O estouro da manada acerta as contas com o mercado

Será que mesmo fazendo as reformas, e obtendo superávit nas contas, o novo governo manterá baixa a taxa Selic? É provável que não, que haja aumento das taxas da dívida ainda que em situação fiscal confortável, porque essa é a lógica do mercado.

Por Luís Fernando Vitagliano*

Bolsa de valores - Reprodução

A maior atenção em relação ao governo deve ser em seus aspectos econômicos, mais especificamente em relação às suas decisões macroeconômicas. Poucos brasileiros sabem que o orçamento da dívida pública chegará a 300 bilhões por ano (esse número pode aumentar para 400 bilhões se somarmos as principais estatais e os estados). Menos brasileiros ainda vão saber fazer as contas macroeconômicas que possam esclarecer as opções do novo governo.

Mesmo com a menor taxa juros desde o Plano Real (Selic a 6,5% a.a.), o crescimento da dívida vem se agravando desde a crise de 2014 e faz com que tenhamos uma parte significativa do orçamento comprometida com os serviços de juros e rolagem de dívida. Neste quadro, a pergunta que interessa a respeito dos dados macroeconômicos é se (e quando) a tendência de alta do endividamento vai se inverter?

Segundo a lógica do mercado, a reforma da previdência é necessária, porque a previdência compromete cerca de 10% do orçamento público, é o segundo maior gasto (depois, obviamente, do próprio serviço da dívida). Se a previdência for equacionada (nem vamos entrar no mérito se é ou não deficitária, porque isso exige cálculos de metodologia e demografia – mas vamos assumir o argumento do gasto), há uma sinalização para o mercado de que o serviço da dívida será cumprido e, portanto, não haveria necessidade de aumentar o valor do juro básico como prêmio de risco. Sendo desnecessário o aumento na Selic, não teria pressão para o aumento da dívida, com algum superávit primário nas contas públicas ao longo dos próximos anos; haveria inclusive redução da dívida líquida e finalmente alívio.

Mas, para que tudo isso aconteça, uma constelação de boas práticas teria que acontecer causando basicamente duas situações: o superávit primário nas contas públicas e a redução ou manutenção da Selic; sendo a primeira a causa fundamental da segunda situação.

Mas, o que vai acontecer se houver superávit e mesmo assim o governo decidir pelo aumento da Selic? Como podemos interpretar isso? É provável (porque é desejável pelos CEO’s do mercado) que tenhamos aumento das taxas da dívida mesmo em uma situação fiscal confortável. Mas, por que a lógica de que confiabilidade nas contas gera redução de margem de juros serviria a qualquer conta pública do mundo, menos para o Brasil?

Hoje temos uma situação bastante inusitada (para o caso brasileiro) em termos macroeconômicos: a inflação gira em torno dos 4,5% ao ano (a.a.) e a taxa Selic está em 6,5% a.a. O que significa que um investidor com os títulos do governo vai receber cerca de 1% a.a. de prêmio: 6,5% de rendimento menos 4,5% de inflação e cerca de 1% em tributos e taxas de operação. Agora imagine que um rentista brasileiro (acostumado a 6% a.a. até quando guardava seu dinheiro na poupança), agora vai ficar feliz em receber 1%? Pense que uma pessoa pode ter, por exemplo, 800 mil aplicados em títulos do tesouro. Por isso, em 2018 vai receber 8 mil. Cerca de R$ 660 ao mês. Em um país civilizado, isso seria aceitável. Na Alemanha o juro é negativo, investir no tesouro faz ter prejuízo, mas é recomendável porque é seguro. Nos EUA é positivo mas ainda não chega a 1%. Mas no Brasil essa situação é inédita e a classe média parece que não vai digerir.

Em 2015, quando Joaquim Levy assumiu a pasta da Fazenda do governo Dilma fez a incrível façanha de contingenciar recursos. Realizou uma série de mudanças no orçamento (inclusive mudanças nas pensões e no seguro-desemprego) e ainda aumentou a taxa Selic (de 11% a.a. para 14% a.a. – com inflação de 10% a.a.). Aquele mesmo rentista do exemplo anterior receberia 24 mil ao ano – 2 mil ao mês, e já achava pouco. Tudo isso se fez ao custo de impossibilitar qualquer estímulo à economia e gerou outros desequilíbrios nas contas públicas.

A Selic maior nominalmente aumentou a pressão sobre a dívida. Os cortes gerais e irracionais sobre o orçamento geraram recessão e a recessão derrubou a arrecadação. Enfim, o déficit público aumentou. Ou seja, as contas públicas pioraram, e o que era pra ser um ajuste acarretou num difícil desequilíbrio das contas públicas.

Joaquim Levy foi, sem sombra de dúvidas, o pior Ministro da Fazendo do Brasil desde Zélia Cardoso de Mello. Deveria entrar para a história como uma das figuras que mais contribuíram para o impeachment pela sua gestão catastrófica à frente da Fazenda. Propositadamente aumentou o prêmio dos Bancos (de onde vem sua origem profissional), sacrificou programas sociais importantes do governo Dilma e, ao contingenciar recursos públicos indiscriminadamente, gerou recessão.

Agora o governo tem decisões igualmente importantes para tomar e, não se engane: novamente vai fazer a opção pelo mercado contra a opção pelo país. O mercado quer uma sinalização para manter a confiança nos papéis da dívida – isso quer dizer reforma da previdência. Paulo Guedes, o futuro Ministro da Fazenda, já disse que a questão é prioridade. Na lógica do mercado, menos gastos previdenciários permite folga no orçamento para o pagamento da dívida no longo prazo, portanto, certeza de liquidez dos títulos de dívida. Na lógica do PT, o déficit poderia ser controlado com mais tempo, sem pressionar os gastos sociais embutidos no chamado déficit previdenciário. Mas existe um debate que vai além desse: não é só a liquidez da dívida que está em jogo, também os rentistas querem sua parte.

Então, é provável que o orçamento público brasileiro tenha várias mudanças de perfil para se adequar ao jogo do mercado e do rentismo (se é que podemos separar os personagens). Com a reforma da previdência se evita o crescimento do gasto com as pensões; depois, os cortes no orçamento vão buscar o superávit primário ainda este ano. Soma-se a isso o valor que vai ser arrecadado com as privatizações prometidas. Se tudo isso acontecer, as contas públicas demonstrariam capacidade para honrar o aumento da dívida pública dos últimos anos e nada justificaria aumento da Selic em 2019. Mas, certamente o aumento dos juros básicos vai ocorrer. Por quê? Porque é o que o rentista quer.

A dívida da União, que gira em torno de 300 bilhões de reais com serviços numa Selic a 6,5% pode ser de 450 bilhões se a Selic for a 10,5%. Mas se houver corte de gastos, reforma da previdência e privatizações, o que vai justificar a Selic acima? Simples: o papel do rentista na sociedade brasileira, que vai exigir de um governo pró-mercado que garanta sua renda básica nada cidadã a partir dos títulos do tesouro. E por que o governo faria isso? Porque concorda que os rentistas tenham usuras altas. Não há motivos racionais para isso a não ser pelo compromisso de classe.

Assim, 2019 será um ano muito difícil, em que as reformas na educação virão para destruir o pouco que temos de esperança em melhores oportunidades; haverá uma luta séria sobre os direitos do trabalhador; faremos disputas e mais disputas em torno dos direitos humanos. Enquanto isso, o maior assalto aos cofres públicos desde a era Cardoso vai ocorrer à luz do dia. Legalmente e matematicamente. Infelizmente teremos dificuldade de lidar com isso da mesma forma que tivemos que dificuldade em tratar do estelionato do senhor Levy. Porque, entre outras coisas, a opinião pública puxa e a grande mídia endossa as chantagens do mercado.