventado, diário de Graciliano Ramos.

O Silviano Santiago autor inventou uma ficção, cujo enredo destaca para duas personagens: uma principal, chamada Graciliano Ramos (o Graciliano Ramos real jamais deixo esse “diário” como espólio); e uma secundária, chamada também Silviano Santiago (que na vida real jamais recebeu esse espólio do escritor alagoano).

No enredo do “diário” (hipotética obra documental de “Graciliano Ramos”), há várias personagens; as duas mais importantes são o próprio Graciliano Ramos, tornado personagem-pesquisadora, e o poeta Cláudio Manuel da Costa, que será investigado. Trata-se de uma história dentro da outra, como se pode notar. Mas, se quem acha que a complicação terminou aí, engana-se. Onde é mesmo que entra o jornalista Vladimir Herzog no enredo?

História com H maiúsculo

Vladimir Herzog, que habita o plano de fundo dessa ficção, pessoa, nasceu em 1937 na cidade de Osijkek, lugoslávia. Por causa da perseguição nazista contra os judeus, sua família deslocou-se para a Itália em 1942 e, em 1946, logo após o fim da II Guerra, para o Brasil. Herzog foi jornalista e, quando de seu assassinato em 1975, era diretor de telejornalismo da TV Cultura, de São Paulo.
Se a gente não conhece a História, perde completamente o nexo entre a realidade e a ficção: como saber o que junta ou separa uma da outra, se nem sabemos o que é uma ou outra?

Lendo o romance Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago, notamos que as reflexões feitas sobre a morte do poeta Cláudio Manuel da Costa pela personagem Graciliano Ramos em seu diário são parecidas – até demais – com as que foram feitas pela imprensa, quando do assassinato, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog. Noutras palavras, estas do mestre do realismo Eça de Queirós, “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”. Desse ponto de vista, o conhecimento da História (a ciência) é absolutamente necessário, porque os contatos entre ela e a Literatura (a arte) existem, mas não são evidentes, pois ocultam-se sob o véu ambíguo de que fala Eça de Queirós

Isso impõe que, quando desconfiamos de que certa informação vacila entre a realidade e a fantasia, estamos obrigados a investigar suas fontes, seu contexto histórico. Como o caso Herzog tornou-se famoso por precipitar o repúdio da opinião democrática à ditadura militar, as fontes de informação sobre ele são, além de provas e testemunhas, a própria imprensa da época e do período subsequente, que inclusive publicou documentos oficiais, ao final revelados farsas grosseiras, como nos exemplos a seguir:

Revista Retrato do Brasil: A morte no Doi/Codi

Agentes do CODI foram prender o jornalista Vladimir Herzog na TV Cultura de São Paulo, na noite de 24 de outubro de 1975. Acusavam-no de militante do PCB. A direção da emissora convenceu os policiais de que Vladimir não poderia deixar seu trabalho naquele momento – ele era chefe de reportagem – sem que a programação fosse seriamente prejudicada. Vladimir recebeu, então, ordem para comparecer ao CODI na manhã seguinte. Assim fez. Chegou lá por volta das oito horas. No final da tarde o Comando do II Exército divulgava nota comunicando a morte do jornalista: “Suicídio”. Em 27 de outubro de 1978, no entanto, o juiz Márcio José de Moraes, da 7ª Vara de Justiça Federal, deu ganho de causa à viúva de Vladimir, Clarice, declarando responsável a União pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. (RETRATO DO BRASIL. SÃO PAULO: POLÍTICA. V. 3. P. 99.)

Trecho do “diário” de Graciliano Ramos sobre a morte do poeta Cláudio Manuel da Costa:
Diogo de Vasconcelos não acredita na versão do suicídio de Cláudio. Seu desmentido baseia-se em levantamento minucioso da Casa dos Contos, onde Cláudio se enforcou. (…) Acrescenta que foi encontrado “pendente de uma cinta”, com os pés em cima de uma “prateleira de cedro”. E conclui, com este raciocínio lapidar, pela “extravagância” da versão do suicídio: “O introdorso escuro dos degraus de pedra nua não dava para as ataduras da cinta, nem para ser ter o corpo de pé, quanto mais pendurado”.

O único argumento que se pode opor ao de Diogo de Vasconcelos é que o perito estaria diante de um caso raríssimo de enforcamento por suspensão parcial. (nesse caso, Cláudio devia aparecer com frequência nos compêndios de medicina legal.) Acho estranho que o poeta tenha levado até o fim o seu próprio sacrifício, tendo o corpo com as pernas dobradas e o joelho praticamente pousado na prateleira de cedro. Para um suicida com o amor à vida que Cláudio tinha e com a sua inteligência, não teria sido mais fácil valer-se da prateleira apenas impulsionar o corpo, deixando-o solto e suspenso no ar? Para que tanta força para matar-se? Ou será que a força veio de outrem? A versão oficial diz que dois médicos (Caetano José Cardoso e Manuel de São Tiago) e mais o juiz e o escrivão da devassa foram os responsáveis pelo exame do corpo de delito. O relatório é datado do dia 4 e, é claro, conclui que Cláudio se enforcou.

[Nota de rodapé: o teor é o seguinte: “(…) disseram achar-se (o cadáver), como de fato se achou, de pé, encostado a uma prateleira, com um joelho firme em uma tábua dela, com o braço direito fazendo força em outra tábua, na qual se achava passada em torno uma liga de cadarço encarnado, atada à dita tábua e a outra ponta com uma laçada, e no corrediço deitado o pescoço do dito cadáver, que o tinha esganado e sufocado, por lhe haver inteiramente impedido a respiração, por efeito do grande aperto que lhe fez com a força da gravidade do corpo na parte superior da laringe, onde se divisava do lado direito uma pequena contusão, que mostrava ser feita com o mesmo laço quando correu; e examinado mais todo o corpo pelo referidos cirurgiões, em todo ele não se acho ferida, nódoa ou contusão alguma, assentado uniformemente que a morte do referido doutor Cláudio Manuel da Costa só fora procedida daquele mesmo laço e sufocação.] (SANTIAGO, OP. CIT. P. 220.)

Perícia: Encontro de cadáver. Secretário de Segurança Pública – Instituto de Política Técnica, 1975.
Junta à janela dessa cela, em suspensão incompleta e sustido pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde, foi encontrado o cadáver de um homem de cútis branca, apontado como sendo o de Vladimir Herzog, de 38 anos de idade, que se achava com sua língua ligeiramente propiciente.
Seu traje, normalmente disposto, compunha-se de macacão verde de tecido igual ao da referida cinta e de cuecas brancas. Seus pés calçavam meias e sapatos de couro, ambos pretos.

A referida cinta, conforme mostra a foto nº 2, anexa, estava na grade metálica, com um nó simples, a uma altura de 1,63 metros. A outra extremidade dessa peça formava a laçada de nó corrediço que constringia fortemente o pescoço, nó esse situado na parte posterior do lado esquerdo do mesmo (vide pormenores na foto nº 3, anexa).

Removida a laçada, denotou-se, no pescoço, um sulco enegrecido, descontínuo, oblíquo e relativamente profundo, cuja largura possuía correspondência com a mencionada laçada (vide pormenores na foto nº 4, anexa). (Hamilton de Almeida Filho. A sangue quente, Alfa-Ômega, São Paulo, 1978. P. 56-57.)

Exame de corpo de delito. Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO: 1) Ausência de sinais de violência em toda a extensão do tegumento cutâneo. 2) Hipóstases ainda não fixadas completamente, acima do sulco cervical, no dorso, nas nádegas e nos genitais. 3) Protusão da língua. 4) Sulco produzido por laço em posição alta, inclinado para a direita e interrompido no nível da mastoide (local onde deveria estar o nó). 5) Ligeiras sufusões hemorrágicas no tecido celular subcutâneo, nos músculos pré-tiroideanos, ao longo do sulco descrito. 6) Manchas de Tardiau na superfície pulmonar, indicando sofrimento respiratório. Globalmente o conjunto dessas lesões indica o quadro médico legal clássico da asfixia mecânica por enforcamento. (…)
São Paulo, 27 de outubro de 1975.

DR. ARILDO DE T. VIANA E DR. HARRY SHIBATA.
EXAME DE CORPO DE DELITO. INSTITUTO MÉDICO
LEGAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. DEL. DE ORDEM POLÍTICA
E SOCIAL – DOPS. REGISTRADO EM 27 DE 10 DE 1975
SOB O Nº 54.620. (IDEM, IBIDEM, P. 59-60.

Autópsia literária de um crime real

A leitura comparativa das reflexões e descrições da personagem Graciliano Ramos, sobre a morte do poeta inconfidente, e as da imprensa, sobre a morte do jornalista comunista, não deixa dúvida de que Silviano Santiago empregou uma verdade histórica sabida (comprovou-se que Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura) para pôr em questão uma dúvida histórica: a morte do poeta na prisão, no já distante século XVIII.

Na voz do Graciliano Ramos, personagem denunciante do assassinado de Cláudio Manuel da Costa, Silviano Santiago, sob o manto diáfano da fantasia, faz vazar na literatura a denúncia do assassinato de Vladimir Herzog, driblando assim a censura do regime militar:

“Missa é rezada, na Matriz do Pilar, pela alma de Cláudio. Os habitantes da cidade comparecem em massa.” (Santiago, Silviano. Em liberdade, uma ficção de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 227)

Na reportagem que cobriu a missa de Vlado (era assim que os amigos e a imprensa tratavam carinhosamente o jornalista), lê-se:

“Na Catedral da Sé, os primeiros participantes começaram a chegar às 15 horas, e até às 18, quando terminou o ato religioso, oito mil pessoas tinham conseguido furar o bloqueio montado pela polícia de trânsito.”

Na voz do Graciliano personagem denunciante do assassinato Cláudio Manuel da Costa, lê-se:
“Para todos os efeitos, o finado Cláudio Manuel da Costa não atentou contra a sua própria existência.”

Numa carta publicada no jornal ex, que se reportou aos eventos que envolveram o assassínio do jornalista, lê-se:

“Sr. Redator:

Se talvez nunca venha a ser aceita, por todos, a afirmação de que, em vida, o Vladimir tenha sido suicida, posso assegurar-lhes que, na morte, ele já deixou de sê-lo definitivamente.

No cemitério onde repousa o s.r. Herzog, os suicidas, pela lei religiosa, não são iguais aos outros e não merecem ser misturados àqueles que, prestando ou não durante sua existência terrenal, finaram-se, porém sem ajuda própria.

A quadra dos infelizes suicidas é a de n° 27, mas a de n° 28, onde Vladimir foi enterrado às pressas na sepultura n° 64, é de falecidos comuns, dos que morreram por velhice, acidente, doença ou por outras circunstâncias. Enterrado, o s.r. Herzog não é suicida e ninguém poderá jamais modificar o faro.

Trudi Landau

São Paulo”

Noutro trecho do romance de Silviano Santiago lê-se:

Cláudio Manuel da Costa não atentou contra a própria existência. É a Igreja que diz. A cúria de Vila Rica, zelosa da sua tradição católica romana, não teria ido contra os princípios expressos por São Tomás de Aquino, na Suma Teológica. O filósofo afirma que, antes de tudo, o suicídio atenta contra a Lei Divina. Antes de ser uma falta cometida pelo homem contra o homem, o suicídio é pecado contra Deus. Rezam missa pela sua alma. (Op. Cit. p. 227)

Em entrevista do cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, em dezembro de 1975, ao jornal Ex, lê-se:

“Ex – Qual foi a maior lembrança que Culto Ecumênico, por ocasião do 7° dia da morte de Vlado Herzog, deixou no senhor?

D. Paulo – Senti, como poucas vezes na vida, que ser humano não pode perder a esperança em dias melhores. Quando estão esgotados todos os recursos humanos, restam-nos o misterioso poder da oração em comum e o conforto da solidariedade. Convenci-me, ainda mais, que argüir serenamente às consciências é uma estratégia muito mais eficaz do que usar multidões de exércitos armados. O Brasil parou, a fim de ouvir a voz do povo que se expressou, sincera e pacificamente, na Catedral Metropolitana de São Paulo.” (Ameida Filho, p. 88)

Ou seja, a Igreja Católica sediou o ato ecumênico, desmentindo a versão de suicídio do jornalista.

Assim, as reflexões da personagem Graciliano Ramos sobre Cláudio Manuel da Costa foram construídas por Silviano Santiago com estilização de fragmentos de discursos informativos (da imprensa) daqueles dias conturbados do final da ditadura militar brasileira (1975), de que Silviano Santiago – pessoa – participou como individuo real, ser humano.

A voz de Graciliano Ramos-personagem, a denunciar o homicídio de Cláudio Manuel da Costa é, na verdade, a de Silviano Santiago-pessoa, indignado com o assassinato de Vlado e, por extensão, com a mentira que torna documentos oficiais verdadeiras fraudes, como o laudo de morte do jornalista, assinado por Harry Shibata – que, alias, perdeu o direito de exercer a medicina exatamente por assinar laudos de morte mentirosos:

“Os jornais deram a notícia [23/10/80, informação nossa] de que o Conselho Regional de Medicina condenou o médico Harry Shibata, diretor do Instituto Médico Legal, à cassação do exercício profissional, pois Shibata, que ficou em evidência no processo Herzog por ter assinado laudo necroscópio sem ter visto o cadáver, também é acusado de ter, em fevereiro de 1975, elaborado um laudo médico que não retratava a verdade dos fatos. Shibata tinha afirmado que o preso político, ex-deputado Marco Antônio Tavares Coelho estava “em perfeitas condições físicas e mentais”, quando eram visíveis, no corpo todo, lesões provocadas por tortura brutal, constatação feita por dois médicos do Exército. Atestados falsos como este saíram freqüentemente da Mao de Shibata. (…)”

A revista ISTOÉ noticiou que, segundo a Anistia Internacional, foi a primeira vez que um conselho de ética condenou um médico por colaborar com a tortura. (Landau, Trudi. Vlado Herzog: o que faltava para contar. Petrópolis: Vozes, 1986. Pp. 170-171)

Mas com que propósito?

No romance de Silviano Santiago, a personagem Graciliano Ramos escreve o diário para registrar a injustiça da sua própria prisão, a violência e a arbitrariedade da ditadura e de seu sistema penal, e para expulsar da alma a revolta, a angústia e os maus sentimentos que brotaram da situação de encarceramento.

O que está em foco no romance Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago, então, é o engajamento do intelectual na luta por uma sociedade mais democrática e algumas das consequências desse engajamento: a tortura e o assassínio sob o manto de suicídio (caso provável, de Cláudio Manuel da Costa, e certo, de Vladimir Herzog), e a prisão arbitrária, sem acusação ou denúncia (caso do próprio Graciliano Ramos real).

Literatura engajada

Abordar temas históricos, sociais e políticos é prática frequente na literatura. Os críticos literários chamam esse gênero de literatura engajada ou participante, pelo seu engajamento na crítica da realidade histórica, política e social.

Escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Ferreira Gullar, o próprio Silviano Santiago, e muitos outros se especializaram a tal ponto que suas obras passaram a ser consultadas por pesquisadores e historiadores interessados numa melhor compreensão do Brasil.
Normalmente a literatura engajada ou participante reflete o engajamento do próprio autor em causas políticas e sociais favoráveis às camadas e grupos oprimidos da população. Para eles, a literatura tem um papel importante na transformação da própria sociedade, não apenas divertindo, mas convocando para a cidadania, para o aperfeiçoamento das instituições e do espírito dos indivíduos. Fazem da literatura palco de denúncias, para que o leitor se situe ante a ficção e a realidade, reflita sobre seu papel de leitor e indivíduo e participe ativamente do mundo dos símbolos (como leitor) e do mundo real (como cidadão, consciente do seu papel transformador na sociedade e na história).
Com isso, reduzem bastante a distância entre Literatura e História, pois procuram construir suas narrativas com informações históricas comprovadas. Alguns romances são quase documentos de fatos ou processos históricos, como os que retratam o flagelo da seca e do êxodo rural do Nordeste brasileiro.

Em alguns livros, Jorge Amado, por exemplo, simplifica ao máximo a linguagem para que o público se inteire sem dificuldade dos assuntos abordados e se posicione politicamente de modo ativo, como em Jubiabá e Seara vermelha, Capitães de areia etc.

E com as palavras de Júlio Cortázar me despeço do leitor que teve a paciência de chegar até este ponto deste ensaio:

“A gente se pergunta, está claro, se superar a antinomia palavra-ação [representação literária X realidade, esclarecimento nosso] não acabaria com a própria literatura, sobretudo com o romance, que tem seu alimento central nessa fricção e nesse desacordo [ficção/realidade, esclarecimento nosso]. Mas no fundo – parecem pensar estes rebeldes – a liquidação do romance bem valeria seu preço, se lembrarmos que os romances são escritos e lidos por duas razoes: para escapar de certa realidade, ou para se opor a ela, mostrando-a tal como é ou deveria ser. (…) A plataforma de lançamento destes romancistas está no desejo visível de estabelecer contato direto com a problemática atual do homem num plano de fatos, de participação e vida imediata.” (Cortázar. Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Perspectiva, 1974. bp. 71-72.)

Referência bibliográfica

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